Passados 70 anos, a assimilação desse quadro é tal, que, provavelmente o estranho é perguntar e conceber imagens que não sejam instantâneas. O anacrônico é não ver na hora, a espera foi suprimida. A expectativa entre entregar as fotos no laboratório e receber o resultado dias ou horas depois era algo recheado de algum tipo de ansiedade ingênua e divertida, que perdeu seu lugar de ser na cultura da fotografia.
Em um mundo de crescente aceleração da experiência do tempo atravessando nossas dinâmicas do dia a dia, pensar o surgimento da Polaroid é quase um triunfalismo tecnológico para compreender a fotografia atual. Digital, móvel, em redes, compartilhada e, obviamente, instantânea. Isso é tão verdadeiro, que a associação entre as palavras Polaroid e fotografia formam uma imagem conceitual única. E você, que está lendo aqui, sabe qual é.
Temos, com a fotografia contemporânea, quase uma obrigatoriedade de a mesma circular praticamente no mesmo momento em que é produzida. Isso aponta para um sintoma mais amplo, na nossa relação com as imagens e a forma de vivenciar a assimilação do tempo que a fotografia permite. A Polaroid, certamente, não inventou esse projeto. Mas o que permite que justamente isso seja o modo atual de experienciar a fotografia foi, sim, uma abertura de cenário acontecida há 70 anos.
CLIQUE ÍNTIMO
No entanto, a importância e relevância da Polaroid não se restringem à redução entre o tempo da tomada da imagem e sua visualização. O argumento de Edwin Land era que, idealmente, tudo o que seria necessário para ter uma boa fotografia era, simplesmente, tirar a fotografia. Isso envolvia até dispensar o trabalho de enviar o filme para o laboratório para ser revelado. Os desdobramentos desse aparente processo de simplificação para o usuário são diversos e vão além da questão do instante.
Rapidamente, logo após a sua comercialização inicial e superação dos primeiros problemas técnicos (sim, a Polaroid teve que fazer vários recalls para ajustes no sistema da câmera e dos filmes que usava, pois os primeiros exemplares geravam fotografias que esmaeciam e se apagavam em poucas semanas após serem tiradas), surgiram então usos gerados pela refuncionalização feita pelos usuários. Exemplo? O fato de nenhum olhar estranho ter acesso ao conteúdo da imagem – mesmo no momento de processamento de um filme no laboratório – fez da Polaroid o dispositivo padrão, antes do digital, dos experimentalismos do clique íntimo, feito da porta do quarto para dentro, entre fotógrafo e fotografado. A instantaneidade da impressão na hora não gerava cópias. O sistema não funcionava no binômio clássico do negativo único/vários positivos para geração de cópias impressas. Assim, cada imagem era essencialmente original, pertencente a um momento e ao dono de uma Polaroid.
Para além da alcova da fotografia, a Polaroid se mostrou particularmente útil em cruzamento com outras áreas. No cinema, seu uso foi fundamental para o aperfeiçoamento e precisão do trabalho dos continuístas; na moda, como registro das experiências na elaboração de coleções; na fotopublicidade, como obtenção da imagem prévia antes do clique definitivo; nos usos de investigação forense, registrando cenas de crime; em usos científicos e um sem fim de aplicações.
A cópia única e original, aliada à simplicidade de uso e ao controle sobre o material obtido, rapidamente atraiu também a atenção de um grupo específico de gente ligada à ideia de autenticidade da obra: fotógrafos e artistas visuais interessados nas possibilidades expressivas da Polaroid. Já nos anos 1950, Edwin Land se aproximou do renomado fotógrafo Ansel Adams, o que redundou na contratação deste como consultor da empresa. Adams produziu para a companhia toda uma série de instantâneos que hoje está abrigada na International Polaroid Collection, no Musée de L’Elyseé em Lausanne, Suíça. Além dessa coleção, duas outras são de referência para a história do formato: a Polaroid Collection de Amsterdam e a sua homônima de Cambridge, EUA. Adams era um entusiasta e permaneceu como consultor, testando todos os filmes e câmeras da companhia até o seu falecimento, em 1984.
Ora, se até Ansel Adams, gênio da fotografia de grande formato em alta qualidade usa a Polaroid, por que eu não vou usar? Essa pergunta retórica fez com que vários fotógrafos e/ou artistas visuais perdessem um certo pudor ou purismo em relação ao dispositivo, meio com jeito de brinquedo, e lançassem mão de experimentar a “coisa” das imagens instantâneas. Num passar de olhos sobre os catálogos da International Polaroid Collection, deparamo-nos com trabalhos de André Kertész, Robert Mapplethorpe, Helmut Newton, Robert Rauschenberg, Andy Warhol, David Hockney, Jeanloup Sieff, Ralph Gibson, Ullay e Marina Abramovitch, Stephen Shore, Arnold Newman. Também os brasileiros Vik Muniz, Cássio Vasconcellos, Gal Opido, Armando Prato, Luis Achutti, e tantos outros que flertaram, produziram e usaram a Polaroid como meio expressivo.
'Noturnos de São Paulo', série de Cássio Vasconcelos
O óbvio é que a Polaroid não se constituiu apenas em um sistema de fotografia. Com os usos cotidianos, dos artistas e fotógrafos, pouco a pouco foi se criando uma cultura da fotografia instantânea. Em parte, isso se deu pelo branding da marca, criando uma ideia de estilo de vida fotográfico, descolado, fácil, mágico e simplificado; e, em parte, devido à astúcia do seu inventor em resguardar a propriedade intelectual e criativa do seu produto.
Foram várias as câmeras lançadas no mercado. De Polaroid para crianças até modelos de grande formato para fotografia em fine-art. O apogeu da marca se deu nos anos 1970. O maior clássico, sem dúvida, a câmera SX-70, lançada em 1972 e que causou inveja na poderosa Kodak. O motivo? A foto já saía da câmera pronta, sem nenhuma necessidade de manipulação por parte do usuário. Esse modelo gerou uma guerra jurídica entre a Polaroid e a Kodak, só resolvida em 1978, em favor da Polaroid.
A questão era que, como a Polaroid era dona, naquele momento, de um mercado mundial de um bilhão de fotos por ano, ela não tinha como suprir toda a demanda de suas linhas de produção com suas próprias matérias-primas. Um acordo, ainda dos anos 1950, assegurava a compra desses insumos justamente da… Kodak! Ou seja, a rival via a Polaroid crescer com matéria-prima que ela fornecia por força de contrato. Ao mesmo tempo, não tinha como entrar no mercado com um produto concorrente porque Land patenteava absolutamente tudo de modo a proteger a sua companhia. Com isso, monopolizou a comercialização da fotografia instantânea por décadas. Nem outros gigantes do setor, como Nikon, Canon e Fuji, conseguiram entrar nesse nicho de mercado, ao menos até a queda compulsória do registro, após 50 anos.
AGENTE DE CULTURA
Como se vê, Edwin Land era um caso de inventor que acumulava habilidades nos negócios. Entre as décadas de 1950 a 1970, a Polaroid foi considerada a mais inovadora empresa de tecnologia do mundo, só possuindo menos patentes que Thomas Edison. Não por acaso, Steve Jobs, assumia abertamente ter várias vezes visitado Edwin Land e usado a Polaroid como modelo para criar a Apple, aliando qualidade com simplicidade de uso. Certamente, buscando caminhos para criar para a sisuda indústria dos computadores o que seu ídolo tinha criado para a indústria da fotografia: um ícone pop. Não só uma fábrica de máquinas, mas um agente da cultura visual massificada.
Verdadeiramente, o aspecto de inovação ajuda a compreender o marco simbólico construído pela Polaroid. É interessante observar como em diferentes áreas o conceito da fotografia instantânea é ressignificado para além dos limites dos modelos de negócios e mesmo da fotografia.
Hoje, a fotografia instantânea do tipo Polaroid foi ultrapassada pela disponibilidade de bilhões de dispositivos de fazer imagem como celulares, computadores e até câmeras fotográficas. Nada pode ser mais instantâneo no mundo atual que o estilo de vida digital, atravessado totalmente pela lógica do aqui e agora. Talvez essa aceleração seja tal, que podemos perceber que a própria ideia de instante foi sendo encolhida, compactada, para uma fração de segundo que se ajusta a um tempo automatizado, que não dá brecha para pegar ar e contemplar, a tal ponto que temos, ironicamente, mais tempo para fotografar do que para ver as imagens.
A fotografia digital incorpora a instantaneidade, mas isso vem de antes. A história da Polaroid e, depois, dos seus clones e sistemas derivados, nos mostra claramente que é possível pensar, dentro dos percursos da fotografia, uma outra história da concepção da imagem que pode ser vista na hora em que é tomada.
Com os diversos revezes que sofreu com a generalização da fotografia digital, e a sua dificuldade de se adaptar à era das imagens em formato de bits e megapixels, em 2008 saiu da sua última linha de montagem o último cartucho de filme instantâneo da empresa. Vale conferir o documentário Time zero, the last year of Polaroid film (inédito e sem tradução para o português), de 2012. Que acompanha o último ano de produção dos filmes instantâneos e é construído a partir dos depoimentos de ex-empregados da firma e de fotógrafos fanáticos pelo formato. O resultado na tela é de cortar o coração.
Outros sistemas ainda existem, de modo vestigial, ou como um hobby, pertencentes a outras empresas. Há iniciativas como a do austríaco Florian Kaps, que lançou com relativo sucesso – para fissurados em fotografia – o Impossible Project. Este consistiu em recuperar uma das fábricas da Polaroid, em Enschede, na Holanda, convocar antigos funcionários e reativar a linha de montagem de filmes instantâneos. Porém, o projeto esbarra em obstáculos como a baixa escala de produção, o custo alto, as patentes registradas e a ausência de produtos químicos que não existem mais no mercado, o que de certo modo dificulta que os filmes do Impossible Project se equivalham em resultados e em qualidade aos obtidos pela Polaroid. Todavia, a cultura da fotografia instantânea se firma não somente nas assimilações operacionais da fotografia digital, mas também se adapta a esta.
São incontáveis, neste sentido, os aplicativos, atual coqueluche do mundo digital, que se voltam para a fotografia e, o mais interessante, transcodificando para os efeitos programados as respostas visuais que correspondem exatamente ao tipo de imagem entregue pela Polaroid e congêneres. O que é, sob o ponto de vista dos filtros e ajustes, o Instagram, senão vários estilos de texturas, cores e acabamentos que eram comuns à Polaroid? – memória plástica. Mais que isso, agregação de valor simbólico. O próprio nome Instagram apela ao conceito da imagem instantânea produzida com simplicidade e ao sabor do acaso.
Walker Evans fez série com a Polaroid
ATRAVESSADOS PELO TEMPO
A força simbólica da marca agregada à ideia de instantaneidade foi além da fotografia, tendo inspirado, no terreno da ficção, filmes nos quais a compreensão da imagem em modo Polaroid é essencial ao enredo. Vale conferir, por exemplo, Amnésia (Memento, 2000), escrito e dirigido por Christopher Nolan e cujo enredo é sobre um homem que sofre de distúrbios de memória recente e tem crises de apagamento das recordações a cada cinco minutos. O personagem, então, lança mão de várias estratégias para encontrar segurança diante dos desdobramentos da trama, já que não tem a memória natural. Um deles, além das tatuagens e anotações de caneta no corpo, é justamente o uso de Polaroids para criar esse lugar de referência. Poucos filmes exprimiram de modo mais preciso a relação entre fotografia e memória no momento em que a cultura substitui as imagens analógicas pelas digitais, e alterando os contratos entre as fotografias e a elaboração do nosso pertencimento a este mundo.
Há ainda o filme de terror Morte instantânea (Polaroid, 2017), que está prestes a ser lançado, cuja trama ronda uma câmera Polaroid SX-70 mal-assombrada e achada dentro de uma caixa em que há uma inscrição ao lado do botão do clique: “Não clique”! Obviamente, adolescentes não resistem a esse tipo de aviso. E, obviamente também, aqui não é lugar para dar spoiller.
Há, no mundo, diversas ações em que a fotografia instantânea está no cerne do processo. É o caso do Projeto Lambe-Lambe, uma ação de diversos fotógrafos que tem lugar no carnaval do Recife há mais de 20 anos. Não é feito com Polaroid, mas com outra marca de filmes instantâneos. O resultado, com publicações, constitui-se num rico registro dos personagens carnavalescos das últimas décadas. Mais que isso, ao fotografar e devolver imediatamente às pessoas a própria imagem impressa, elabora-se uma mescla que envolve a fotografia como brincadeira de carnaval, uma peça de afeto e recordação e um pertencimento à festa.
Há duas questões que podem ser formuladas e que abrigam o percurso da Polaroid no mundo da fotografia. A primeira, que vem lá dos anos 1940, perguntava o porquê das imagens não serem vistas na hora. A segunda, contemporânea, que corresponde ao seu ocaso somado ao da fotografia analógica, é justamente a antípoda: por que as imagens têm que ser instantâneas? O interessante é que a Polaroid fez toda essa transição e responde às duas perguntas.
Mas as questões da fotografia não dizem respeito somente ao fotográfico. É sempre uma questão de como práticas se tornam também fenômenos culturais. E a cultura assimila e reflete como nós somos atravessados pelo tempo. Tirando fotografias, construindo representações, memórias e sentidos, apropriamo-nos do mundo à nossa volta. A fotografia tem a capacidade de trazer, coladas a cada imagem, as condições que as tornaram possíveis. Seja 70 anos atrás, hoje ou no futuro, o que não foi nem será menos excitante ou importante é a nossa relação com o tempo das fotografias. Aquele tempo da memória, mas também o ciclo que nos permite conceber e reconhecer as imagens que fazemos.
Nesse sentido, olhar para a história da Polaroid como uma experiência ultra-analógica de imagem instantânea não pode ser feito como sendo algo anacrônico ou mesmo atrasado para os nossos dias. É exatamente o contrário: é perceber, ainda nos anos 1940, os primeiros vestígios da aceleração da experiência do tempo que agora presenciamos. Mais: é perceber a gênese do fenômeno da fotografia como performance no preciso momento em que é elaborada. Setenta anos atrás, poucas coisas poderiam apresentar ao mundo uma ruptura como esta, de modo mais radical, inusitado, inimaginável e, obviamente, instantâneo.
JOSÉ AFONSO JR., professor da UFPE e pesquisador.