Lançamento

Gordos, magros e guenzos

Nesta coletânea, sociólogo apresenta crônicas, ensaios e novelas. Leia a seguir trechos do volume que a Cepe Editora lançará em breve

TEXTO José Almino de Alencar

31 de Outubro de 2017

Detalhe de 'Eu vi o mundo... Ele começava no Recife', de Cícero Dias

Detalhe de 'Eu vi o mundo... Ele começava no Recife', de Cícero Dias

Pintura Cícero Dias/Reprodução

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 203 | novembro 2017]

QUASE POETA ()
Para Gilberto Freyre, “o sociólogo, o antropólogo, o historiador, o cientista social, o possível pensador são em mim ancilares do escritor.” É como se identificasse nesta qualidade uma espécie de virtude metodológica que fosse necessariamente de par com os seus esforços analíticos de explicação da sociedade. Seja como for, nos seus ensaios são mobilizados recursos comuns à prosa literária: uma sintaxe própria que incorpora livremente coloquialismos, uma narrativa quase nunca linear, em que a ordem expositiva da demonstração do argumento é frequentemente abandonada e os assuntos vão se acrescentando por associações e analogias; e os períodos se alongam, incorporando essa diversidade de objetos, enfeitam-se de metáforas, de sinestesias, adquirem musicalidade e ritmos próprios, como se buscasse combinar, persuasão e sedução.

O caráter fugidio da realidade social – o seu assunto – pediria a combinação dessas manifestações múltiplas da linguagem e o resultado, para ele, seria necessariamente incompleto, incerto, ambíguo. Convicção que vai se refletir – não sem um traço de falsa modéstia – em inúmeros de seus títulos, onde são utilizados termos como: “introdução”, “quase”, “semi”, “sou e não sou” “apenas” e neste Talvez poesia, de 1962, que inclui na nova edição, os poemas de Poesia reunida (1980) e duas poesias inéditas.

Vários poemas de Talvez poesia, o autor esclarece, foram desentranhados da sua prosa ensaística pelos poetas, Ledo Ivo e Mauro Mota. Na apresentação, um deles é identificado: “Nordeste da cana-de-açúcar”, que começa assim: Nordeste de árvores gordas,/ de gente vagarosa/ e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho,/ pelo peixe cozido com pirão,/ pelo trabalho parado e sempre o mesmo.

Não é mal. Mas, por que extraí-los em versos? Vistos em separado, são composições bem arrumadas, uma seleta inteligente da verve do sociólogo. No seu meio original, frases como essas avultam, se destacam exatamente porque fazem parte de um arsenal retórico de grande poder expressivo, ajudam a compor uma narrativa que se esforça por descrever, analisar ou mesmo celebrar uma realidade, uma história. Reforçam e identificam o estilo do escritor, não criam necessariamente um bom poeta.

Na coletânea, destaca-se Bahia de todos os Santos e de quase todos os pecados. Publicado em 1926, combina de maneira concisa, observação sociológica – um olhar minucioso na descrição de personagens populares, de gestos, costumes e situações – com a sintaxe livre do modernismo. Faz lembrar a Evocação do Recife de Manuel Bandeira, que havia sido encomendado pelo próprio Freyre para uma revista pernambucana, no ano anterior.

A reedição de Talvez poesia  se justifica obviamente por se tratar de um documento, trazendo inclusive um traço do jeito de ser gilberteano, muitas vezes glosado por ele mesmo: a vaidade. Somente como registro histórico e afetivo, poderíamos entender a inclusão de alguns versos de circunstância, que ficam apenas como testemunhos singelos e simpáticos de alguns momentos da vida do autor.

ELA COMEÇAVA EM CÍCERO DIAS
Recentemente, ao se queixar da ausência das artes plásticas nas escolas e da carência de acervos e exposições, um amigo perguntou-me como e quando se dera o meu primeiro encontro significativo com a pintura. Respondi-lhe que não poderia datá-lo com precisão na minha infância, embora lembrasse exatamente o lugar e o artista: nas paredes da casa de Tio Caio, irmão de minha mãe, naquele tempo literalmente cobertas de aquarelas de Cícero Dias. Pouco depois, ganhei um exemplar das memórias do pintor: Eu vi o mundo.

Pernambucano, nascido em uma família dona de engenhos de açúcar, Cícero Dias passou a infância em lugares cujos nomes parecem saídos de um poema de Ascenso Ferreira: “Vivi em três casas-grandes: Noruega, Contendas e Jundiá. Jundiá foi a capital de minha infância”. Portanto, não teria sido à toa que Gilberto Freyre, ao conhecê-lo, procurou conversar sobre os seus “troncos familiares... os engenhos”, talvez antes mesmo de confessar: “Esta sua pintura parece ter sido feita para mim”.

Adolescente, Cícero foi ao Rio terminar os estudos secundários e fazer arquitetura. Logo se declara pintor, enturma-se com os modernistas. Apadrinhado por Graça Aranha, faz uma primeira exposição em 1928. Bandeira, seduzido pela imaginação daquele rapaz de apenas 21 anos conta em uma de suas crônicas que, ao ser perguntado por Prudente de Morais Neto qual o melhor pintor brasileiro, Lasar Segall teria respondido: “Cícero Dias... Ele pinta como uma criança... E a par disso, é o mais brasileiro de todos.” Na Lapa carioca o pernambucano criaria o seu célebre portal: “Eu vi o mundo... ele começava no Recife” que nomeia também essas memórias.

“Gilberto tinha que conhecê-lo”, disse-lhe Manuel Bandeira. É o poeta que lhe escreve uma carta de recomendação para o sociólogo.

Gilberto Freyre o marcou profundamente. Para falar da sua infância, Cícero Dias seleciona mimeticamente o universo repertoriado na obra do mentor e adota o tom por vezes candente e sentimental de seu estilo, com o seu séquito de aristocratas do açúcar, despotismo pitoresco, parentes extravagantes, assombrações, catolicismo doméstico, odores, sabores e cores: “Defuntos líricos, lobisomens, gemidos surdos dos carros de boi” [...] “Nenhuma [mesa] foi mais farta do que a de Jundiá” [...] “Tobias [Barreto] foi casado com uma filha bastarda do meu avô”.

O gozo com que se entrega à recordação do passado mais longínquo prolonga-se na descrição minuciosa da viagem de navio, fugindo de um Recife de conflitos políticos na década de 1930. Escapa da política local, para desembarcar em uma França que assiste o final da Guerra Civil Espanhola. A invasão do país pela Alemanha nazista o surpreende em Paris. Consegue se refugiar em Portugal.

Tudo indica que muito dessas incursões prazerosas se repetiriam, se o escrever dessas memórias não fosse interrompido pela sua morte em 2003, deixando-o no inicio dos anos 1940, quando ele tinha pouco mais de trinta anos.

Nessas memórias incompletas sobram-nos ainda algumas impressões dos seus primeiros encontros europeus: com Blaise Cendrars, por exemplo, que o ajuda a organizar uma exposição. Do Recife, levaria a Paris os seus quadros: figurativos, líricos, levíssimos de traço, onde se misturavam registros de memórias, de sonhos, assim como paisagens e personagens brasileiras bem identificáveis. “Os surrealistas encontram alguém para conversar,” escreveria o poeta André Salmon.

Encontra-se também com Picasso, com Le Corbusier e com Paul Éluard, cuja amizade lhe fará personagem de um episódio da Resistência Francesa: durante a Ocupação Alemã, Cícero Dias transportou para fora do país o poema Liberté que deveria ser publicado e distribuído clandestinamente em território ocupado, com grande repercussão.

Deixado inacabado, o livro de memórias é finalizado por Raymonde, mulher de Cícero, em uma segunda parte, graficamente diferenciada e intitulada: Nós vimos o mundo. Lá estão registrados, carinhosa e diligentemente fatos da vida do pintor. Faltam-nos, é natural, o ziguezaguear de sua memória, a graça de seus comentários que ele certamente faria sobre os seus últimos cinquenta anos.

Da sua história, fica para mim a impressão que nada viria a suplantar aquele período inicial entre o Rio e o Recife. Até o seu convívio com a geração dos surrealistas seria um desenvolvimento natural do que aqui havia sido feito e que eu encontrara naquela casa do Espinheiro, entre as Graças e os Aflitos. Lá estava o brilho do jovem precoce que fez Manuel Bandeira escrever: “e os meninos poetas admiravam os meninos pintores.” E que me fez ver a pintura: ela começava em Cícero Dias.

EM TORNO DE DUAS PEQUENAS ANEDOTAS SOBRE ARIANO SUASSUNA
A primeira teve lugar ainda em 1964, logo depois do movimento militar de abril daquele ano, época em que o meu pai, o governador Miguel Arraes, então deposto, se encontrava preso em Fernando de Noronha. Muitos outros membros da família também se encontravam presos. A prudência comandava que eu, adolescente, ficasse em casa ou circulasse o menos possível. Uma noite o escritor Renato Carneiro Campos, bem mais velho do que eu e meu aconselhador literário, quebrando essa recomendação, levou-me para visitar Ariano Suassuna, que morava na Rua do Chacon, em Casa Forte.

Ora, Ariano, juntamente com Hermilo Borba Filho, havia comprado uma briga com o movimento de cultura popular, movimento patrocinado pelo governo Arraes que veio a ser por eles acusado de, por sectarismo ideológico, distorcer o que os dois pensavam consistir a verdadeira cultura popular nordestina. Para simplificar, Ariano e Hermilo desentenderam-se com as esquerdas, travaram debate e eram considerados reacionários pelos nossos.

A recepção foi calorosa e o assunto pesadamente literário: nenhuma alusão ao estado de coisas reinante. Na saída, Ariano me pegou pelo braço, me levou até o portão e, a sós, disse-me algo assim: “Pode voltar todas as vezes que quiser, conte comigo para o que precisar”. E, como se quisesse quebrar a solenidade do oferecimento: “Eu sou mesmo é de oposição”; fato ainda mais notável porque o sertanejo pode ser antes de tudo um forte, pode ser leal, pode ser corajoso, mas nunca se consideraria intrinsecamente de oposição.

A segunda anedota é menos pessoal e se deu muitos anos depois, passado o governo militar, durante o segundo mandato de meu pai como governador. Os dois, Arraes e Ariano, já haviam se encontrado e se descoberto mutuamente irmanados na mesma identificação com o povo nordestino, com suas manifestações de criatividade cultural e política, e na preocupação em descobrir soluções práticas, se possível locais, para os problemas da região; ambos alimentavam a obsessão de encontrar os caminhos para a construção de um destino original para a nação brasileira: um caminho nacional e popular – guardo repetidas na memória essas duas expressões desde a infância – nacional popular como o monarquismo de Quaderna em A pedra do reino. Além de correligionários e amigos, os dois vieram também a ser vizinhos, “vizinhos de grito”, na já mencionada Rua do Chacon, em Casa Forte, aliás, (forçando um pouco a mão nas coincidências simbólicas) bem ao lado da casa que pertencera a José Mariano Carneiro da Cunha e D. Olegarinha, abolicionistas históricos.

Em visita ao Recife, conversando com Ariano, mencionei alguma coisa sobre “a obsessão pela identidade nacional”, própria às nações que se desenvolveram na periferia do mundo ocidental, cuja intelectualidade, embora impregnada pela cultura e valores prevalentes nos países centrais, mantinham com relação a esses últimos, relações de atração, de ressentimento e de desejo de afirmação. O século XIX fora o século das nações, dos grandes movimentos de independência e de afirmação nacional.

Creio que, na ocasião, citei o “excepcionalismo norte-americano” – expressão usualmente utilizada para designar a especificidade e o pioneirismo do desenvolvimento político daquele país, no qual se vê surgir, concomitantemente, independência nacional e uma organização democrática do Estado. Mencionei também o conflito entre populistas e ocidentalizantes na Rússia do século XIX, que ressurgia já logo após o desmonte do regime comunista, retomando velhas questões sobre a especificidade da cultura russa, a natureza de suas relações com o Ocidente e sobre a realidade de um projeto político próprio.

Ariano falou-me então da impressão que lhe causara o famoso discurso de Dostoiévski na inauguração do monumento a Puchkin em 1880, em Moscou; discurso que constitui um monumento de exaltação da língua e do nacionalismo russos. Diante de um comentário meu sobre a grandeza de Dostoiévski, mas da minha simpatia política pelos ocidentalizantes – Alexander Herzen, Belinsky e Turgenev, retrucou o que eu, ao provocá-lo, já antecipara: “Mas eu prefiro os populistas.”

Assim como aos russos, a questão da identidade nacional atormenta periodicamente os nossos espíritos, com maior ou menor intensidade, e, de certa maneira, veio a constituir-se, ela mesma, parte da história brasileira. Desde o século XIX, sobretudo a partir do período da Regência, o Brasil vem sendo inventado pelos brasileiros, com criações em que aparecem imbricadas a elaboração de símbolos, de mitos, de instituições e a afirmação de um ideário nacionalista. Disse inventado e abro aqui um parêntese, mas poderia dizer imaginado no sentido usado por Benedict Anderson no em Imagined communities.

Anderson nos sugere que “todas as comunidades maiores do que as aldeias primitivas do contato cara a cara (...) são imaginadas”. As nações, portanto, seriam comunidades imaginadas e se distinguiriam precisamente pelo estilo como são imaginadas. Ao dizer isto, ele aponta para as relações existentes entre as formas de representação e de expressão, através das quais o povo de uma nação vivencia a própria experiência, e para uma camada de letrados que conferiria uma aparência de uniformidade a essas representações. O que ocorre, segundo Bennedict Anderson, é a elaboração, por intermédio desses últimos, de um constructo narrativo que se apresenta como verdade natural ou como imanência preexistente ao próprio discurso, imanência que ilusoriamente estaria à espera de ser escavada e consequentemente assimilada pelos membros da comunidade.

Nessa concepção, a ideia de alma, de essência ou de povo já é em si mesma manifestação de construções resultantes do trabalho de intérpretes e das suas repercussões no imaginário coletivo. Essas construções são, por definições diferenciadas, mas obviamente não são arbitrárias; elas podem se colocar em conflito umas com as outras ou constituir vasto campo de consensualidade. O importante é sabê-las historicamente dadas e problemáticas.

E aqui fecho esse parêntese um tantinho abstrato e pretensioso, mas não de todo inútil para o que vem a seguir.

Iniciado o Segundo Reinado, o imperador promoveu a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Deu-se início à caça oficial ao nosso passado: enumerar os nossos eventuais sítios históricos, narrar os incidentes que poderiam ser indiciados como patrióticos, mandar expedições científicas para o interior. Um pouco mais tarde, o barão de Rio Branco produziria as suas Efemérides brasileiras, manifestação singela, porém significativa desse esforço. Com José de Alencar, atacou-se a questão da existência de um idioma brasileiro. Começaria também – através de uma fieira de ensaístas e publicistas: Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros, até os nossos dias – um debate intermitente, porém continuado, sobre como nós somos, nós brasileiros – comunidade de múltiplas etnias, entidade nacional e organização política.

Muitas dessas análises traziam embutida uma analogia entre a afirmação da identidade nacional com o processo correspondente à maturação e ao aperfeiçoamento das capacidades singulares de um indivíduo. Haveria compartilhamento ou confluência de valores, significados e comportamentos que tornariam específico este ser coletivo diante de outros povos: o nosso substrato verdadeiro, que indicaria também do que seríamos capazes como nação.

Ao discorrer sobre este processo de maturação, Evaldo Cabral de Mello nos fala do dilema do mazombo, isto é, do brasileiro descendente de europeu ou considerado como tal, inseguro na sua identidade, sentindo-se dividido entre a América e a Europa. A fórmula de Nabuco é conhecida: De um lado do mar, sentese a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. Segundo Cabral de Mello, uma parte considerável do esforço cultural brasileiro teria sido criada visando à nossa independência intelectual da Europa, a derrubar a nossa insegurança e fortalecer a nossa autoestima com vistas a cicatrizar nossa grande ferida oitocentista. Neste sentido, o modernismo viria a exercer um papel decisivo na anulação do dilema, criando uma nova forma de ufanismo pela ironia autocelebratória, a la Oswald de Andrade, ou por um lirismo telúrico, presentes na obra de Mário de Andrade, Villa Lobos e tantos outros.

Silviano Santiago, em A atração do mundo , chama a atenção para um trecho de uma carta do jovem Carlos Drummond de Andrade endereçada a Mário de Andrade, logo após a famosa visita deste a Minas Gerais, em 1924. Dizia Drummond: “Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto”.

Nesta afirmação, Mário vê uma manifestação sintomática de uma nova forma de doença tropical e responde ao jovem poeta: “o Dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. O sentimento de desamparo do indivíduo provinciano que se transforma em aspiração cosmopolita é caracterizado por ele como “[a]tragédia de Nabuco, de que todos sofremos”; sofrimento que somente poderia ser transmudado se nós brasileiros enfrentássemos o nosso passado nacional: “Nós já temos” – escreve Mário – “um passado guassu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente [...] Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo, pra fase de criação. E então seremos universais, porque nacionais”.

Depois de 1922, desenvolvemos uma tolerância progressista, que contempla um vasto número de manifestações culturais, por mais acanhadas, como podendo ser um indício de nossas raízes e de uma identidade, sempre procuradas. Essas manifestações constituiriam, por assim dizer, o material de base da elaboração estética dos modernos que nos conduziriam ao nosso cerne, aquele capaz de receber o selo do suspiro bandeiriano: Tão Brasil. Neste mesmo movimento, foram postos de lado ou banidos, por exemplo, os comentários mal-humorados e pessimistas dos Silvios Romeros e dos Monteiros Lobatos, que combinavam nos seus trabalhos a estigmatização do atraso nacional e o apelo ao patriotismo.

A ênfase dada pela elaboração intelectual era, portanto, a busca de uma síntese que assumiria quase que obrigatoriamente uma dimensão étnica, como na obra de Gilberto Freyre, em que se apontava para a possibilidade de uma civilização nascida da hibridação entre os três grupos que estão na origem da formação do País; síntese que nos identificasse, nos redimisse, eivada de forte conotação narcísica. Afinal, como ironiza Hermano Viana, mesmo o nosso internacionalismo acaba se transformando em antropofagia.

Pode-se dizer, sem muito risco, que a obra de Ariano Suassuna se inclui nessa linha de desenvolvimento. Assim, ele procura identificar uma origem e uma tradição reais da cultura brasileira, pelo menos em suas manifestações nordestinas, que, por um lado, vai perseguir (quase como uma provocação) até os seus primórdios, nas manifestações rupestres de um homem brasileiro do paleolítico; e por outro lado, a situa geográfica e historicamente como advinda de uma tradição medievo-ibérica, se estendendo talvez até a península italiana de Dante e Petrarca. Esse amálgama de matéria-prima e de criação artística – assinalado por um gesto normativo do autor –, nas quais ele também inclui as contribuições dos povos indígenas e africanos, ter-se-ia constituído em toda uma cultura cujos valores iriam servir de base a arte brasileira e alimentariam uma civilização autenticamente nossa.

Haveria uma comunicação permanente entre as chamadas cultura popular e erudita, cabendo, no entanto, aos intelectuais “a organização consciente” da matéria poética, parafraseando Mário de Andrade na sua Carta aberta pra João Alphonsus . Em Ariano, essa organização tomou uma forma abrangente e programática – a de um movimento estético, o armorial – que constitui quase uma liturgia; e eu utilizo o termo também para realçar algo nem sempre lembrado: a presença da religião, ou mais precisamente do catolicismo, na sua obra.

Em suas aulas-espetáculos, ouvi Ariano dizer que a sua poesia – aliás, pouco conhecida, mas de alta qualidade – constituiria a matriz principal de onde ele teria derivado todo o seu trabalho. Nela, o fervor místico assume muitas vezes uma forma solene, ritualizada, um tom profético que adota uma profusão de símbolos imagéticos (O Sol, a Lua, o Rei) combinando temas como a Morte e o Destino (frequentemente em maiúsculas) com a saga nordestina. Essa maneira contrasta com – embora também complemente – as manifestações mais alegres, singelas e coloridas do catolicismo popular, que o nosso autor incorpora frequentemente na sua prosa: o culto a Nossa Senhora ou os embates do homem com o Diabo, presentes em trabalhos como O Auto da Compadecida.

Emendando o que disse Caetano, em algum lugar que esqueci, ser brasileiro não é nada natural, mas algo que, embora inventado, adquiriu, por assim dizer, naturalidade. O problema da identidade nacional continua a ter imensa importância expressiva e a vida tenaz dos grandes símbolos; vida real, portanto. Não seria por acaso que Gilberto Gil, fundador do tropicalismo, um dos pontos mais altos e complexos nesta nossa saga intelectual, insistiria em dizer: “eu não tenho medo de não ser brasileiro.”

No começo dos anos 1950, Richard Hoggart, conhecido antropólogo britânico, um dos fundadores da chamada crítica cultural, encontrou um jovem pesquisador e bolsista da Fundação Fulbright que se identificava como professor de alguma coisa denominada por ele American Studies.

– O que é isso?, perguntou Hoggart.
– Um novo campo de pesquisa e de ensino interdisciplinares, foi informado.
– Isso é novidade?, reagiu Hoggart.
– Sim, combina o estudo de história e literatura, retrucou o jovem.
– Mas, nós fazemos isso há um tempão, insistiu Hoggart.
– Claro, mas nós olhamos a sociedade americana como um todo – o conjunto da cultura, em todos os níveis: erudito e popular.

O inglês que acabara de publicar o seu The uses of literacy (no Brasil: Utilizações da cultura), um trabalho pioneiro sobre a cultura da classe operária britânica não se deixou impressionar, e permaneceu indiferente. Depois de um momento, já impaciente, o seu interlocutor disse irritado. “Mas, você não está entendendo, eu acredito na América! (I believe in America!)”.

Para Hoggart, que não imaginaria na Inglaterra uma disciplina com o nome de “Estudos ingleses”, introduzir uma afirmação de fé em meio a uma discussão metodológica pareceu cômico. Mas, sendo antropólogo, ele não poderia deixar de registrar a história.

Do começo dos anos 1970, durante o governo Médici, quando para os exilados não havia praticamente esperança alguma de retornar ao Brasil, eu vi meu pai na Argélia pesquisando diligentemente em livros de história para escrever um documento político – um opúsculo que circularia em versão mimeografada – que ele viria a intitular não sem alguma malícia (por causa do livro homônimo de Lênin) A questão nacional. Como epígrafe, pinçou seletivamente alguns versos de um poema de Carlos Drummond de Andrade: Hino nacional, que se encontra no Brejo das almas:

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

[Aqui, ele elimina alguns versos]

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Durante anos eu identifiquei essa seleção de versos com o poema inteiro de Drummond e segui o que parecia ser a intenção de meu pai: a de ver neles, uma versão pungente e patriótica: se nenhum Brasil existe, é preciso, portanto, inventá-lo. Se brasileiros não há, é preciso convocá-los.

No entanto, lendo a introdução da nova edição Aguilar das Obras Completas de Carlos Drummond de Andrade, eu me deparei com esse julgamento de Silviano Santiago:

A convivência com a realidade provinciana torna cego o observador e empobrece o analista. Por mais nocivo que seja o despaisamento, ele sempre alarga o raio de visão do intelectual para que enxergue de maneira provocadora ou irônica o que não consegue ver na naturalidade do dia a dia. No mais, [deve-se] ir direto a este verso definitivo de Brejo de almas, onde a negação e a pergunta iconoclastas alertam para os perigos do ufanismo e denunciam os seus limites na década de 1920: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”

Ao reler o poema inteiro eu tenderia a dar mais razão a Silviano: o tom irônico e dissolvente permeia o conjunto tão habilmente e patrioticamente depurado na epígrafe do meu pai. E, no entanto, há Drummond para todos, porque a veia triste e melancólica dos versos do seu Hino nacional aponta também indubitavelmente para uma nostalgia do que deveria existir e não há.

A questão nacional, hélas, permanece: ela não poderá ser simplesmente eliminada da política e nem tampouco desaparecer do universo da criação artística e literária. Talvez, porque são muitos os que, a exemplo do jovem professor americano que “acreditava na América”, ainda “acreditam no Brasil”. Quanto a Ariano Suassuna, nós já sabemos este sempre acreditou e, para ele, a identidade nacional existe e ocupa um lugar central na sua criação.

JOSÉ ALMINO DE ALENCAR nasceu no Recife em 1946. Entre 1966 e 1985 viveu entre Paris, Nashville, Chicago e Nova York. É doutor em Sociologia. Trabalhou no Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU. Pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e autor de A estrela fria (poesia), O motor da luz (ficção) e Uns e outros (ensaios). 

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