Talvez nenhum filme represente mais essas tendências do que o próprio vencedor da Palma de Ouro, The square, do sueco Ruben Östlund (de Força maior, 2014). Christian (o ótimo Claes Bang) é diretor de um museu de arte contemporânea em Estocolmo, o que pressupõe: culto, esclarecido, tolerante, feminista, ambientalista, sem preconceitos. E, claro, veste-se bem com roupas caras de grife, mora num apartamento de luxo mobiliado com peças de design e dirige um Tesla. Não há motivo para supor que ele não seja uma boa pessoa. Mas, aí, roubam-lhe a carteira e o telefone, num golpe simples, e sua bolha estoura.
Curioso como, em princípio, Christian acha quase divertido o que aconteceu – uma demonstração, talvez, da raridade desse tipo de ocorrência na Suécia –, mas, de brincadeira, resolve tomar a justiça em suas próprias mãos, ou seja, descobrir quem foi o assaltante e exigir seus pertences de volta. “De brincadeira”, vai ao prédio que o localizador do celular mostra e espalha cartas ameaçadoras, basicamente acusando todos os moradores daquele lugar de serem potencialmente criminosos. A partir daí, tudo desanda. O filme também faz uma crítica ao elitismo no mundo das artes, o que acaba soando um pouco postiço, ainda que The square do título refira-se a uma obra que convida à tolerância.
Os mesmos temas se repetem em Happy end, o novo longa-metragem de Michael Haneke. Por se passar em Calais, a cidade onde milhares de pessoas acamparam na tentativa de atravessar para o Reino Unido, muita gente achou que se trataria de uma obra sobre a crise de refugiados. Eles aparecem, mas o filme, como tantas vezes no caso do diretor austríaco, foca na classe média alta/aristocracia. Aqui, na família Laurent. O patriarca, Georges (Jean-Louis Trintignant), apresenta sinais de demência. Sua filha, Anne (Isabelle Huppert), tenta livrar a construtora da família de um acidente que resultou na morte de um operário, enquanto procura transformar seu inepto filho Pierre (Franz Rogowski) num homem de negócios. O irmão de Anne, o médico Thomas (Mathieu Kassovitz), tem sua vida transformada quando a filha adolescente, Eve (Fantine Harduin), vem morar com ele depois de sua mãe parar no hospital. Haneke usa menos violência que o habitual, mas é agudo nas observações do comportamento de classe e na convivência “civilizada” com os empregados, por exemplo.
Em Nelyubov (Loveless, em inglês), de Andrey Zvyagintsev, que levou o prêmio do júri, as ambições burguesas de um casal no meio de um divórcio feio são um reflexo de sua classe na Rússia de hoje. Boris (Alexey Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak) estão tão dispostos a se odiar e a se jogar em suas novas vidas – ele, com o emprego confortável e a namorada grávida, ela, com o amante rico –, que só descobrem depois de dias que o filho adolescente (Matvey Novikov) sumiu. A busca que se segue enfoca um país transtornado.
Krotkaya (A gentle creature, em inglês), de Sergei Loznitsa, leva bem mais adiante a ideia de personagens que simbolizam uma classe ou todo um país, como o cineasta já tinha feito em trabalhos anteriores, a exemplo de My joy. Aqui, uma mulher sem nome (Vasilina Makovtseva) passa por todos os tipos de provação e enfrenta compatriotas monstruosos ao tentar descobrir o que aconteceu com o marido numa prisão. Ninguém é bonito, agradável ou rico, mas todos são um sintoma – ou causa – do país em que vivem. A classe não importa, a opressão e o abuso de poder estão em todas as partes. O filme é potente até embarcar numa alegoria que apenas reitera o que foi dito e usar o estupro como recurso duvidoso.
O único brasileiro em Cannes, Gabriel e a montanha, de Fellipe Gamarano Barbosa, ganhou dois prêmios na paralela Semana da Crítica. O longa é baseado na história real do amigo de infância do diretor, Gabriel Buchmann, que morreu no monte Mulanje, em Malauí, depois de uma aventura de 10 meses com o objetivo de conhecer de perto a realidade da África. Gabriel (João Pedro Zappa), um jovem de classe média alta e branco, que acabou de ser aceito por uma universidade norte-americana, dorme na casa de desconhecidos e tenta se inserir na comunidade, vivendo como eles, ainda que, no fundo, isso seja impossível.
Voltando à competição, Good time, dos irmãos Josh e Benny Safdie, relata, de certa forma, uma aventura. Os irmãos Connie (Robert Pattinson) e Nick (Benny Safdie) roubam um banco, o que termina jogando Nick, que está no espectro autista, na prisão. O crime, feito em parte por necessidade, mas também porque Connie acha que pode, coloca-o numa jornada maluca por Nova York para tirar o irmão da cadeia. Os Safdie (de Amor, drogas e Nova York, de 2014) ecoam Martin Scorsese e Sidney Lumet dos anos 1970 e 1980, fazendo um filme de pura ação. Connie pode não ser rico, nem tão inteligente, mas age como privilegiado – prova de que há diversos níveis de privilégio, e não é preciso dirigir um Tesla para isso.
FEMININO
O filme também fala de uma masculinidade tóxica, e não foi o único. Geu-hu (The day after, em inglês), do prolífico Hong Sangsoo, que tinha outro filme fora de competição e disputou o Urso de Ouro em Berlim, em fevereiro, tem um personagem principal masculino, como de praxe nos longas do diretor, bastante inepto, por mais intelectual que seja. Casado, Bongwan (Kwon Haehyo) trai sua mulher com Changsook (Kim Saebyuk), uma funcionária da editora que dirige. Quando a amante decide partir, ele contrata uma nova profissional, Areum (a ótima Kim Minhee), que é confundida pela mulher com a amante. E, para piorar, Changsook volta. Nem é preciso dizer que Bongwan não faz nada para realmente resolver a situação. Geu-hu provavelmente não passaria no teste de Bechdel – aquele que estabelece regras para medir a qualidade das personagens femininas, como elas terem nomes próprios ou conversarem entre si sem ser em referência a um homem. É importante notar o fato porque foi citado pelas quatro mulheres do júri presidido por Pedro Almodóvar – a diretora alemã Maren Ade, a atriz chinesa Fan Bingbing, a diretora francesa Agnès Jaoui e a atriz americana Jessica Chastain.
É fato que a quantidade de personagens femininas interessantes foi bem minguada nesta 70a edição – a seleção oficial de Cannes tem sido frequentemente criticada pela baixa presença de cineastas do sexo feminino, por exemplo, apesar de ela ter sido mais abundante nas mostras paralelas. A participação francesa foi especialmente decepcionante, apresentando mulheres como satélites ou objetos sexuais do pobre artista (em Rodin, de Jacques Doillon), fazendo biquinho, dividida entre dois homens – gêmeos! – manipuladores (em L’amant double, de François Ozon) e como objeto embelezador pendurado no braço de um gênio do cinema, no caso, Jean-Luc Godard (em Redoutable, de Michel Hazanavicius). Nem o melhor deles – 120 batidas por minuto, de Robin Campillo, que levou o Grande Prêmio do Júri – escapou, dando quase nada a fazer à ótima atriz Adèle Haenel.
O que nos leva a O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola. A delicada cineasta – que levou o prêmio de direção – fez uma versão do filme de Don Siegel de 1971, com Clint Eastwood no papel do soldado da União que, ferido, é acolhido por mulheres no sul, durante a Guerra de Secessão. Aqui, Colin Farrell é o soldado, e as mulheres – com Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning à frente – ganham mais relevo e poder do grupo. No fim, o tão gentil soldado pode não ser o que parece, e as mulheres, aparentemente indefesas num mundo em que os homens vão para o campo de batalha, não são tão frágeis assim.
As mulheres de Sofia Coppola têm o direito de serem más, o que é uma boa notícia. É também o caso da empresária Lucy Mirando vivida por Tilda Swinton em Okja, de Bong Joon Ho. Junto com The Meyerowitz stories (New and selected), de Noah Baumbach, o longa marcou a primeira – e provavelmente última – participação da Netflix na competição em Cannes. Como há uma janela de três anos em vigor na França entre a exibição no cinema e no streaming, não houve acordo para que o filme estreasse nos cinemas do país, fazendo com que o festival estabelecesse que, a partir do ano que vem, todo longa disputando a Palma de Ouro precisa ter distribuição francesa garantida. Em Okja, Lucy Mirando é uma empresária que se acredita muito distante de seu pai e de seu avô, responsáveis, por exemplo, pela fabricação de Napalm, mas que não hesita em explorar um animal para consumo humano e separar uma menina coreana de seu único amigo.
SÉRIES NA COMPETIÇÃO
A entrada da Netflix foi uma das novidades da 70a edição, que também incluiu séries – Twin Peaks, de David Lynch, e Top of the lake: China girl, de Jane Campion – na programação. Quanto a Lynch, está distante de tudo o que foi apresentado em Cannes, retomando e expandindo seu universo próprio, indecifrável e fascinante. Um exemplo para qualquer cineasta.
Também houve o curta de realidade virtual feito por Alejandro González-Iñárritu e Emmanuel Lubezki, a dupla por trás de O regresso. Carne y arena coloca o espectador no meio do deserto, ao lado de imigrantes ilegais tentando atravessar a fronteira entre o México e os Estados Unidos e sendo pegos pela polícia, aponta para novos caminhos do cinema e também dá um tapa na cara dos privilegiados que frequentaram a Croisette entre 17 e 28 de maio – mesmo que eles sejam liberais, antirracismo e pró-imigração, como o Christian de The square.
Acima de tudo, Cannes-70 evidenciou um certo cisma no cinema mundial: de um lado, filmes dispostos a tocar nas feridas do mundo recorrendo ao choque (The square, Krotkaya, The killing of a sacred deer, de Yorgos Lanthimos); de outro, aqueles que procuram tratar a humanidade com certa delicadeza mesmo em seus piores momentos (120 batidas por minuto, Geu-hu, Wonderstruck, The Meyerowitz stories, Hikari, de Naomi Kawase, Good time). O choque, aparentemente, venceu. A verdade é que foi um festival mediano, com poucas – ou nenhuma – obras realmente memoráveis. E isso, infelizmente, costuma apontar para uma safra cinematográfica pouco inspirada.