Perfil

Túlio Feliciano e o samba

Produtor musical e diretor pernambucano, que trabalhou com os principais nomes da MPB, tornou-se um dos profissionais mais requisitados pelos sambistas nacionais

TEXTO Cleodon Coelho

02 de Outubro de 2017

Nascido em Timbaúba, passou a infância no Recife da década de 1950, e, no início dos anos 1970, circulou pela Europa

Nascido em Timbaúba, passou a infância no Recife da década de 1950, e, no início dos anos 1970, circulou pela Europa

FOTO Léo Caldas

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 202 | outubro 2017]

Quando fala de sua vida, Tulio Feliciano costuma dividi-la em lado A e lado B. Exatamente como tantos discos que ajudou a tornar clássicos. Nascido em Timbaúba, ele cresceu no Recife dos anos 1950, com passagens pelos colégios Nóbrega e Marista. Diretor e produtor musical que trabalhou com praticamente todos os artistas que importam na MPB, principalmente dentro do samba, o pernambucano sempre deu um jeitinho de colocar uma luz local em seu trabalho. De volta ao Recife após mais de 40 anos vivendo no Rio de Janeiro, fez do Bairro de Setúbal o seu quartel-general. “A mudança foi só pessoal. Continuo atuando no Rio, desenvolvendo projetos e realizando produções. Do Recife, fico em contato permanente com o mundo”, situa, em entrevista à Continente.

Na família de Tulio, todo mundo tinha que estudar música. Fazia parte da formação intelectual, como aprender português ou alguma língua estrangeira. “Com cinco anos, comecei no piano. E fui o único que levou essa carreira mais longe. A obrigação era tocar bem, mas como músico amador.” Estudar para virar doutor era o que sua família sonhava para o tal lado A. Os pais nem imaginavam que o instrumento, destinado ao lado B, o ajudaria a desenhar seu futuro. “Minha infância teve muitas histórias engraçadas. Sou canhoto, tentaram me obrigar a escrever com a mão direita. Foram sessões de tortura.”

Ainda criança, Tulio deixou Timbaúba com destino ao Recife. Passou o resto da infância e a adolescência em Casa Forte, em um meio intelectual. Seu avô, o poeta Balthazar de Oliveira, promovia rodas de poesia no bairro. Desde pequeno, Tulio o acompanhava nos saraus, nos quais conheceu pessoas como Carlos Pena Filho e Mauro Motta, uma geração de ouro. “Ficava fascinado vendo o meu avô declamar. Ainda mais sabendo que tinha tanta gente importante no mesmo ambiente”, conta.

A arte alcançava outras ramificações de sua árvore genealógica. Sobrinho do pintor Montez Magno, ele viu nascer o movimento de ateliês em Olinda. “Meu tio é outra pessoa importante na minha vida. Todo aquele ambiente artístico era muito instigante”. Mas o piano não saiu de cena. Tulio teve aulas com Waldemar de Almeida – pai do maestro Cussy de Almeida –, considerado o melhor professor da cidade. “Apesar do sonho da minha família, sempre fui estimulado a ouvir música de câmara, ir a concertos. Isso foi primordial para o meu futuro.”

A turma de teatro também atraía as atenções do rapaz. “A partir de um momento, passei a viver no TPN, o Teatro Popular do Nordeste, convivendo com Benjamin Santos, Hermilo Borba Filho, Leda Alves, Lúcia Neunschwander. Acompanhava os ensaios, via a mesma peça dezenas de vezes… Tudo aquilo me alimentava.” O que ele não imaginava eram os tempos sombrios que estavam por vir. “Quando veio a ditadura, fomos quase que compelidos a assumir um papel. Virei militante político, entrei para uma organização clandestina, sabendo que poderia sofrer de tudo. Vários amigos meus desapareceram, como Duda Collier, Fernando Santa Cruz, pessoas que sumiram para nunca mais voltar. Toda a euforia que eu vivia se transformou rapidamente numa atmosfera pesada.”

Com 19 anos, Tulio foi preso, passando três meses detido no Quartel do Derby. “Quando me pegaram, eu estava com uma amiga. Coincidentemente, o delegado tinha sido colega de sala do pai dela e amigo de farra do meu avô. Então, ele nos deu uma certa proteção. Mas vivemos todos os sustos pelos quais alguém que está trancafiado passa, sem saber o que pode acontecer nos próximos minutos.” O trauma da experiência deixou sequelas. Depois de ganhar a liberdade, Tulio ficou com medo de andar na rua. “Ninguém estava livre, de fato. Se acontecesse qualquer coisa, a gente tinha que se esconder, pois iam correndo buscar quem eles quisessem. Graças a Deus, nunca foram me buscar.”

A sua atuação na militância também trouxe outras consequências. Uma lei que obrigava as universidades a fecharem a matrícula de todos os alunos “subversivos” virou seu calcanhar de Aquiles, já que a primeira cidade a colocá-la em prática foi o Recife. Tulio Feliciano, o mesmo nome que estaria no topo das fichas técnicas de tantos momentos antológicos da MPB, foi incluído na lista dos 13 “perigosos” estudantes que inauguravam a lei. E o pior: ele não poderia mais estudar em nenhuma universidade do Brasil.

O RIO E A EUROPA

Há tempos, o pernambucano já pensava em se mudar para o Rio de Janeiro. A decepção apressou a decisão. Saíam de cena as ruas ainda bucólicas de Casa Forte, com suas acácias-amarelas, o sabor da galinha de cabidela e da sinfonia marítima, as rodas de violão no Parque 13 de Maio e no Seminário de Olinda, que lhe abriram os ouvidos para a música brasileira, os olhos de Madalena Freire, filha do educador Paulo Freire e musa de sua geração… Aquele Recife que formatou sua personalidade artística não lhe pertencia mais. Chegando ao Rio, Tulio conseguiu respirar aliviado. “Foi uma redenção. Mesmo com a ditadura, a cidade fervia. A resistência se manifestava nas artes. O teatro que se fazia, a música que se ouvia, era tudo de muita qualidade. Também pude viver minha sexualidade com mais liberdade.”


Nos anos 1970, Túlio passou por vários países do continente europeu

Depois de dois anos, partiu para a Europa. E foi lá que enterrou de vez o desejo da família de vê-lo doutor. “Fiquei quase dois anos em Londres, depois mais quatro em Paris. Estamos falando da virada dos anos 1960 para 1970, uma época de desbunde, das comunidades, do movimento hippie”, situa. Na capital francesa, estudou Semiologia da Arte na École Pratique de Hautes Etudes e fez um estágio no Magic Circus, com o icônico Jerôme Savary. Sem falar que viu tudo o que podia em termos de espetáculos, de Annie Girardot a Françoise Hardy. Entre tantas histórias, até apresentou os discos da estrela Josephine Baker para uma jovem modelo jamaicana que sonhava em ser cantora. O nome dela? Grace Jones.

Ao retornar ao Brasil, na segunda metade dos anos 1970, Tulio escolheu novamente o Rio, que – mesmo tendo lá vivido por tão pouco tempo – virou sua referência nesses anos de Europa. “Na verdade, fui perdendo o contato com a cultura pernambucana.” Reinstalado, pensou até em fazer uma tese sobre música brasileira para levar de volta para a França. A tese, claro, nunca saiu. E ele foi ficando, ficando… “Viajei várias vezes para Paris, mas nunca mais morei lá.”

Em pleno verão carioca de 1978, arranjou um bico de fotógrafo, uma das tantas atividades que fazia para se manter. Após uma bem-sucedida temporada com Dominguinhos no Projeto Seis e Meia, Nara Leão resolveu estender a parceria, lançando um novo espetáculo. Por intermédio de Wellington Luís, que produziria o show, Tulio foi até a casa da cantora, para fazer as fotos de divulgação. Os dois se entenderam de cara e, entre uma pose e outra, o papo fluiu como se fossem velhos amigos se reencontrando. Nara gostou de suas observações sobre música, quis saber como tinha sido sua passagem por Paris, onde também morou… Em pouco tempo, ele estava assinando a direção do show da cantora.

No palco, Nara e Dominguinhos eram acompanhados pelo grupo Ritmos Nordestinos e pelos Carioquinhas, que tinha entre seus integrantes Raphael Rabello e Maurício Carrilho, ambos começando a carreira. O sucesso atravessou o ano, percorrendo todo o Brasil. Tulio começava sua vitoriosa trajetória, recebendo elogios de críticos como a severa Maria Helena Dutra, que escreveu em seu comentário no Jornal do Brasil que o espetáculo receberia “tranquilamente, e sob qualquer tipo de júri, nota 10 em harmonia e evolução”. Tinha até uma sequência de frevos no final que deixava a cantora soltinha em cena. A cumplicidade entre os dois seguiu firme até a musa da bossa nova sair (prematuramente) de cena, aos 47 anos, em 1989. “Eu nem lembrava que a gente tinha se conhecido fazendo as fotos. Foi uma forma engraçada que o destino escolheu. Hoje, não sei mais nada de fotografia”, diz ele.

O burburinho em torno do show chamou a atenção de outros músicos. “Quando o meu nome começou a aparecer, todo mundo quis me conhecer.” Logo, Tulio estava dirigindo o MPB 4 e o Quarteto em Cy no espetáculo Cobra de vidro, mais um campeão de bilheteria. Artistas como Elizeth Cardoso, Marlene, Cauby Peixoto e Emílio Santiago foram ajudando a encorpar seu currículo. Mas o grande salto para transformá-lo em referência do samba veio com um show em homenagem a Silas de Oliveira, autor de Os cinco bailes da história do Rio. No palco, juntou Dona Ivone Lara e o recém-estourado Fundo de Quintal para contar Os cinco bailes da história de Silas, o que o levou a figurar em todas as listas de melhores do ano.

Tulio acabou tragado pelo gênero. “Esse universo virou minha vida. Não me tornei exclusivo, mas o samba tem uma marca indelével na minha história.” Beth Carvalho é um dos nomes cuja trajetória se confunde com a dele. Desde que viu Os cinco bailes…, a cantora carioca não abre mão de ter o pernambucano assinando seus trabalhos. Com Zeca Pagodinho, a parceria também é longa. O ritmo o levou de volta à Europa e, ainda, aos Estados Unidos e ao Japão. “Já produzi 10 shows diferentes para o público japonês.”

Trajetória de Beth Carvalho é marcada pela presença do produtor 

Surpresas não faltam na história de Tulio. A formação erudita, cultivada desde a infância, aproximou-o das orquestras sinfônicas. Ao lado do maestro Wagner Tiso, desenvolveu uma vitoriosa série que mistura jazz e MPB. “Eu sei ler música. Isso é um diferencial importante”, frisa. Wagner e sua ex-mulher Gisele Goldoni viraram família. Ela é, até hoje, uma de suas principais parceiras de trabalho.

PERÍODO SABÁTICO

Mas, apesar de estar sempre cercado de nomes estrelados, Tulio nunca se deixou enfeitiçar pelo glamour. “Trabalhar com arte é muito bom, mas cansa, causa estresse.” Há cerca de dois anos, sofreu uma depressão profunda e foi aconselhado pelos médicos a tirar um período sabático. “Eu não estava gostando de nada do que fazia, não sentia entusiasmo”, revela. Foi quando seus irmãos sugeriram que voltasse para o Recife. Mas o pedaço da cidade que escolheu agora era outro, bem longe de Casa Forte, local que o viu crescer. “Para mim, Boa Viagem acabava na pracinha. Nem sabia que existia isso aqui.”

No novo bairro, começou a caminhar e a fazer amizades. Aos poucos, voltou a trabalhar (“meu prazo sabático durou poucos meses”). Com a ajuda da tecnologia, preenche a agenda com videoconferências, desenvolvendo suas ideias e organizando espetáculos. Tudo como era antes. Mas a vida não é só trabalho e ele ainda sentia falta de um refúgio. Até que descobriu um quiosque, em uma rua atrás de seu prédio, que logo transformou em seu “quintal”. A recuperação estava completa. “Ele gosta de pedir um vinho ou uma cachacinha, sempre com bastante água. Adora carne de sol e charque desfiada, puxada na manteiga de garrafa. Todo dia, depois das 20h, ele aparece por aqui”, entrega o proprietário Ruy Novaes, que acabou virando amigo.

Lá, durante esses momentos de relax, foi formando novos laços. O delegado Roberto Wanderley e a atriz Hermila Guedes, casados há cinco anos, conheceram Tulio em uma tarde de farra. “Ele não fica contando vantagem, dizendo o que fez ou deixou de fazer. O que nos aproximou foi a paixão por Manuel Bandeira e as experiências em Paris”, conta Roberto. O cantor Romero Ferro também se impressiona com a simplicidade do produtor. “Quando eu disse que era músico, ele se mostrou genuinamente interessado no som que eu fazia. Poucos dias depois, estávamos indicados ao Prêmio da Música Brasileira. Eu, como cantor popular. Ele, como produtor do grupo Galocantô. Foi uma bela coincidência.”

Livre da depressão, Tulio segue sua vida dividido entre o Recife e o Rio de Janeiro. “Aqui, o dia dura muito, consigo fazer um monte de coisas. No Rio, eu acordo e já é de noite”, brinca. Claro que a ligação estreita com o samba, vez por outra, acaba provocando cobranças dos conterrâneos. “Não precisam nem se preocupar. O frevo, para mim, é uma coisa celestial. Está acima de tudo. Vassourinhas, Fogão, Madeira que cupim não rói, tudo isso faz parte do meu repertório sentimental”, avisa. Aos 70 anos, recém-completados, continua cheio de planos, provando que seu lado B estava mesmo, desde sempre, destinado a ser o lado A.

CLEODON COELHO, jornalista e produtor da TV Globo. 

veja também

Mello

Biografias de canções e outras palavras

Marina Rheingantz