Vermelho é uma cor associada à violência, ao fogo e à guerra, tanto quanto se aproxima da paixão e do amor. Traz reações físicas e metafísicas, assim como representa a prosperidade, felicidade e boa sorte, dependendo de onde vivemos. Tem esse caráter geográfico onde estão distantes e opostas em certas culturas. Aquelas, cujo andar é mais cartesiano, e outras que trazem a espiritualidade maior do inexplicável e do intangível.
Em Açúcar, Ricardo Labastier trafega por todos esses caminhos. Inspira-se na formação social brasileira, sua onipresente miscigenação, e em um conteúdo repleto de equívocos e controvérsias, diz o artista, que se deixou levar em direção a essa vermelhitude. A representação do sangue derramado, base da nossa ocupação colonial brasileira, violenta e predatória, que se junta à sua experiência real ao presenciar um “crime banal”, associada ao desejo premente de confeccionar artesanalmente seu conteúdo fotográfico.
Em uma abordagem mais construtivista, percebemos que todas essas fontes discrepantes anotadas por Labastier estão distantes de uma habitual coerência à qual a arte fotográfica vive melancolicamente associada. Ela é um elemento que não pertence a este mundo, mas, sim, um fato que nos coloca diante do pensamento ao abordar seu caráter estético, como sugere o pensador americano Nelson Goodman (1906–1998). O fotógrafo nos propõe, a priori, assemblages trazendo uma reflexão estética referenciada pelo uso da cor, pelos códigos e anotações que apresenta.
'Nosso país'. Foto: Ricardo Labastier
As assemblages, como bem explicou o artista francês Jean Dubuffet (1901–1985), “vão além das colagens”. Partem de uma espécie de estética de acumulação, materiais que são incorporados à obra de arte. Aqui, nas fotografias de Labastier, representadas por fios, moedas, rendas, a vela derretida, armas e terços católicos. Não trazem a ruptura das fronteiras entre arte e vida cotidiana, mas, ao contrário, reforçam e expõem situações de forma dialógica que dizem respeito à nossa herança e ao presente, muitas vezes dicotômicos.
No processo de criação, uma obra dá lugar a outra, o material derretido, que cobre o vidro, é reutilizado para a próxima obra, e esta só passa a existir na fotografia, uma dinâmica que articula um ciclo permanente, cuja exequibilidade está na exploração desses materiais que carregam na cor complexos apelos psicológicos.
'Zumbi'. Fotos: Ricardo Labastier
Difícil não pensar nos registros dos sincretismos cujos interiores avermelhados eram povoados no Barroco e suas ornamentações abundantes. Ricardo Labastier tem uma afeição a essa palette, presente também em suas obras anteriores, como no livro Abismo da carne (Olhavê, 2014). Entretanto, a justaposição de luz e sombra que caracterizava o Barroco, em Açúcar, é amenizada pela compressão mais profunda da cor vermelha onipresente, da qual saltam sutilmente seus componentes, ainda que não percam a teatralidade procurada, muito menos a sua emoção.
'Kalor'. Foto: Ricardo LabastierAs imagens também trazem um complexo caminho de ressignificação em suas distintas perspectivas da religiosidade, oriundo da utilização memorialística na construção de uma nova realidade percebida pelo autor, que abastece a sua sintaxe e que se propõe, com certo sucesso, a organizar essa fragmentação trazida de diferentes fontes estéticas e conceituais, cujo resultado é a estese que sentimos ao entrarmos nessa ambientação avermelhada criada com emoção, beleza e força que só são possíveis de serem reunidas pelas mãos de um grande artista.
JUAN ESTEVES, fotógrafo, crítico e curador. Escreveu para o caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, para as revistas Iris Foto, Select e Santa Arte Magazine, entre outras. É articulista da revista Fotografe Melhor e edita o www.blogdojuanesteves.tumblr.com dedicado à análise da fotografia.