Crítica

A 'Ladainha' de Bruna Beber

No seu mais recente trabalho, poeta carioca apresenta ao leitor um livro mais grave que os anteriores, em que se nota a investigação da própria escrita

TEXTO

01 de Setembro de 2017

A poesia de Bruna Beber

A poesia de Bruna Beber

Ilustração Adams Carvalho

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 201 | setembro 2017]

No novo livro de Bruna Beber, escritora que segue publicando pela Editora Record, os poemas estão emoldurados por algumas setas. A dedicatória aponta para a bexiga imaginária dos pássaros, os minerais de caverna, a morfologia vegetal, os peixes abissais e o casulo particular – sua casa, a Tabacarícia. A epígrafe aponta Stela do Patrocínio, um falatório integrado à vida da autora, para quem a oralidade é compromisso e atenção. Nos agradecimentos, junto aos que são de seu convívio estão também Oxalufã, Oxaguiã, São Jorge, São Miguel Arcanjo e Oxóssi. No sumário, encontram-se números primos na tarefa de título, guiando a escrita pela abertura ao infinito, que parece cheio de buracos para quem se acostumou à contagem dos números naturais. Todos esses paratextos ou instâncias organizadoras antecipam e interagem, como é de se esperar, com aquilo que encontraremos no coração da obra.

Ladainha soa como uma nota beberiana tocada uma oitava abaixo. É um livro mais grave que os anteriores, ele mesmo povoado por setas, por um anseio de rumos e direções que, à poeta em sintonia com seu tempo, nunca estão dados. Por isso, os ventos adentram as páginas de forma tão decisiva, sinalizador de chuvas vindouras & aliado dos que se movem e precisam respirar. Nota-se uma investigação da própria escrita, que se conjuga a uma aproximação dos elementos da natureza, além de maior abertura ao imponderável da espiritualidade. Esses assuntos, no entanto, seguem a trilha de imagens que, para o leitor desavisado, podem surgir como um nonsense, mas na poética em questão é um familiar detonador de estranhamentos, como disse a poeta Angélica Freitas.

A cigarra, no primeiro poema, é símbolo de um canto ancestral que agora convive com a escritora (“Plantei uma goiabeira/ dentro do banheiro/ e a cigarra veio/ morar comigo”); um canto que deriva de um plantio; um canto que é cultivado, mas não subjugado (“O canto/ é ancestral, adquirido/ às vezes peço uma canção/ ela não tem ouvidos”). Não há espaço para domesticação, “é como criar uma sereia”, com o tanto de tentação e risco que isso deve implicar. Esse texto abre a seção intitulada vidádiva, na qual o sujeito poético parece empenhado em conexões.

É notável na poesia contemporânea, frente à tradição lírica moderna marcada pela negatividade, o surgimento de vozes que ressoam uma espécie de maior confiança na experiência da linguagem. Conscientes da responsabilidade e dos limites de seu ofício, Júlia de Carvalho Hansen, Matilde Campilho e Ana Martins Marques são exemplos, apesar dos estilos bastante distintos, de projetos que se inscrevem entre a utopia e o desencanto, lidando com o desequilíbrio do mundo frequentemente a partir de um entusiasmo diante da possibilidade do livro “ser um lugar aberto, de contágio e de convívio”, como já disse Ana, ou do poema “salvar o minuto”, como falou Campilho. É como se, entre o sujeito e o mundo, entre interioridade e exterioridade, entre eu e outro houvesse mais disposição à cumplicidade. Justamente a série inicial de Ladainha produz efeito similar:

29.
Laura me leva para a água
Não é só assim que somos felizes
Mas aqui somos mais
É bom passar minúsculos
Olhando para uma coisa só
Como se nunca tivéssemos inventado
Uma imagem sequer do futuro
E então ficamos cerca de um minúsculo
Olhando para o mar e fingindo
Que o movimento das ondas
Era parecido com estender lençóis
E quem as estendia éramos nós
Você sabe, a água não para de ser água
E nós não parávamos de tentar
Arrumar o mar, que não nos incomoda
Ele é um peixe amando outro peixe
Laura gosta de arrumar a cama
Todos os dias, eu desligo o ventilador
Porque a cama é um tipo de mochila
De encosta, de bandeja, de sola de pé
Para os morcegos; prisma ao que gosta
de dormir, balcão ao que gosta de acordar
Não sei explicar mas é como chegar na água
E saber nadar, muito mais ainda assim e por tudo
É sobre conseguir chegar naquilo que eu sou
E cada vez mais perto daquilo que sou com alegria
É uma camisa de força do avesso
Muito boa para mergulho

Esse poema se apresenta em dois momentos, ambos iniciados pela ação de Laura que “me leva para a água” e “gosta de arrumar a cama”. Na primeira parte, o desejo de suspensão do tempo na experiência da felicidade: em um jogo de som e sentido, minutos se tornam minúsculos, mas ocupam todos os espaços “como se nunca tivéssemos inventado/ uma imagem sequer do futuro”. O presente, por sua vez, é onde nos deparamos com as cenas cotidianas – tão caras à poética de Bruna – se fundindo à natureza: estender lençóis no movimento das ondas. Novamente, ilusão de domínio não há: “a água não para de ser água”; tampouco há desistência: “e nós não parávamos de tentar/Arrumar o mar”. A mesma persistência e o mesmo fracasso familiar ao exercício poético, a luta vã com as palavras de que fala Drummond, mas que pode ser uma busca solar. Se, inicialmente, o mar leva aos lençóis de casa, na dobra do poema é a cama (e seus panos regularmente arrumados) que sugere imagens a partir de associações nada óbvias, movimentando-a como um prisma, imaginando-a atrás de si como mochila, por baixo como uma bandeja ou por cima como na sola dos pés dos morcegos. E entre a morada e o mar, lembrando um duplo tão presente em outra contemporânea, a já citada poeta Ana Martins Marques, chega-se à água e se sabe nadar. Em Ladainha, Bruna fala sobre encontrar o cerne das próprias questões & nos oferece essa camisa de forçar liberdade, a estranhíssima e dificílima liberdade de ser quem se é (se possível, com alegria).

Assim como em minúsculos/minutos, vocábulos ou usos inusitados desentranhados dos jogos sonoros são recorrentes e produzem imagens que não estão inscritas numa ideia associativa confortável. Da palavra lentilha, por exemplo, pode sair um advérbio de modo que parece apontar para um parentesco com a lentidão (“Espera lentilhamente/ a última tempestade”); para não decepcionar as aliterações, um contrabaixo pode vir em vontrabaixo (“Viola violino violoncelo vontrabaixo/ mas o que faz falta mesmo é o violão”); e sempre pode pintar uma “TV a flores”. A aproximação de imagens que se dá pela analogia dos sons também é incitada no poema 3: “E esse barulho/ é chuveiro quente ou fritura?”, “E esse barulho/ é ventilador de teto ou pião?”, “E esse barulho/ é chuva ou salva de palmas?”. Não é suficiente, no entanto, estacionar nas figuras, é necessário mobilizar a memória auditiva e receber as camadas sonoras do poema pelo ouvido. 

A maneira como esse questionamento fixo com pequenas variações (“E esse barulho/ é...?”) intercala as outras três estrofes indica uma estratégia composicional presente em outros poemas. A ladainha, que é canto e prece, que é oração dialogada em que os fiéis respondem ao sacerdote, que é reza repetitiva, que é também conversa fiada, aqui é observável tanto na totalidade do livro enquanto projeto quanto na concretude de um poema como o 79, em que se leem versos de afirmativas marcadas, remetendo a palavras de ordem, seguidos de uma espécie de refrão (“Poder é perigo/ e hoje acordei/ rindo”, “Dom é tom/ e hoje acordei/ rindo”, “Querer é criatura/ e hoje acordei/ rindo”). A forma como o próprio poema pode parecer entrecortado, como se fosse dois em um, também provoca o leitor na sua ideia de unidade:

97.
Escrever é irmão
do andar e primo
do voltar, substitua

No inverno é bom

Escrever com calma
e inventar um cinzeiro flutuante
chegar e sair descalço do poema

No verão bombom

Escrever é sempre
o tempo é uma mula elástica em fuga
e se conselho fosse bom

Sair na rua de moletom. 

A recorrência da escrita figurando como tema e como angústia é responsável por uma reflexividade diferente da que se observava na trajetória de Bruna; assim como o tempo é uma matéria mais indócil que antes (“uma mula elástica em fuga”). Parece haver diante de nós um sujeito às voltas com a própria poética, em um exercício de autocompreensão insistente, alguém que chega e sai descalço – despojado e exposto, sob o risco de pisar num prego ou contrair leptospirose no poema. E esse chegar à integridade, à proposição do seu projeto literário, essa recorrência do entrar ou tentar entrar, do mergulhar no próprio universo imagético e sonoro (“Sempre limpo os pés antes de entrar/ no sono e aí um frango inteiro lindo/ e cru me tira para dançar”) dá o tom da ladainha de quem, consciente do acaso e do imprevisível, compreende que entrar não é sinônimo de permanecer: é preciso estar sempre chegando e encontrando outras saídas (“eu entrei numa casa e disse se ventar agora eu vou morar aqui/ floriu; agora é perto dela que eu gosto de passear”).

Às vezes, essa busca sobe ao contorno do poema, como uma espécie de caligrama, e faz das palavras desenhos. No 31, temos uma chuva de setas, um cardume de setas e uma revoada de setas formando uma espécie de ponta de flecha. Esse poema abre a seção canseios, na qual o entusiasmo com a conexão vai se contraindo e certa negatividade começa a ficar mais explícita, o que tem continuidade na última parte do livro intitulada meu deos. Na matéria que se retroalimenta (“O fogo se desdobra/ em fogo e o fogo/ vira mais fogo/ muito fogo”), se expande e se transforma (“Até que vira/ cinza e a cinza/ um monte de cinza/ muita cinza vira”) está inscrita também a retroalimentação das próprias palavras, pois são elas que se repetem, se expandem e se transformam no jogo poético. Com frequência, basta estabelecer uma relação por conectivos atípicos para que velhos conhecidos como “vista” e “mar” ou “costa” e “rio” se condensem em uma aparição estranha (“Casa com piscina no deserto/ foi vista no mar descendo/ de costas pelo rio”); ou ainda de uma perturbação semântica – o “sisal congelado”, o “sisal intravenoso” e os “amigos sisal” – pode nascer o “poema sisal”. 

Em Ladainha, Bruna acolhe as obsessões que não se explicam e deixa claro que esses poemas também a surpreendem (“eu os estranhos como um velho conhecido/que não chegou a ser amigo, silêncio cheio/ de ilusão e mandioca madura” ou “Todo poema carrega um rosto/ e nele um susto que nunca passou”). De que imagens é capaz “um cego de fones”? Em seu exercício de individuação, o mundo não escapa, nem o que é pertinente ao tempo presente (“na escada de incêndio/ e sua inseparável/ atmosfera de desastre”) e ao horror que produz (“o mundo se carameliza em bosta”). Entre ironia e reflexividade, a catástrofe nos é ofertada: “A rave do fim do mundo/ é a mais longa de todas”, uma imagem lisérgica e exaustiva. Quem insistir em pensar esse livro na chave da poesia marginal, cuja importância na formação da autora é inegável, deixará escapar muitos elementos. Não sou eu que estou dizendo, mas a própria ladainha: “Meus poemas agora duvidam entre a pedra/ marrom e a pedra verde-sabão, de cara vejo/ a suspensão confio a tudo que vai passar”. E essa fé no fluxo apesar da dúvida aparece forte no poema 47:

Do jeito que as coisas andam
áridas, sem gelo, pra trás
não vou voltar da rua
trazendo pão

Mas pode ser que o tempo mude
e amanhã eu acorde
com vontade 
de fazer um suco

Sofro de dores barítonas
dois dias sem abrir a boca
minha cabeça tá um baile
de ácaros

Não sei pra onde vai aquele trem
mas meu nariz já consegue filtrar
os segredos que as rosas
trocam no vento

É que eu estou de férias
poderia até organizar
um batizado, fingir
que adoro camarão

Se você pensar não é
todo mundo que tem primos, os sisos,
conta no banco e um colchonete 
de solteiro para visitas

Por isso vou fazer o que sempre quis
comprar um caixote fechado de uvas
e passear de caminhão
nas vias proibidas.

Nesse texto (de sete estrofes), a descontinuidade ativa o Poema de sete faces de Drummond na memória. O que Davi Arigucci Jr. escreve sobre este último também nos serve aqui: “Uma coerência latente do seu sentimento pode então estar dirigindo a organização interna do texto que a variedade e a instabilidade do assunto apenas encobrem sob aparente falta de lógica”. No poema de Bruna Beber, as estrofes estão mais relacionadas, todas passam por uma enunciação em primeira pessoa. De princípio, observa-se uma expectativa de comportamento perante o “jeito que as coisas andam”, mas é possível uma mudança nessa realidade e em seus efeitos. A instabilidade exterior está dada e o sujeito é contagiado por ela, não à toa sofre de “dores barítonas”. Há pouca convicção na progressão do poema, a errância é a tônica com tudo que ela possa oferecer de aprendizagem (“Não sei para onde vai aquele trem,/ mas meu nariz já consegue filtrar/ os segredos que as rosas/ trocam no vento”) e também de possibilidades (“poderia até organizar/ um batizado, fingir/ que adoro camarão”). A penúltima estrofe introduz um interlocutor na encenação de uma partilha das incertezas referentes às possíveis faltas ou possíveis privilégios. O poema não esclarece se é valoroso ter sisos, primos, conta no banco ou um colchonete de solteiro para visitas, tampouco nos diz se o sujeito os tem ou não, o que ele faz é falar mais uma vez das possibilidades, que agora detonará uma escolha: a de fazer o que sempre quis. 

GIANNI PAULA DE MELO, jornalista e mestranda em Teoria e História Literária.

ADAMS CARVALHO, ilustrador.

 

EXTRA | Escute a leitura da própria Bruna Beber de alguns poemas do seu livro Ladainha

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