Vânia Mignone
Nos intervalos dos acontecimentos
TEXTO Adriana Dória Matos
01 de Agosto de 2017
Sem título, acrílica sobre MDF, 90 x 90 cm, 2016
Imagem Reprodução
[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 200 | agosto 2017]
Primeira cena: um carro se desloca pela estrada. É noite. Passam curvas, túneis, arbustos, árvores. Em movimento, avistam-se vestígios de civilização, umas edificações ermas, antenas, postes, luminosos. Os letreiros indicam: Atibaia, Jaguariúna, Pirassununga, Princesa D’Oeste, Porto Feliz. Destinos: Campinas – Tupã. Interseções: Amparo/Limeira. Obras, desvios, neblina, ar seco, muita claridade em São João da Boa Vista. Caso precise, há borracharia. São 18 takes de enquadramentos variados, cortes, fragmentos, sugestões de extraquadros. Quanto tempo esse veículo-narrador circula por essa estrada em que não desponta vivalma, em provável alta velocidade, não se sabe, mas ele alcança a madrugada.
Cenas de corte:
– Um carro visto em plongée, de uma janela de quarto andar, talvez. Está escuro, o veículo é vermelho e a porta do motorista está aberta. Abandono, saída de emergência? Pode ser que alguém bata à porta…
– Na frente de um bilhar estridente, a primeira personagem aparece. A mulher está em primeiro plano, mas não olha para a câmera, seu interesse recai para a direita…
– Do outro lado da rua, dois carros passam com faróis altos, um hotel vagabundo de beira de estrada se oferece na calçada. Tudo é vermelho e saturado. (Quando um dos carros faz a curva no quarteirão adiante, depara-se com um homem e uma mulher num jogo sensual de olhares. O letreiro diz: “A valsa”. Apenas um vaso de antúrios testemunha o encontro.)
Cenas de interior: frames de quatro cômodos. Ao contrário do vermelhão externo, aqui os ambientes são caiados de branco. Branco e preto, bem chapado também. As legendas informam: “Pele de cobra”, “Hotel Barcelona”, “O divã”, “Palco-quarto”, tudo em maiúsculas, numa fonte de corpo bem espesso. Os quartos estão quase nus, poucos objetos. “Palco-quarto” é o mais surreal deles (aliás, tudo que vimos até aqui tem uma aura meio de sonho, de pesadelo): no centro do quarto, uma cama com o estrado aparente, um amontoado de lençóis nos seus pés; à esquerda e à direita, dois criados-mudos, dos quais saem fios que trazem holofotes nas extremidades, como se fossem tentáculos que avançam para o primeiro plano.
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Vânia Mignone diz que não planeja essas cenas previamente. Não faz esboço, nada. Não mantém sketchbooks, essas coisas. Seu trabalho acontece direto na superfície, seja o papel ou a madeira. Muitas vezes, trabalha com os dois materiais ao mesmo tempo, num processo de acréscimos, sobreposições, porque, como prefere deliberadamente não saber o que vai desenhar, pintar, riscar, pode ser que a superfície escolhida se torne menor do que a narrativa que se apresenta; então, ela faz a montagem – edita o que conta acrescentando espaço. Assim, o processo tanto pode ser um quadro que vai crescendo à medida das necessidades, ou, à moda das histórias em quadrinhos e do cinema, a história se constrói quadro a quadro. Quando isto acontece, temos mais claramente a sensação de estarmos diante de outra coisa que não pintura.
A artista, nascida em Campinas, em 1967, cultiva, como todos, seus métodos e idiossincrasias. Isso de não racionalizar o trabalho diz muito do resultado a que assistimos. No seu processo de criação, ela conta que, quando tenta planejar, percebe o quanto o racional traz o conhecido, aquilo que ela já fez. Criar a partir disso seria um mero gesto autotélico. Então, ela canaliza a emoção, o inconsciente. O emocional suspende o racional e, nesse momento, entende o curso que pretende tomar e parte para a criação. Não saber aonde vai chegar implica riscos e imprevisibilidade, e isso é o que parece lhe interessar. De acordo com esse método, seu trabalho torna-se cumulativo: ela cola, encaixa, aumenta papéis e placas, até que dê por finalizada a obra. A pintura pode começar pela colocação de uma cor, uma palavra, um recorte, uma paisagem. Mesmo feito de somas e acréscimos, seu trabalho é sintético, são poucos os recursos narrativos, seu léxico é simples, remetendo-nos diretamente àquilo que convencionamos chamar de cultura popular e cultura pop.
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A artista conta que sempre precisou da arte para se expressar. Primeiro era o balé, mas, quando chegou a hora da formação acadêmica, não tinha graduação em dança em Campinas, onde sempre morou. Ficou ali meio na corda bamba, sem destino, até que foi fazer Publicidade. Foi bem pouca a relação com criação, claro. Depois disso, estudou Educação Artística, ainda tateando sobre si mesma. No curso encontrou um meio para se expressar: a xilogravura, que, como oferece resistência, sendo mais difícil de dominar que outras técnicas, obrigou-a à síntese. No fim do curso, a xilo era sua expressão. Isso eram os inícios dos anos 1990, e Vânia começou a participar de salões, a se profissionalizar, e logo a pintura foi tomando o lugar da gravura, embora esta não tenha sido abolida, e sim, ao contrário, incorporada à sua expressão.
A superfície da sua pintura não traz apenas as emendas que ela vai promovendo ao acrescentar páginas à narrativa, que realiza com tinta e pincel. Afora esses materiais, ela usa as goivas que servem à xilogravura para riscar a superfície da pintura, um gesto que produz relevo e sombra diferentes daqueles da tinta. Ainda sobre materiais, Mignone também cita os papéis impressos que adquire em sebos, uma matriz impura que soma outra camada de informação e textura às suas histórias.
A xilogravura, lá do início, é fundadora de uma habilidade técnica, mas também de linguagem e construção de mundo. Através da xilo, Vânia Mignone trava contato com mestres eruditos do gênero, como Oswaldo Goeldi e Rubens Gerchman, mas também com os de matriz popular e da literatura em cordel. Ao somarmos a essas referências no campo da arte o gosto pessoal, a vivência e as influências da formação, revelam-se vários dos elementos compositivos de sua obra: estão lá as placas de rua, outdoors e letreiros, uma cultura gráfica expressa em cartazes e fotografias, e – destacadamente – o cinema e as HQs.
Sobre essas influências, a artista conta episódios prosaicos e determinantes na mesma medida. Assim como várias cidades brasileiras, Campinas sofre a desvalorização dos espaços para fruição da arte e, Vânia observa, nas últimas duas décadas, houve uma grande decadência desses espaços na sua cidade. “Minha formação visual foi toda no cinema”, diz ela, ecoando a história de gerações que vão mais ao cinema que ao museu. Quando foi estudar arte, relembra, nunca tinha visto ao vivo obras de grandes mestres. Foi conhecer a Bienal de São Paulo quando estava na faculdade. Mas ela pondera: foram justamente os “caminhos tortos” – o fato de não ter tido uma formação precoce em arte – que a levaram a um trabalho original, autêntico. Portanto, como afirma, tudo que está na sua pintura lhe é intrínseco.
Há outros ingredientes compondo esse caldo: a MPB (dos anos 1980, principalmente, que é a dos seus anos de formação) e a poesia, sobretudo a concreta. Olhando em retrospectiva, Mignone sabe a riqueza de não se saber, de se perder, porque todo desvio de rota integra hoje seu trabalho. Ainda sobre desvios de rota: é deliberada sua opção de permanecer em Campinas e frequentar muito pouco o circuito da arte. O isolamento, neste caso, é uma estratégia para se manter íntegra e aprofundar-se no seu trabalho.
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A crítica oferece ideias proveitosas sobre a obra da artista, e ouvi-la é um exercício de aproximação e identificação. Moacir dos Anjos, por exemplo, escreveu: “As pinturas de Vânia Mignone são da ordem do incômodo e do desassossego, daquilo que não se sabe ou que não se quer nomear de modo pleno. Há nelas, quase sempre, a presença de figuras humanas sozinhas, apartadas do convívio de alguém mais. São mulheres ou homens situados em lugares aos quais a artista nega identificação precisa; espaços onde não há sequer distinção possível entre frente e fundo, igualados em planos de cores únicas.” Agnaldo Farias diz que suas pinturas “estampam imagens poderosas de solidão e descontinuidade e que se referem ao mundo todo, das paisagens desoladas até cenas extraídas do cotidiano, da ordem ordinária das casas, com seus ambientes e arranjos previsíveis”.
Incomunicabilidade, silêncio, economia de gestos e ditos. Se fosse para comparar com a fotografia, a pintura de Vânia Mignone poderia ser irmã das fotos do norte-americano Todd Hido e do cineasta alemão Wim Wenders. Ambos expressam essa incomunicabilidade opressiva e atraente. Assim como Mignone, eles se colocam a vagar pelas cidades vazias – seja dia ou noite – ou se metem em recintos lúgubres, abandonados. Os gestos que supomos existir a partir dessas imagens são todos intervalares, alguém esteve ali ou está por ali, no entanto, ausente no momento da nossa presença. Não há encontro possível.
Pontuando a relação da obra da artista com um item da comunicação vernacular, Cauê Alves comenta: “Não faz muito tempo, os cartazes nas fachadas de cinemas, teatros e salas de espetáculos eram pintados à mão. Ao contrário da padronização dos cartazes executados com programas de design gráfico e photoshop, cada sala de cinema fazia a sua versão em pintura. Eram invenções genuínas e viajantes, que hoje parecem se opor à mesmice da indústria cultural. Sem qualquer nostalgia, Vânia Mignone recorre à visualidade desses cartazes antigos. É como se sua pintura composta por quatro placas de compensado avermelhada – com as palavras ‘o grito’ e, grafado ao contrário e espelhado, ‘o eco’ – ilustrasse um filme imaginário. Apesar do título estridente, a pintura é silenciosa e, de fato, reverbera na memória do espectador como se já fizesse parte de nosso repertório visual.”
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Cena final: Colaram uns lambe-lambes nos muros do bairro. Num deles, lê-se: “Sessão 19h, Sábados, As Gêmeas”. São duas ruivas que brincam com fogo. O lambe-lambe de Iraci anuncia: “A volta da maior acrobata do mundo”. Dizem que esse retorno causou ciumeira no circo. A se conferir. Por enquanto, o picadeiro está vazio e escuro, mal se distinguem os objetos de cena. Daqui a pouco deve começar o ensaio. As ilusionistas também são bailarinas e dançam com collants de lantejoulas. São sensuais e fazem um truque incrível com leques. As ruivas incendeiam a plateia. Mas, espera aí, que labareda é aquela? Ninguém viu ou sabe como… O circo queimou, queimou, queimou a tarde inteira. Aquele carro que passava pela estrada viu a labareda lá de longe.