Antes de começarmos a pensar as relações entre romances, contos contemporâneos brasileiros e a representação da violência, não custa nada lembrarmos que existe uma longa parceria entre o conceito de narrativa e a ideia de violência. Podemos, por exemplo, retornar a dois momentos fundamentais na constituição de inúmeras tradições narrativas: a poesia homérica e o Velho Testamento. No Gênesis, quais são as três primeiras histórias contadas por um narrador a quem a cultura judaica, de maneira gentil e elegante, chamou de “Moisés”? Enumeremos essas três histórias: 1) A criação do universo e da vida; 2) A primeira transgressão a uma norma, quando Adão e Eva, vivendo em comunhão com Deus e todos os seres viventes do Jardim do Éden, comem o fruto da proibida Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal; 3) O assassinato de Abel pelas mãos do seu invejoso irmão Caim.
No caso de Homero, o nosso segundo Moisés, temos na Ilíada, por exemplo, complexas e tocantes cenas sobre o alto preço pago por gregos e troianos na guerra travada no cerco de Troia. Em determinado momento do canto XIII, lemos (a tradução é de Frederico Lourenço): “Eriçada estava a batalha destruidora de homens/ com lanças compridas, que levavam para rasgar a carne. (…) De ânimo muito audaz seria quem/ então se regozijasse ao ver tal esforço de guerra sem se penalizar”. Está tudo aqui, já nesses dois exemplos: o sangue, a dor, o controle sobre a vontade individual e sobre os corpos, a fama, o desejo, a marginalização, a norma e suas transgressões, a guerra, a luta, o luto, o lamento, a orfandade, a marginalização, a degradação. E a injustiça.
A nossa literatura, ao longo da história do seu desenvolvimento, não se furtou em pensar o tema da violência. Não poderia ser de outro modo. Nossa certidão de nascimento é o trauma da colonização; a história da nossa política e da formação de boa parte das nossas instituições é marcada pelo autoritarismo e pela violência. A presença da violência na literatura, por outro lado, não se explica apenas a partir de uma fundamentação sociológica e política, pois o próprio motor de um enredo é o conflito. Assim, se Caim mata Abel, não é apenas porque, em uma época específica, a religião judaica sentiu a necessidade de normatizar a vida social tendo como auxílio o uso pedagógico de uma narrativa, e, sim, porque o ato violento, com todas as suas ramificações, é uma das mais poderosas ferramentas a serem usadas quando queremos contar uma história.
Nem sempre, porém, a violência vai adquirir os tons ambíguos, dolorosos e problematizadores com os quais a pintei no primeiro parágrafo desse texto. A literatura brasileira muitas vezes a celebra. No Prosopopeia, poema épico publicado em 1601 e escrito por Bento Teixeira, podemos encontrar versos como estes, nos quais se louva a colonização católica da capitania de Pernambuco iniciada por Duarte Coelho e sua família: “Vereis um senil ânimo arriscado/ A transes e conflitos temerosos,/ E seu raro valor executado/ Em corpos luteranos vigorosos”. Ou, no XIX, encontramos Alencar, na sexta das suas Novas cartas políticas de Erasmo, insatisfeito com a política do Imperador em relação ao vizinho Paraguai: “A paz é uma grande vergonha… O coração brasileiro se congela ao som desta palavra cruel. (…) Não tem alma um povo de onze milhões de almas que não esmaga a insignificante republiqueta por falta de um exército de cinquenta, de cem, de duzentos mil soldados”.
Apesar dos exemplos acima (e a prosa ficcional de Alencar pensa a violência com muito mais nuances do que a carta citada), em especial a partir do século XIX, a violência na literatura brasileira passa a ser debatida por nossos romances, contos, poemas, ensaios, crônicas e peças de teatro de modo cada vez mais problematizador. Uma visão generalizante dos modos como a nossa literatura a discutiu e representou é sempre difícil de fazer, mas há a possibilidade de uma mínima visão global que poderíamos estabelecer? Já apontei ao menos uma das vertentes de abordagem literária da violência, a das consequências da colonização, que logo se transformará da exaltação e do exótico dos primeiros escritos colonizadores para o campo da denúncia romântica. A violência social e a tensão de classes são outras tematizações importantes, complementadas pelas consequências nocivas da escravidão.
Karl Erik Schollhammer, no seu livro Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo, afirma que as literaturas latino-americanas como um todo tematizaram com vigor as diferentes manifestações – escravidão, luta pela independência, denúncia da aniquilação da cultura indígena etc. – daquilo que ele chama de “violência cometida contra o continente”. Além disso, eu destacaria o quanto essa violência se desdobra, por outro lado, no mal institucional de brasileiros contra os outros brasileiros, ou seja, o Brasil que oprime, ataca, incendeia, prende e violenta partes do seu próprio território, bem como grupos minoritários.
Não por acaso a centralidade, ainda hoje, de uma obra como Os sertões, de Euclides da Cunha, para nossa literatura e pensamento social. Cabe ao regionalismo, por outro lado, como aponta Tânia Pellegrini, no ensaio As vozes da violência na cultura brasileira, desempenhar um papel importante. Tensões regionais, políticas, sociais, a luta da sobrevivência contra um meio hostil, o fanatismo, a loucura, a tensão entre modernidade e formas arcaicas de justiça – tópicos recorrentes em diferentes obras regionalistas orbitam ao redor da violência.
Para Jaime Ginsburg, no seu ensaio Roteiro para o estudo das relações entre literatura e violência no Brasil, a literatura brasileira não se atém somente à violência do Estado, mas ao potencial violento de diferentes movimentos sociais (pensemos nas obras literárias que, assim como Os sertões, tratam, por exemplo, do nosso messianismo), assim como também não ficam à margem articulações mais subjetivas da violência, ligadas ao luto, ao suicídio, à melancolia. Acrescento, por fim, o quanto nossa literatura desenvolve um olhar agudo às franjas da violência e hipocrisia por debaixo dos pincenês e iphones dos “homens de bem”. Nesse sentido, não deixa de haver algo em comum entre Aristarco, o diretor d’O Ateneu, de Raul Pompeia, Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Paulo Honório, narrador de São Bernardo, de Graciliano Ramos.
CONTUNDÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL “Passei no açougue para comparar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existencia no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal, mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações”, escreve a mineira Carolina Maria de Jesus, em seu Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em livro em 1960. O trecho é contundente e doloroso, ainda mais se lembrarmos que a autora escreveu a partir da sua própria experiência como moradora da Favela do Canindé, em São Paulo.
Em meados das décadas de 1950 e 1960, nossa prosa soará cada vez mais contundente ao tratar da violência, especialmente quando a articula com a crítica social. No parágrafo anterior, Carolina Maria de Jesus produz uma fábula contemporânea, ou uma alegoria semelhante às encontráveis em bestiários medievais, por exemplo. Um animal, ou, no caso mais específico das fábulas, uma situação narrativa que geralmente envolvia um animal, nos ajuda a deduzir uma reflexão, um ensinamento, uma moral. A violência não está na cena, mas no que ficou do lado de fora do palco: a divisão social brasileira, a condição do negro, a divisão social do trabalho, a cidade legitimada versus a cidade periférica, cuja representante é a Canindé – são a força e a lâmina do açougueiro quem fatiam, calam, segregam, aniquilam.
Cito Quarto de despejo porque, agora, após termos pensado um pouco sobre as relações gerais entre literatura, violência e literaturas brasileira e latino-americana, podemos problematizar de que modo a prosa brasileira das últimas décadas está criando novas significações da violência. A partir da década de 1960, a nossa prosa, ficcional e não ficcional, sente a necessidade, de forma quase sistemática, de dar conta da experiência social, pública e íntima da violência. As últimas pesquisas acadêmicas de destaque nos estudos da literatura contemporânea – penso nos trabalhos de Helena Bonito Pereira, Tânia Pellegrini, Beatriz Rezende, Regina Dalcastagnè, Flora Süssekind, Leonardo Tonus, Karl Erik Schollhamer, entre outros – convergem no sentido de apontar o quanto a nossa prosa contemporânea é acentuadamente urbana e o quanto falar da cidade implica falar da violência vivida em um contexto urbano.
Não por acaso, considero que a nossa prosa contemporânea é fundada por quatro obras que, publicadas ao longo da década de 1960, contribuem para a renovação da literatura brasileira ao repensar as maneiras como cidade, identidades, trabalho, classe social, sexualidade e violência precisariam ser abordadas. Claro, ao apontar esses temas, não quero tornar as quatro obras equivalentes à sociologia, ou ao jornalismo. De modo algum as considero relevantes apenas por serem um mero espelho das novas convulsões sociais do Brasil tal como elas se apresentam desde a segunda metade do século XX. A relevância que procuro destacar reside no fato do quanto essas obras pensam política, alteridade e ideologia na própria construção e renovação da linguagem narrativa. Os quatro livros, e seus autores, identificam, possivelmente movidos por uma necessidade visceral, aquele beco sem saída que obriga cada escritora e escritor a formular seu caminho, sua voz, os pontos cegos na tradição narrativa brasileira e a partir deles pensam novas fronteiras, novas atribuições de significados, novos recursos expressivos, novas estruturas para a construção das suas narrativas, personagens. E, em especial no caso da representação contemporânea da violência, as quatro obras citadas são referências importantíssimas.
Que livros são esses? Um deles foi citado antes: é o próprio Quarto de despejo (1960). Os outros são Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), de João Antonio, Novelas nada exemplares (1959), de Dalton Trevisan e Os prisioneiros (1963), de Rubem Fonseca.
Embora a diversidade da literatura contemporânea brasileira nas décadas seguintes não possa ser reduzida apenas a esses quatro escritores e às suas obras, muitos dos caminhos mais reconhecíveis da nossa prosa contemporânea hoje passam por esses escritores e seus livros inaugurais. Além disso, o impacto literário e cultural dessas obras ajudou na abertura de novas frentes de trabalho narrativo, bem como no alargamento das fronteiras não só das histórias a serem contadas, como também do perfil de escritor e escritora a ocupar o seu legítimo local de fala.
Como se deu o alargamento das fronteiras narrativas no tocante à violência? Para além da inclusão da discussão a respeito da luta armada contra a ditadura militar, tema que, por conta das condições específicas daquele momento da história brasileira, era “inédito”, podemos observar a busca por parte da literatura contemporânea em tentar diminuir a distância entre a vivência da violência – nas suas mais diferentes manifestações e dando continuidade ao que já existia antes em nossa literatura – e a sua representação na narrativa. Não se trata apenas de uma maior abertura para a reelaboração de experiências de exclusão social vividas pelo próprio autor ou autora – como é o caso de Carolina Maria de Jesus e João Antonio, por exemplo –, pois mesmo em escritores como Rubem Fonseca, oriundos da classe média, existe uma preocupação de nos fazer ouvir diretamente a voz da exclusão, a voz da violência.
Ao longo das décadas seguintes, nossa prosa trabalhará tanto com o choque, a brutalidade – penso em autores de gerações posteriores, como Patricia Melo, Ana Paula Maia, Santiago Nazarian, Marcelino Freire, Sheila Smanioto, Rinaldo de Fernandes, Luiz Ruffato, Paulo Lins, entre tantos que poderia citar. Embora muitos críticos, em especial acadêmicos, interpretem a presença da violência brutal em nossa prosa como uma concessão à “indústria cultural”, ao “mercado editorial”, ou à influência, considerada, direta ou indiretamente, negativa por parte dessa crítica, dos “meios de comunicação”, penso o quanto essa hipótese é somente parcial. Nossos prosadores contemporâneos, de múltiplas formas, transitando do pop ao testemunho, identificam a matriz de violência fundadora presente na nossa cultura e na nossa história social e literária. A partir disso, entendem a necessidade de reelaborá-la com os recursos estéticos-culturais disponíveis.
MÃES, GUERRAS, CARNEIROS Para fechar e fazer um contraponto ao meu excessivo gosto por generalizações, gostaria de compartilhar com vocês minhas impressões de leitura sobre três interessantes livros de escritores contemporâneos brasileiros: Guerra de ninguém (2016), a mais recente coletânea de narrativas curtas do cearense Sidney Rocha, A imensidão íntima dos carneiros (2015), romance do paulistano Marcelo Maluf, e Olhos d´água (2016), livro de contos da mineira Conceição Evaristo.
No caso das duas primeiras obras, podemos considerá-las como pontos “fora da curva” no tocante às relações entre violência e prosa contemporânea. Por quê? Me refiro ao fato de que, ao pensarmos nas palavras-chave violência e ficção contemporânea brasileira, é natural, como discutimos antes, que isso se traduza em termos de uma representação da violência urbana brasileira. No entanto, tanto os contos de Rocha, quanto a prosa de Maluf, traçam um outro rumo.
Há, também, novidade a ser encontrada nos contos de Evaristo. Embora Olhos d´água se insira na mais usual vertente de tematização, por parte da nossa literatura, da violência, a autora nos oferece um novo olhar, lírico, complexo, em relação aos problemas sociais que acometem a nossa população afro-brasileira. Esse olhar enfatiza, especialmente, a condição da mulher negra na periferia urbana.
Marcelo Maluf é descendente de libaneses e nasceu em 1974, no interior do estado de São Paulo. A literatura brasileira, ao longo dos séculos XX e XXI, tem visto surgir um destacado conjunto de escritores de ascendência libanesa. Maluf se junta a outros excelentes escritores, tais como Milton Hatoum, Raduan Nassar e Salim Miguel. Embora cada um deles tenha uma obra de características próprias, é possível esboçarmos alguns traços em comum: uma abertura para a poesia na linguagem da ficção, um talento para a fluidez narrativa, uma reflexão crítica sobre a memória e a própria arte de contar histórias, a busca por uma conexão entre possíveis identidades brasileiras e a cultura libanesa. São linguagens, personagens e narrativas em contínuo estado de fronteira.
O belo romance (ou seria uma novela?) A imensidão íntima dos carneiros não é diferente. O nome dado ao narrador do livro, que compartilha com o autor o nome “Marcelo”, pode nos levar a pensar, em um primeiro momento, que A imensidão íntima dos carneiros joga o atual jogo da autoficção. O caminho seguido por Maluf, contudo, se afasta dessa possibilidade, pois logo no início da obra encontramos uma cena, talvez delírio, talvez realismo maravilhoso, na qual carneiros falantes se afogam no mar. O livro se abre imediatamente para a alegoria, o imaginário e a circularidade do tempo. Sem ter conhecido seu avô Assad, libanês que imigrou para o Brasil ainda muito jovem, o narrador-Marcelo, impactado pela recente morte do seu pai Michel, filho do avô Assad, entra em um estado de crise.
Talvez seja um exercício de imaginação do narrador-Marcelo, mas o mais provável é que a crise e o luto façam com que ele empreenda uma viagem fantástica no tempo, na qual Marcelo, como um fantasma, passa a acompanhar os últimos meses de vida de Assad. Fantasma, o narrador tem acesso às memórias dolorosas do seu avô. O romance passa a contar, a partir daí, com dois narradores, que se alternam: Marcelo e Assad. Da mesma maneira, dois espaços se cruzam, o interior de São Paulo entre as décadas de 1960-2000 e o Líbano da infância de Assad.
Tempo e espaço se tornam um só círculo, neste romance. E o que une as pontas? A violência: “Quando eu nasci, sob o sol daquele mês de janeiro, o medo estava no meu primeiro choro. O mesmo medo que ainda hoje vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto. Um medo que subiu e desceu as montanhas, que atravessou o oceano num navio e veio se misturar ao fluido amniótico que me envolvia no ventre materno”. Através de sua linguagem poética, com narrativas encadeadas e um conjunto incomum de alegorias, a escrita de Maluf realiza uma potente reflexão sobre as reverberações da violência política. Em que sentido isso acontece? Pelo conflito principal do livro, a motivação pela qual Assad precisou se mudar do Líbano para o Brasil. Ainda muito jovem, Assad presenciou o enforcamento, na árvore de sua própria casa, no campo, de dois dos seus irmãos por soldados turcos. Este é um segredo revelado apenas após a morte do avô, mas Maluf mostra o quanto a violência acaba se tornando, por melhores e piores que sejam as intenções, um fim em si mesmo.
A violência, em A imensidão íntima dos carneiros, não tem limites; suas consequências volta e meia extrapolam os horizontes planejados por aqueles que a instrumentalizam. No romance, o gesto violento reverbera ao longo de três gerações, degradando e sufocando as relações íntimas dos seus personagens; a violência cria pânicos, faltas de ar e fobias na personagem Marcelo e nos seus parentes. No seu desfecho, é possível que uma mutilação, mais do que simbólica, tenha acontecido com Marcelo: “Atravesso a adaga em meu peito. Um corte preciso e profundo, atingindo o coração. E esqueço-me da dor. Esqueço o meu nome, a minha forma. Esqueço-me dos meus pais, dos meus irmãos. Não há nada. Nenhum segredo, nenhum medo, nenhuma história para ser contada. Apenas o silêncio e o vazio ao qual me uno e me sinto completo”. Como tantas vezes acontece com aqueles que vivenciaram momentos extremos de violência, em especial se ela se articula com conflitos políticos, A imensidão íntima dos carneiros é também um romance sobre uma culpa cancerosa, inominada, culpa por termos sobrevivido.
ALEGORIA E POESIA Conceição Evaristo, após passar anos à margem das discussões literárias e do mercado editorial, vem sendo resgatada por uma nova geração de leitores. Nascida em uma favela da cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, a escritora engajou-se tanto na militância política quanto na vida acadêmica, concluindo seu doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. A obra de Evaristo dialoga com importantes escritores brasileiros, que escreveram sobre e a partir de uma pessoal vivência de exclusão social. Autores como Lima Barreto e os já citados Carolina Maria de Jesus, João Antonio e Paulo Lins.
Ao tratar de Maluf, usei palavras como “alegoria” e “poesia”. É possível associá-las aos contos de Evaristo, também. O foco das narrativas contidas em Olhos d´água são as mulheres negras e as crianças. É fascinante percebermos o quanto, nos seus melhores contos, as mulheres de Evaristo são seres complexos, corpos plenos de desejo e de dores, e os fantasmas de toda uma injusta divisão social. Seus rostos são delas mesmas e, ao mesmo tempo, são os rostos da condição de opressão social no Brasil do século XXI: “Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar de sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza”.
Esse trecho, retirado do conto Beijo na face, é emblemático nesse sentido. Salinda, a protagonista da narrativa, vive o conflito individual da busca pela afirmação da sua homoafetividade; ao mesmo tempo ela é uma personagem exemplar, não tanto por ser uma figura idealizada, um molde de conduta, mas, sim, por ser uma ilustração de uma condição de classe, gênero e raça. O que vale para o corpo, vale para a palavra – as vozes, com destaque para as femininas, retêm a sua individualidade como personagens complexas enquanto representam uma voz coletiva.
A escrita de Evaristo, portanto, é marcada pelo realismo, com um forte sabor de crônica. No entanto, esse realismo é remodelado por uma sensibilidade poética discreta, mas que eleva as histórias de Olhos d´água sempre que surge aos nossos olhos leitores. A inventividade poética faz reluzir a relevância temática. Suas protagonistas sofrem agressões por todos os lados, não por causa de suas escolhas, nem porque foram vítimas de um conflito político entre países, mas simplesmente por suas próprias circunstâncias. Ao redor delas, há uma tripla violência (por serem mulheres, por serem negras, por serem pobres), e não é à toa que muitas vezes os contos finalizam tragicamente, com sangue derramado.
Em um dos contos mais surpreendentes do livro, Quantos filhos Natalina teve?, a autora subverte o estereótipo social da mulher negra como “cuidadora”, “mãe de todos” e “babá” ao contar a vida da protagonista Natalina e da sua tortuosa relação pessoal com a ideia da maternidade. De aborto em aborto, de gestação em gestação, Natalina é mãe de muitos e, ao mesmo tempo, de ninguém. O final do conto, polêmico, nos leva a uma situação extrema: a vontade de ser mãe, em Natalina, só surge de fato quando é forjada pela violência. Uma noite, sequestrada, talvez por engano, ela é estuprada por um dos seus sequestradores. Após o orgasmo do estuprador, Natalina toma sua arma e o mata: “Poucos meses depois, Natalina se descobria grávida. Estava feliz. O filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. Estava feliz e só consigo mesma”. Poucas vezes li, na literatura recente, uma afirmação tão completa da autonomia de uma personagem feminina, quanto nesse conto.
FRATURAS NO ESPAÇO-TEMPO Se o pano de fundo da violência na obra de Maluf são a memória e a história; se dos contos de Olhos d´água podemos estabelecer o pano de fundo da cidade periférica, no caso dos contos de Sidney Rocha o contexto da violência é o tempo. Cearense radicado há anos em Pernambuco, Rocha venceu em 2011 o Prêmio Jabuti de contos com o livro O destino das metáforas, e atualmente compõe um ambicioso projeto romanesco iniciado, em 2015, com a publicação do romance Fernanflor.
Em seu ensaio Nova refutação do tempo, o escritor argentino Jorge Luis Borges escreve: “As ruidosas catástrofes gerais – incêndios, guerras, epidemias – são uma só dor, ilusoriamente multiplicada e muitos espelhos”. Acredito que essa ideia é a mola propulsora de alguns experimentos ficcionais recentes, como é o caso das obras de José Luiz Passos e Alberto Mussa, por exemplo.
De igual modo, aproximo-a das narrativas publicadas em Guerra de ninguém. Rocha não parte da violência brasileira a fim de pensar a violência enquanto problema; ele a posiciona num panorama que atravessa nações e tempos históricos. A sua temporalidade peculiar, como consequência, não respeita os limites da verossimilhança realista, encaminhando constantemente seus contos em direção ao fantástico ou, ao menos, a uma indefinição.
Em dois dos melhores contos, Clara e Carmelita e Os três exércitos, temos possíveis fraturas na continuidade do espaço-tempo, no caso do primeiro conto, e a visita em um campo, de fantasmas, um deles o de Che Guevara, no caso do segundo, de onde retiro o seguinte fragmento: “Ernesto guardou a cuia na sacola, e já estava a um lanço de pedra. Augusto César também se levantou e seguiu na outra direção. Agora dava pra ver com clareza que os homens sangravam. Hoje à noite este exército se reunirá de novo, enquanto os lobos observam, vitoriosos”.
Seria possível dizer que Guerra de ninguém conteria um essencialismo da violência? Não avançaria com essa hipótese. Transformar diferentes momentos históricos em pequenos espelhos da violência não significa diluí-la, nem universalizá-la. Além disso, Guerra de ninguém, a sua espiral de breves violências, possui um bem- definido recorte: a modernidade dos séculos XIX-XX. Rocha, no caleidoscópio dos seus contos, observa a sugestão de uma verdade obscura no moderno, a da sua também fundante violência? Eu não teria uma resposta definida, ainda (tanto sobre os contos, quanto sobre a modernidade).
O interessante, porém, é percebermos que Maluf e Rocha buscam outros registros para além da narrativa da violência nacional; Conceição Evaristo, por sua vez, narra vivências invisíveis para muitos de nós, seus leitores. Para suas mães, filhos e homens e filhas, a violência continua a ser injustamente natural. Retomando Homero, citado no começo da nossa conversa, a literatura contemporânea continua a não se regozijar.
CHRISTIANO AGUIAR é escritor e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.