Crítica

A complexa relação entre mundos diversos

Em 'Gabriel e a montanha', o jovem diretor Fellipe Gamarano Barbosa segue refletindo sobre as possibilidades de nos colocarmos no lugar de um outro que vive numa realidade diferente

TEXTO Mariane Morisawa

01 de Agosto de 2017

Cena de 'Gabriel e a montanha'.

Cena de 'Gabriel e a montanha'.

Foto pedro sotero/divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 200 | agosto 2017]

Em julho de 2009, Gabriel Buchmann, de 28 anos, desapareceu ao subir o Monte Mulanje, no Malaui, a última etapa de uma viagem de um ano pela África e pela Ásia, antes de começar seu doutorado em Políticas Públicas na Universidade da Califórnia – Los Angeles (UCLA). Após 19 dias de buscas, seu corpo foi encontrado num vão embaixo de uma pedra, sem feridas aparentes, com seus pertences intocados. O diretor Fellipe Gamarano Barbosa conhecia Buchmann desde a infância – os dois estudaram juntos no Colégio São Bento, um dos cenários principais de seu longa-metragem anterior, Casa grande (2014). Resolveu fazer um filme sobre os mistérios dos últimos 70 dias da vida do amigo. Gabriel e a montanha estreou em maio na Semana da Crítica do Festival de Cannes, de onde saiu com dois prêmios: o France 4 Visionário, entregue pelo júri presidido por Kleber Mendonça Filho, e o de distribuição, oferecido pela Fondation Gan.

No filme, não há suspense sobre o que aconteceu com Gabriel (interpretado por João Pedro Zappa): a primeira cena mostra seu corpo sendo descoberto, no vão sob a pedra, no meio do mato, por Luka White e Bernard Nyove, os dois homens que realmente o encontraram. A partir dali, o filme refaz os passos do jovem brasileiro por Quênia, Tanzânia, Zâmbia e Malaui, tentando desvendar as razões e emoções por trás de suas escolhas. Em Cannes, Fellipe Gamarano Barbosa disse que nunca achou mórbido falar da morte do amigo – chegou ao ponto de usar, com autorização da mãe de Gabriel, as roupas e objetos deixados pelo rapaz. O cineasta teve como guia as fotos extraídas da câmera encontrada ao lado do corpo. Foi muito graças a essas imagens que ele conseguiu algo que lhe parecia essencial: filmar nos lugares onde Gabriel esteve presente, com as pessoas que realmente passaram por ele em seus momentos finais, e com quem João Pedro Zappa de fato contracena. Esse cuidado em recuperar, detalhe a detalhe, os últimos dias de Gabriel parece ultrapassar a dimensão estética: desde o princípio, o diretor viu seu segundo longa-metragem de ficção como um trabalho espiritual, para ajudar o amigo a compreender que morreu, por que e como, e ajudá-lo na passagem.

O resultado na tela reflete tanto essa pegada bastante realista quanto um certo ar transcendental, que vem também da própria paisagem: o leste da África (tão pouco visitado pelos brasileiros), que a equipe de 13 pessoas percorreu durante mais de dois meses num caminhão-ônibus, inclusive subindo o Monte Kilimanjaro, a 5.850 metros de altura. A fotografia de Pedro Sotero – que trabalhou com Gamarano Barbosa também em Casa grande e em Laura (2011), documentário em longa-metragem – busca o naturalismo, deixando espaço para aparecer a paisagem exuberante, acolhedora e, por vezes, ameaçadora, evitando o cartão-postal. As pessoas com quem Gabriel conviveu – as famílias que o receberam, seus guias em vários pontos da cidade, os guerreiros Maasai – não apenas reencenam seus momentos com o protagonista da história, como falam, em off, suas impressões sobre aquele brasileiro divertido que não queria ser tratado como Mzungu, ou estrangeiro.

É este um dos pontos centrais: Gabriel Buchmann não queria ser visto como turista. Ele ficava na casa de pessoas que conhecia pelo caminho, perguntando na “cara dura” se podia se hospedar com elas em vez de hotéis. E convivia com os anfitriões, comia da mesma comida – uma das famílias que o abrigaram chegou a batizar um filho com seu nome. O único momento em que se permite ser um pouco mais turista é quando sua namorada Cristina (interpretada por Caroline Abras) vem encontrá-lo. Os dois ficam em hotéis (baratos) e visitam alguns pontos turísticos – e é nessas horas que aparecem os maiores conflitos, quando, por exemplo, perdem um passeio de elefante porque Gabriel está mandando um e-mail para a mãe no cyber café. Essa recusa ao turismo é uma postura invejável e interessante. Acontece que Gabriel não apenas não quer ser turista, mas também não quer ser visto como estrangeiro. “Não sou Mzungu, sou brasileiro”, diz a uma certa altura no filme, como se o fato de ser brasileiro significasse sumariamente não ser branco e ser irmão, por causa da proximidade evidente com a África. Como, porém, seria possível para ele despir não apenas os hábitos de quem teve uma criação privilegiada no Brasil – que o levaria a viajar por um ano e, se tudo tivesse dado certo, estudar nos Estados Unidos –, mas também a própria cor de sua pele, numa parte do mundo em que a maioria é negra? Por mais que ele fosse consciente e tivesse culpa de classe, o privilégio ficava sempre evidente – até na boa ação de doar parte do seu dinheiro para as pessoas que encontrava.

DIFERENÇAS DE CLASSES
Nesse sentido, ao falar de privilégio e culpa de classe, Gabriel e a montanha converge com Casa grande, o primeiro longa-metragem de ficção de Fellipe Gamarano Barbosa. Casa grande também era inspirado numa história real bastante próxima ao diretor: a ruína financeira de sua família quando ele estudava cinema em Nova York. O cineasta, então, imaginou como teria sido passar por isso se, ainda adolescente, estivesse ao lado de seus pais e irmãos. Assim surgiu o personagem Jean (Thales Cavalcanti), um tímido garoto de 17 anos que estuda no Colégio São Bento e mora numa casa de três andares no nobre bairro do Itanhangá, Rio de Janeiro. No plano que abre o filme, a distância, vemos quando o patriarca Hugo (Marcello Novaes) sai da jacuzzi e percorre vários cômodos, fechando as portas e apagando as luzes – do primeiro andar, depois do segundo e por fim do terceiro, dando a noção do tamanho da tal casa grande. 

Lá, além dos dois, moram a mãe de Jean, Sônia (Suzana Pires), a irmã, Nathalie (Alice Melo), e uma empregada doméstica, Rita (Clarissa Pinheiro). Há outros dois funcionários, o motorista Severino (Gentil Cordeiro) e a cozinheira Noêmia (Marília Coelho). A relação é de proximidade distante, como costuma ser no Brasil: os empregados sentam-se à mesa para tomar café, mas os patrões nada sabem sobre suas vidas. Hugo tenta esconder da família os problemas financeiros, mas aos poucos eles vão se anunciando, na menção de uma dívida, ou na demissão do motorista. Como Jean tem um relacionamento próximo com Severino, que o ajudou em sua primeira vez com uma prostituta, a versão que lhe contam é que o motorista está de licença. Para Jean, não ter mais um motorista é bom. Só assim ele consegue ter alguma liberdade para explorar a cidade – afinal, quase todo brasileiro de classe média alta costuma viver em gaiolas de ouro, sejam apartamentos e casas cheios de grades ou carros com portas e vidros bem-fechados. 

Casa grande, claro, não se refere apenas ao tamanho da construção para uma família de quatro pessoas, mas também a Casa-grande & senzala, livro fundamental do pernambucano Gilberto Freyre sobre as relações de classe e raça no Brasil. Ao fazer esse retrato da classe média/média alta brasileira, Casa grande se aproxima, aliás, de O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, com quem divide parte da equipe, incluindo o diretor de fotografia Pedro Sotero. Mas, enquanto O som ao redor é um filme-mosaico, com vários personagens principais, Casa grande tem uma estrutura mais convencional, com a transformação de um adolescente num adulto, em primeiro plano, e uma certa referência às telenovelas. Nos momentos em que tenta ser mais incisivo sobre questões como racismo e sistema de cotas, resvala no didatismo, especialmente na cena onde Luiza (Bruna Amaya), que Jean conheceu no ônibus, confronta a família do namorado sobre sua posição em relação à justiça das cotas e à definição de quem é ou não negro/indígena no Brasil. O resultado é bem melhor quando o racismo vem num diálogo aparentemente banal, como na cena em que Hugo diz ao filho e a seus amigos – entre eles, um aluno divertido e brilhante que vai estudar economia, como Gabriel Buchmann – que a admiração por mulheres negras é um “gosto adquirido”. Jean, porém, não é igual a seu pai. Mas talvez não seja tão diferente quanto deseja. Em seu olhar para o mundo, há uma certa ingenuidade, que se estende, por vezes, ao filme em si. 

De qualquer maneira, Casa grande é um avanço em relação a Laura, primeiro trabalho em longa-metragem do diretor, sobre uma argentina criada no Brasil que frequenta as altas rodas em Nova York. É óbvia a fascinação do cineasta pelo tema de seu documentário – a protagonista vai se revelando problemática, contestadora, protetora de sua privacidade, resistente ao próprio filme e ao diretor, que, ingenuamente, tenta ajudá-la com seu problema de acumulação. Ele é obrigado a se colocar no filme e mostrar, também, suas próprias fragilidades e contradições, tanto quanto as da personagem, de quem perde o controle. 

Mesmo sem ser um documentário, como Laura, Gabriel e a montanha assimila, em alguns momentos, o registro do gênero. No filme, Fellipe foi à África tentar descobrir respostas sobre aqueles últimos dias de seu amigo. Encontrou algumas, mas não todas, mesmo conversando com as pessoas que estiveram com Gabriel. Algumas coisas simplesmente não fecham, e o diretor deixa que elas estejam na tela, sem, no entanto, ser totalmente explícito sobre as contradições, especialmente em relação à entrada de Gabriel no Malaui e à sua subida, sem guia, ao Monte Mulanje. A memória pode ser falha, afinal; os relatos, divergentes (ou mentirosos); e a verdade absoluta, fugidia. Mas, como o diretor de fotografia Pedro Sotero já explicava à personagem Laura, seja em qualquer gênero ou formato, “não existe filme da vida real”. 

O Gabriel que aparece no filme é muito mais complexo do que o adorável rapaz gente fina aberto para o mundo, que queria conhecer a pobreza de perto e, posteriormente, ajudar os pobres; que parecia não ter medo de nada, e até ser um pouco descuidado. Ele por vezes se mostra arrogante, um tanto machista. O filme evita o simplismo e compõe uma impressão mais multifacetada da viagem de Gabriel pela África, sem necessariamente igualar pobreza a valores nobres, o que em si é um estereótipo. Ele discute, no fim, quão próximos verdadeiramente podemos estar das realidades ou das pessoas por quem sentimos empatia e até que ponto podemos nos colocar no lugar de um outro vindo de outro universo. Com menos certezas do que seu trabalho anterior, Gabriel e a montanha representa um passo adiante na busca de Fellipe Gamarano Barbosa pela compreensão das relações complicadas entre dois mundos. 

MARIANE MORISAWA jornalista radicada em Los Angeles.

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