Se a fotografia é um recurso para entender – “digerir” – o que se viveu, o processo analógico de Welcome home foi importante para permitir ao fotógrafo um novo olhar sobre os registros. Com as capturas em superexposição à luz, as fotografias perdem a referência da realidade – revelam-se em apenas duas cores e têm traços menos definidos. O resultado se dá por conta de uma colorização posterior feita manualmente por Mohallem, reconstruindo as memórias em sua temporalidade analógica, com as imagens ganhando novos significados a partir desse toque, que é de um sentimento pós-experiencial, com a euforia do instante já apaziguada. A superexposição não foi uma escolha premeditada de como o resultado final viria a se tornar, aconteceu naturalmente para que a fotografia interferisse o mínimo possível na experiência vivenciada. O artista não regulava a luz quando fazia os registros e usava a câmera em autofoco.
Relacionar-se é delicado. O contato com o outro leva a um processo de perda do controle, inaugurando um campo de imprevisibilidade. “Amar alguém é amar também suas linhas de fuga”, diz o filósofo chileno-brasileiro Vladimir Safatle. O processo de reconstrução de si a partir do outro envolve boa parte do trabalho de Mohallem, que se transforma a cada realização de suas trajetórias artística e pessoal – difíceis de serem dissociadas.
“Nós temos muito esse ímpeto de ‘penetrar’ o outro, que é fazer as pessoas mudarem de ideia, no sentido de ‘converter’ o outro para o nosso pensamento, ou fazer o outro comprar, ou consumir de algum jeito, admirar, ou seguir, ou dar like… Eu quero ser atingido. Prefiro estar vulnerável. Vulnerabilidade é uma escolha”, diz. “Tento estabelecer uma relação sujeito-sujeito, e não sujeito-objeto. Tenho pavor à postura da fotografia que coloca o fotógrafo ‘dono da produção da imagem’, que olha pra você e lhe julga segundo os valores dele, lhe ‘achata’ e lhe trata como ‘objeto’. Ninguém deveria ser objeto. Todos os encontros são encontros de dois desejos. Os nossos desejos precisam estar em acordo.”
Foi na faculdade que conheceu o trabalho de Claudia Andujar, quando um professor lhe mostrou o livro Yanomami. A relação profunda que a fotógrafa suíço-brasileira desenvolveu com os índios foi inspiradora para o artista. “Lembro o quanto que eu fiquei abalado com o livro. Pedi pra ficar no intervalo sozinho na sala com o livro, fiquei emocionado, porque entendi que essa pessoa tinha uma evolução espiritual tal, de entrega tal, que conseguia fazer aquilo. É um trabalho muito honesto. Aquilo virou minha referência, mesmo tendo certeza de que nunca vou conseguir chegar nesse mesmo lugar”, conta.
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A experiência de Welcome home levou Mohallem para o passo mais difícil: depois de achar um lugar para chamar de “casa” em um país estrangeiro, decide ir conhecer suas origens no Líbano, país que seu pai deixou há mais de 60 anos. Foram duas viagens, uma em 2012 e outra em 2013, período de violência acirrada por conta dos conflitos envolvendo a guerra civil síria e a rivalidade entre xiitas e sunitas. Tcharafna significa algo como “prazer em conhecê-lo”, não exatamente em tradução literal. As fotos são uma junção de “horror e poesia”: lugares inóspitos, passagens bloqueadas, frutos, o sangue amargamente “doce”. Um vídeo – usado na exposição, que também virou fotolivro e está disponível no site do artista – mostra uma conversa entre ele e uma tia que conheceu na viagem.
Em Tcharafna, também se inicia uma pesquisa do artista com parafina – que resulta numa série de objetos vermelhos, “ensanguentados”, com fotos encontradas nos álbuns da família no Líbano. Essa pesquisa se desdobra no seu trabalho subsequente: Terra. Com as questões de Tcharafna ainda reverberando, costurou uma narrativa mais livre, sem um deslocamento datado. “Eu tenho uma questão que é entender quais são os custos de migrar e quais são os custos de ficar na guerra civil. E voltei do Líbano sem entender qual dos dois é pior”, diz o artista.
Terra mira para um lugar diferente, um deslocamento simbólico para um território flutuante de novas experimentações, mas ainda é uma tentativa de entender os vazios que vão sendo deixados – o que faz ponte com a questão migratória. No meio da galeria, um bloco de uma tonelada construído com a terra da própria cidade do artista e parafina remete à sensação de vazio que ficou.
Sobre Terra, a crítica colombiana Julia Buenaventura escreveu: “Trata-se de uma terra ambígua. As fotos da exposição ou vídeos, como Paisagem.2 – que, através de várias camadas de imagens, mostra o movimento das sombras das árvores e, com ele, o vento que as move – são imagens cuja localização geográfica não é identificável. Na frente deles, o espectador está observando qualquer lugar do mundo. Há uma perda de terra, de identidade e origem que Mohallem mostra através de sua história, mas revela uma situação típica do indivíduo contemporâneo”.
Atualmente, Gui Mohallem não está trabalhando em nenhum projeto artístico. Dá palestras e oficinas em várias cidades do país – motivo de sua última visita ao Recife, em que a entrevista para a Continente foi realizada –, mas suas energias têm se concentrado nas ações enquanto ativista pelos direitos humanos, especialmente os direitos LGBT. “Eu não sei como meu trabalho como ativista pode chegar dentro do universo da arte, mas, se eu realmente quero ir para o ‘outro’, isso faz muito sentido.”
SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente e fotógrafa.