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“Ninguém nunca conseguiu definir o documentário”

Prestes a completar 81 anos, Jean-Claude Bernardet, autor de importantes obras de reflexão sobre o fazer cinematográfico, questiona a validade de continuarmos enquadrando filmes em gêneros

TEXTO Beatriz Macruz

01 de Julho de 2017

O professor, ator, escritor e cineasta Jean-Claude Bernardet

O professor, ator, escritor e cineasta Jean-Claude Bernardet

Foto Ninil Gonçalves/Divulgação

[conteúdo da ed. 199 | julho 2017]

Famoso por
seu pensamento que não separa a política da estética, o professor, ator, escritor e cineasta Jean-Claude Bernardet produziu algumas das mais importantes reflexões sobre o cinema e o documentário brasileiros. É da política que ele parte para construir sua controversa, mas consistente, análise de que o Cinema Novo seria um produto da classe média brasileira, no livro Brasil em tempo de cinema (Brasiliense, 1967), pelo qual foi duramente criticado por Glauber Rocha e outros realizadores do movimento. O livro, no entanto, permanece uma referência incontornável da reflexão sobre cinema e cultura no país – assim como o próprio Cinema Novo, como ele faz questão de lembrar. 

Sua crítica do filme Cabra marcado para morrer – publicada no livro Cineastas e imagens do povo (Companhia das Letras, 1985), resultado de sua pesquisa acadêmica – foi considerada pelo próprio diretor, Eduardo Coutinho, uma obra à altura de seu documentário. Assim como ocorria a Coutinho, falecido em 2014, Bernardet é pouco afeito a grandes temas e definições categóricas sobre a linguagem cinematográfica. Em uma tarde de maio, no seu apartamento no 30º andar do Edifício Copan, no centro de São Paulo, ele recebeu a Continente para uma conversa em que reafirmou seu encantamento pelo documentário e por tudo aquilo que chama de “dramaturgia do real”. E, prestes a completar 81 anos em agosto, segue a embaralhar as fáceis convenções: “Documentário e ficção me parecem duas categorias absolutamente gratuitas, que eliminam as nuances e as contradições de uma obra”.

CONTINENTE Estou certa em afirmar que se pode observar, no seu trabalho como escritor e crítico, a prevalência da reflexão sobre o cinema-documentário?
JEAN-CLAUDE BERNARDET Pode ser que sim, mas já escrevi sobre ficção, como no livro Brasil em tempo de cinema. No caso do livro Cineastas e imagens do povo, por exemplo, eu precisava fazer um recorte. Era a possibilidade que tinha de ganhar uma bolsa na universidade para essa pesquisa, e meu orientador achava interessante falar da produção documental. Mas eu já tinha escrito sobre documentário antes, era algo que me interessava desde que percebi que a própria definição de documentário começava a vacilar – isso me aconteceu quando entrei em contato com a obra de Jean Rouch, ao assistir a Crônica de um verão (1961). Sempre houve em mim uma espécie de sedução pela “dramaturgia do real”. Presto muito atenção ao caráter teatral da nossa vida diária – que se dá a todo momento, inclusive agora entre eu e você –, a essa espécie de “microdramaturgia”. Por isso que assistir a Crônica de um verão foi tão importante para mim. Porque a dramaturgia de Rouch incorpora uma série de elementos que costumavam ser eliminados dos filmes: os suspiros, as hesitações, as frases inacabadas, as interrupções e as retomadas de ideias… São o que passei a chamar de rebarbas. Escrevi um texto sobre o Crônica que justamente se chamava As rebarbas do mundo.

CONTINENTE O que é o documentário?
JEAN-CLAUDE BERNARDET Existe uma definição clássica para o documentário, de que é tudo aquilo que é filmado, mas que teria acontecido independentemente da filmagem. Por exemplo, você pode filmar um discurso, uma tomada de posse de um presidente, e este evento aconteceria independentemente disso. Essa definição ignora, porém, o enquadramento, a montagem, o acompanhamento sonoro, a organização narrativa das ideias… Este mesmo discurso de posse, que aconteceria independentemente de qualquer filmagem, se transforma em narrativa em função dessas variáveis, em função do momento narrativo do filme em que ele é exibido etc. É exatamente o mesmo processo da chamada ficção. Portanto, documentário e ficção me parecem duas categorias absolutamente gratuitas, que eliminam as nuances e as contradições de uma obra. Para escolas de cinema e mesmo editores de veículos jornalísticos, é muito mais fácil usar esse vocabulário pré-determinado do que tentar investir em um pensamento mais arriscado, e ainda que seja difícil se livrar desse vocabulário, porque senão a gente não sai da pergunta ‘vamos falar de quê?’. É preciso fazer um esforço de não se prender a ele. 

CONTINENTE Você pode dar algum exemplo prático?
JEAN-CLAUDE BERNARDET Desde o fim dos anos 1950, Jean Rouch trabalhava uma linha de renovação dramatúrgica nesse sentido. Em Eu, um negro (longa de 1958, em que Rouch acompanha a jornada de um jovem nigeriano até a capital da Costa do Marfim em busca de trabalho), o jovem protagonista refaz a viagem para o filme. Ele já tinha feito aquela viagem, e voltou e refez todo o caminho com a equipe. Então, por que chamamos isso de documentário? Por que isso seria um documentário, se é tudo encenação? Mas o que interessa no filme é que ele não se preocupa com a diferença entre pessoa e personagem, não se coloca esse problema, essa divisão. Da mesma forma, Émile Zola e Charles Dickens, grandes romancistas que trabalharam o conceito de realismo na literatura, saíam a campo como repórteres, para depois escrever seus livros de ficção. Ou, ainda, ao assistir a um canal de notícias como a GloboNews, você rapidamente se dá conta que, evidentemente, os entrevistados são cuidadosamente selecionados para dizer o que o canal quer que eles digam, ou seja, eles são atores.

Curiosamente, há poucas semanas assisti a uma entrevista sobre uso de drogas no canal, em que a repórter falava sobre o perigo das drogas. Entrevistada, uma senhora de uns 50 anos especializada no tema respondeu que o maior risco no uso de drogas são as substâncias que são misturadas a elas para a venda e consumo – como a cocaína que vem com talco, o que, segundo esta senhora, faz muito mal para saúde. Quando ouviu isso, a repórter ficou apavorada, porque a entrevistada disse que o perigo no uso de drogas não são as drogas em si. A repórter ficou claramente incomodada e insistiu, disse que não queria que seus filhos fizessem uso de maconha, por exemplo, pois faz mal para a cabeça; ao que a especialista respondeu que “em pequenas doses não faz mal nenhum”. 

Essa entrevistada escapou ao padrão, a esse verdadeiro trabalho de casting em que só se convida para entrevistas pessoas que coincidem com a ideologia política da GloboNews. Evidentemente, eles tem um enorme repertório de especialistas, professores, referências nos mais variados assuntos, mas achar que programas jornalísticos como esse pertenceriam a uma categoria documental, porque refletem a realidade, é uma ilusão total. Nem estou colocando a ideologia política do canal, com a qual não concordo, em questão, mas aplicar a definição de documentário a isso me parece muito ingênuo. Inclusive, aplicar a própria palavra jornalismo – se entendermos o jornalismo como um procedimento rigoroso que se preocupa com os fatos – me parece ingênuo também.

CONTINENTE Você disse antes que Dickens e Zola saíam a campo como repórteres.
JEAN-CLAUDE BERNARDET É verdade. Mas a ficção, tal como a produziam, se tornava uma condensação da realidade. Os personagens-tipo que se observam no realismo de Dickens e Zola são construídos a partir de uma soma de particularidades do real. Para escrever Germinal, Zola acompanhou os horários e a jornada de trabalho dos operários, foi aos bares que eles frequentavam etc. Quando ele descreve como os operários chegam à cidade ao amanhecer, vindos das periferias, ele descreve o que ele viu. Mas é a soma das informações particulares que ele levantou que cria sua narrativa. Isso pode ir muito mais longe: para escrever o final de Madame Bovary, Flaubert pesquisou quais os efeitos do envenenamento por arsênico no corpo humano. Com isso, ele escreveu esse capítulo absolutamente fantástico em que Madame Bovary agoniza depois de tomar arsênico. Ora, o que aconteceu com esse capítulo? Ele foi adotado pela literatura médica para documentar os efeitos provenientes da ingestão de arsênico. Portanto, não faz nenhum sentido, diante da complexidade de uma produção estética, de uma produção ideológica, a gente separar as coisas nessas pequenas categorias. As coisas ficam muito mais difíceis quando essas categorias, essa segurança de vocabulário, começam a tremer. Mas eu sou amplamente a favor de fazê-las tremer, de que tenhamos um discurso mais hesitante diante das obras, e, ao mesmo tempo, mais preocupado com suas formas de produção.

CONTINENTE Você se refere às formas materiais – aos meios técnicos de produção – ou à forma da produção da linguagem?
JEAN-CLAUDE BERNARDET Não acho que as duas coisas estejam muito distantes. Considera-se, por exemplo, que pertence ao mesmo gênero – o documentário – um filme sobre o acervo da Pinacoteca do Estado, em que se pode controlar perfeitamente a luz e o enquadramento, para valorizar pictoricamente a imagem de um acervo de obras de arte; e também um filme que pode ser feito agora mesmo, com entrevistas de transeuntes aqui embaixo (do Edifício Copan, onde vive Bernardet) na Av. Ipiranga, sobre a possível renúncia de Michel Temer, por exemplo, e no qual você não tem controle sobre como a luz vai incidir durante as entrevistas e nem sobre quem pode se recusar a falar para a câmera. Esses são dois exemplos de documentário e, no entanto, suas condições de produção seriam absolutamente diversas, que exigem competências técnicas diversas, mas nosso vocabulário insiste em colocá-los numa mesma categoria.

CONTINENTE Existe alguma definição de documentário com a qual você concorda?
JEAN-CLAUDE BERNARDET Como você vê, toda vez que se tentou definir o que é o documentário, ninguém conseguiu. Uma das posições que ainda me parece atual é a do cineasta francês Jean Vigo, em um texto sobre seu filme A propósito de Nice (1930), em que ele fala do “ponto de vista documentado”. Mas isso, um ponto de vista documentado, pode ser uma ficção. A produção do Zola como romancista, de que falávamos antes, partia desse ponto de vista documentado. Ou mesmo a produção desse filme (aponta para o cartaz do filme Memórias do Subdesenvolvimento, 1967, do cubano Tomás Gutierrez Alea, apoiado na poltrona onde está sentado), parte de um ponto de vista documentado. Vigo chegou a uma expressão que não é dogmática, que não é apenas uma definição de dicionário, e que incorpora essa diversidade de procedimentos que pode ocorrer num filme; afirma a obra como obra, não como reflexo da realidade; cria uma relação entre a obra e a realidade que não é de reprodução. Que incorpora os dois exemplos de que falávamos antes: o filme sobre o acervo da Pinacoteca e o filme sobre a possível renúncia de Temer. Mesmo o acervo da Pinacoteca tem um posicionamento, na seleção e disposição das obras; e na forma como elas serão mostradas. Um ponto de vista pode ser transparente ou não, mas pressupõe um posicionamento, não é mesmo? 

 

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