Curtas

Lama dos dias

O 'zeitgeist' do Recife no início dos anos 1990

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2017

O seriado 'Lama dos dias' é composto por sete episódios e tem direção de Hilton Lacerda e Helder Aragão

O seriado 'Lama dos dias' é composto por sete episódios e tem direção de Hilton Lacerda e Helder Aragão

João Lucas/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 200 | agosto 2017]

Segunda-feira, 10 de julho de 2017, 11h30: sob um céu nublado, de tom cinza-esbranquiçado, cerca de 40 pessoas entram e saem do número 190, na Rua de Santa Cruz, centro do Recife. Naquela manhã, o casarão havia sido cedido para abrigar a equipe de Lama dos dias, seriado com direção de Hilton Lacerda e Helder Aragão. Dessa forma, o amplo quintal tinha sido transformado no bar Oásis, um fictício espaço dedicado à difusão da incipiente produção musical no início dos anos 1990.

O Oásis não foi batizado assim por acaso, explica Hilton Lacerda à Continente: “Houve um bar chamado Oásis, que ficava em Olinda, perto do hotel Quatro Rodas, e foi lá onde aconteceu o primeiro show de Chico Science, junto com as bandas Orla Orbe e Lamento Negro.”Lama dos dias, como o nome sugere, relaciona-se com o movimento manguebeat, indutor da recondução de Pernambuco ao panteão da música brasileira contemporânea a partir de 1994, quando saíram Da lama ao caos e Samba esquema noise, os álbuns de estreia de Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, respectivamente.

Contudo, os sete capítulos de 26 minutos da trama – projeto de um núcleo criativo liderado por Hilton, produzido pelo REC Produtores Associados e com exibição assegurada pelo Canal Brasil – não documentarão a ascensão destas duas bandas, e sim recriarão o zeitgeist da capital pernambucana que possibilitou o surgimento do manguebeat. “Com a liberdade da ficção, vamos falar de 1990, um ano icônico, quando a redemocratização pós-ditadura foi ofuscada pela eleição de Collor e havia a expectativa de alguma coisa que pudesse acontecer para melhorar a situação”, detalha Hilton.

Ele e Helder Aragão, o DJ Dolores, formavam o duo Dolores & Morales, que, entre outros feitos, concebeu o projeto gráfico de Da lama ao caos e dirigiu o clipe de Livre iniciativa, música de trabalho de Samba esquema noise. O retorno ao ponto “onde tudo afunda”, como diz Lacerda, se dá com entusiasmo por parte deles e empolgação da equipe e do elenco. “Helder e Hiltinho têm toda a propriedade para fazer essa série. Não existiria um documentário melhor do que a ficção”, comenta Roger de Renor, apresentador e produtor cultural que, vez por outra, vira ator, “mas só nos filmes dos amigos”.

Em Lama dos dias, Roger vive Curt, o estrangeiro que é dono do Oásis e abre suas portas para a Psicopasso, a banda sobre a qual se alicerça o enredo do seriado. “Qualquer semelhança é mera coincidência. Tá vendo aquele sofá vermelho? Foi da Soparia”, diz, referindo-se ao bar do qual foi proprietário, fundamental para a expansão do manguebeat. Perto dele, Débora Leão amamenta seu filho, Brian Lucas, de apenas 10 meses – “baby Brian”, o mascote do set. Conhecida nas searas do hip hop recifense como Negrita MC, ela foi indicada pela cantora Isaar. Sua personagem é Boyzinha, a vocalista da Psicopasso. “Ela é uma mulher empoderada, negra, lésbica e com um discurso altamente político”, define a MC/atriz.

Completam o trio da Psicopasso o guitarrista Cruzado (Enio Damasceno) e o dançarino Nego Queen (Edson Vogue); ao redor deles, gravitam o produtor EZK (Matheus Tchôca) e Francisco (Tiago Mercês), que servem de elo entre as aspirações da banda e o que Hilton Lacerda define como “a esquerda universitária”. Na sequência prestes a ser rodada naquela segunda-feira de julho, os integrantes deste núcleo estão em ação. As amigas Luli (Louise França) e Adriana (Isadora Gibson) chegam ao Oásis, onde se encontrarão com Farmácia (Geyson Luiz) e Bill (o pianista Vítor Araújo).

São quatro estudantes que se dividem entre ir à ou fugir da faculdade, montar um programa de rádio e pesquisar novas paisagens sonoras. Louise, filha de Francisco França, o Chico Science, cavou sua participação ao tomar conhecimento da série. “Estou aqui por enxerimento”, brinca a vocalista da Afrobombas e Coisinha. Durante as gravações de um documentário sobre o legado do seu pai, ao entrevistar Helder Aragão, ela ficou sabendo do projeto. “Disse logo que queria participar”, sorri. 


A maioria deles vivencia sua primeira incursão no audiovisual. Renata Roberta, atriz responsável pela produção de elenco, conta que o processo de casting driblou a via tradicional: “O que normalmente se faz em seleção de elenco é procurar os atores e atrizes, chamar para um teste ou pedir um material e escolher a partir daquilo. Mas cada pessoa é muito mais do que ela pode mostrar em três minutos. Fomos atrás de encontros. O processo é um convite para encontrarmos a dinâmica de uma realidade na ficção”. Uma outra atriz, Nash Laila, fez a preparação do elenco. O resultado, no set da Rua de Santa Cruz, mostrava-se satisfatório: Geyson e Vítor irradiavam entrosamento – seus personagens são inseparáveis – e a Psicopasso, já no palco, tinha o feeling de uma banda de verdade. 

No esteio do pacto que se estabelece entre qualquer produto audiovisual e sua audiência (uma espécie de transe calcado na crença de uma narrativa que se desvela tal qual na “vida real”), o Oásis, naquele momento, era ali. O propósito de todos consistia em, como uma máquina do tempo, transportar elenco, equipe e, a posteriori, o público para um rolê “na quarta pior cidade do mundo”, como canta Chico Science em Antene-se. A jornada, porém, residirá mais na pele e comportamento do elenco e menos na composição imagética. “Optamos por não marcar a imagem com as referências habituais dos anos 1990, e sim deixar que o público entre a partir da aproximação da câmera, da convivência com a corporalidade dos atores”, explica o diretor de fotografia Breno César, reprisando a parceria da série Fim do mundo com Hilton Lacerda.

A contemporaneidade de Lama dos dias está nos discursos atuais, como o de Boyzinha; na presença de Maeve Jinkings e Julio Machado, protagonistas de filmes recentes de cineastas pernambucanos (O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e Joaquim, de Marcelo Gomes); nas canções da Psicopasso, compostas por Helder Aragão para operar como elementos narrativos; e no próprio tema da fertilidade cultural de uma cidade submersa em desigualdades e adversidades, como o Recife de 2017. 

E, numa chave que denota muito da precisão dramática de Hilton Lacerda, a exemplo do que se viu no longa Tatuagem (2013), num enclave entre passado, presente e futuro: “A ficção nos deixa livres para oferecer uma noção de possibilidade. Percebo que o momento da série, 1990, guarda semelhanças com o Brasil em que estamos vivendo agora. Como criar alternativas?”, arremata o diretor.

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