CONTINENTE É um paliativo?
MICHEL MELAMED Eu não diria que é um paliativo, porque seria subestimar a capacidade do paraíso. Quando ele chega, chega em gozo e esplendor. Mas, é a maior parte do tempo a condição natural da vida… É estranho eu falar isso também porque, enfim, tenho uma carreira, vivo do meu trabalho, sou um cara não tão feio, nem tão burro, sou branco no Brasil, nasci na classe média… é uma condição muito favorável, mas também fiz análise o suficiente pra saber que não vou abrir mão da minha singularização. Minha condição mental, minhas questões e minha sensibilidade em relação ao mundo são infernais.
CONTINENTE Você iniciou sua trajetória no CEP 20.000. É curioso olhar para esse percurso e ver que a palavra nunca bastou para você, ao passo que você também nunca pôde abdicar dela.
MICHEL MELAMED A questão é exatamente essa, não vejo dessa maneira, não vejo com essa separação em que eu pudesse dizer “ah, estou na palavra e agora estou migrando da palavra para outro tipo de linguagem ou atividade”. Não me relaciono com as coisas nesse lugar, elas são muito mais promíscuas. Estou super na defesa do promíscuo. Na peça, o meu texto usa a promiscuidade entre o público e o privado, mas acho que é um desrespeito com a palavra promiscuidade. Retomei, esses dias, o dicionário, para me certificar disso, porque eu estava sentindo – e todas as leituras dela são muito mais lindas que a cotidiana – que é a ideia de uma mistura de algo inadequado, que não deveria ser feito. Ao contrário, promiscuidade é toda a sacanagem boa, toda mistura de coisas diferentes. Então, sou promíscuo.
CONTINENTE Quando, onde e sob que circunstâncias a performance – não apenas enquanto prática ou um gênero artístico, mas como um conceito que atravessa o teatro e a história da arte – contaminou o seu trabalho?
MICHEL MELAMED Eu acho que tem muito a ver com o CEP 20.000. Por natureza, ele era essa integração de linguagens. Comecei a fazer minhas coisas e elas já eram híbridas. Então, eu ia falar poemas, a galera subia e falava poemas no microfone, por alguma razão, eu amarrava sacos de lixo com água nas pernas, entrava com a maior dificuldade – era uma performance. Se eu sabia que era performance? Ainda não. Curiosamente, na época em que estreei meu primeiro espetáculo, o Regurgitofagia, a performance não era uma coisa muito falada ainda. Então, fui procurado por algumas pessoas na época que me davam esse crédito, esse título ou mesmo essa pergunta “ah, você é um performer?”, ou me questionavam, e eu também ficava um pouco ressentido, porque achava que estava fazendo teatro também. E, às vezes, me procuravam e falavam: “você é um performer”, eu falava: “não, eu sou ator”. Ou, o contrário: “você é ator”, e eu falava: “não, sou poeta”. “Você é um poeta”, “não, sou diretor”. Tive esse incômodo, hoje não tenho mais. Hoje é tudo e hoje é o que for, hoje não tenho a menor presunção de querer controlar como sou recebido pelo outro.
CONTINENTE Somos tudo e nada…
MICHEL MELAMED Não! Estou mais pra ser tudo. Sou tudo! Eu já trabalhava de maneira presentificada, já havia quebra de mise-en-scène, todos os códigos mais basilares, os parti pris da performance estavam todos presentes no meu trabalho como interesse, consequência, causa. Era parte daquilo tudo. E aí fui pesquisando vários artistas etc. Cheguei ao ponto até de ter uma experiência como SEEWATCHLOOK (filme e série dirigida por Michel Melamed e exibida pelo Canal Brasil em 2015). Na série, tive a oportunidade de entrevistar Vito Acconci, o pessoal do Fluxus, todo mundo. Estava em Nova York, vi muita coisa, me envolvi. Então, hoje, quando a gente estreia o Monólogo público, acho que é a mistura de todas as perguntas e respostas que a gente fez até agora, acho que é um espetáculo de teatro, acho que é uma performance, acho que é poesia, acho que é qualquer coisa que qualquer um queira chamar, até palestra do TED eu tô aceitando. É stand up, é tudo, é qualquer coisa.
CONTINENTE Somos tudo e nada…
MICHEL MELAMED Não! Estou mais pra ser tudo. Sou tudo! Eu já trabalhava de maneira presentificada, já havia quebra de mise-en-scène, todos os códigos mais basilares, os parti pris da performance estavam todos presentes no meu trabalho como interesse, consequência, causa. Era parte daquilo tudo. E aí fui pesquisando vários artistas etc. Cheguei ao ponto até de ter uma experiência como SEEWATCHLOOK (filme e série dirigida por Michel Melamed e exibida pelo Canal Brasil em 2015). Na série, tive a oportunidade de entrevistar Vito Acconci, o pessoal do Fluxus, todo mundo. Estava em Nova York, vi muita coisa, me envolvi. Então, hoje, quando a gente estreia o Monólogo público, acho que é a mistura de todas as perguntas e respostas que a gente fez até agora, acho que é um espetáculo de teatro, acho que é uma performance, acho que é poesia, acho que é qualquer coisa que qualquer um queira chamar, até palestra do TED eu tô aceitando. É stand up, é tudo, é qualquer coisa.
CONTINENTE Tanto na sua Trilogia brasileira como nesse espetáculo novo, o público se depara com um ator em cena, você, performando um texto que você mesmo escreveu e, no caso do Monólogo, fazendo da própria memória familiar o seu texto. Como falar de si mesmo pode ser um ato político?
MICHEL MELAMED Cara, eu não entendo a sua pergunta. Quando você não fala a partir de si? Você fala a partir de si sempre! Não acho que se eu falar da bala Juquinha, eu estou falando menos ou mais de mim do que se eu comentar sobre o meu bisavô, porque senão a gente está entrando numa área de aferição do quê? Que nível de intimidade e compromisso com o quê? Só pelo fato de eu nomear uma relação de parentesco, é isso que define que estou no campo da intimidade? Só se fala de si mesmo e tudo é política. Falar de si mesmo é falar de tudo, é falar de política.
CONTINENTE Fragmentar e saturar são escolhas estéticas deliberadas ou uma condição do artista no século XXI?
MICHEL MELAMED Ambos. Somos fragmentados. A gente está conversando e eu já pensei que horas são, na peça, olhei, eu ia comer, ia pedir um chá, todo mundo está pensando, olhando, olha a cara dessas pessoas, tem 300 coisas acontecendo ao mesmo tempo. Porque o discurso racional, oral, está conduzindo nosso diálogo, ele não é prioritário. Está fragmentado o que está acontecendo aqui, é humano isso. E, por fim, como procedimento me interessa. Porque eu acho que há um exagero na linguagem linear, acho que ela tem sido usada persuasivamente. No drama burguês, historicamente, é belo você ver a experiência de se engajar em determinados tipos de história – Brecht já não vai achar isso –, mas isso está no jornalismo, em mil lugares e acho que a gente tem que contar pras pessoas que elas têm que dar um passo pra trás e perceber não só a narrativa. Vejo todo mundo falando que a disputa é pela narrativa – golpe ou impeachment? A disputa pela narrativa é a disputa por quem tem o maior caminhão de som, quem grita mais alto, a história contada pelos vencedores. A disputa é anterior a isso, é pela linguagem, é pela construção das relações, dos campos, as escolhas dos signos, dos corpos.