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A voz hispânica da África

Pouco conhecidos no Brasil, escritores nascidos no Marrocos, Guiné Equatorial, Saara Ocidental e Camarões têm uma profícua produção em língua espanhola

TEXTO Rogerio Mendes

01 de Julho de 2017

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo na íntegra | ed. 199 | julho 2017]

As relações políticas e sociais observadas entre os espaços hispano-americanos, africanos e europeus possuem raízes históricas que reiteram a noção de colonialidade e configuram o corrente sistema geopolítico global. Do século XV aos dias de hoje, o legado colonial, para Walter Mignolo (2003), ambivalente conceito que também se apresenta como modernidade em perspectiva periférica, aperfeiçoou mecanismos de controle de trabalho; modos de produção, inclusive, de conhecimento; comunicação e linguagens fundamentados a partir de princípios e ambições ocidentais, tendo-se como base uma espécie de missão integradora universal. Desse modo, a partir de espaços de convivência interculturalizados, coabitados também por interesses em desacordo, geraram-se racismos e negaram-se genealogias de povos independentes em detrimento de uma pretensa e absoluta razoabilidade de referências distantes. Desde então, a base étnica constitutiva na África e América Latina foi compreendida como otredad – a incapacidade de perceber o outro como igual – e sua genealogia, sistemas políticos e criativos questionados pelo desdobramento de uma complexidade colonial que persiste.

A estratégia de instituir planos hegemônicos globalmente pelas grandes potências econômicas contribuíram para que espaços com pouca visibilidade política sentissem a necessidade de revisar, do ponto de vista epistemológico, experiências históricas no intuito de garantir soberania de vozes culturais marginalizadas. Acredita-se dessa forma que, preservando o patrimônio cosmogônico, individual e coletivo dessas culturas, seria possível otimizar as relações entre as diferenças e garantir a legitimação de particularidades em meio ao gradual processo de uniformização política e cultural planetária. Nessa perspectiva, as atenções voltam-se para os estudos dos discursos por serem mediadores de fronteiras e fluxos que sugerem e autorizam domínios políticos, inclusive, subjetivos. São mecanismos que incutem no tempo imaginação e sugestões valorativas como forma de ampliar, de maneira negativa, ocupações e/ou isolamentos. É nessa circunstância que se reconhece o momento propício para (re)pensar o modus operandi das relações crítico-educativas que envolvem os estudos literários e, mais especificamente, dos estudos literários hispânicos atuais. 

As matrizes de natureza política e subjetiva, como a Literatura, por exemplo, na conjuntura global, também possuem raízes históricas que contribuem para compreender as tensões e distensões de um sujeito que não pode, em absoluto, dar conta isoladamente de sua totalidade. Por meio de narrativas, a noção de colonialidade – do imaginário – ainda se faz presente e, inevitavelmente, relaciona-se a uma diplomacia perversa que aproxima territórios e pessoas, mas incute violências ao não reconhecer, ou reconhecer parcialmente, valores e tradições culturais distintos. 

Tomando-se como referencial o interesse pela contribuição epistemológica e vivencial de “afrossaberes”, considerando-os de suma importância, principalmente se enunciados a partir de seus próprios sujeitos e produções, oportunizam-se valores e representações ignoradas por muitos. É dessa maneira que se tornam pertinentes questionamentos sobre a importância de revisar, e reavivar, histórica, epistemológica e vivencialmente, as disposições sobre o patrimônio crítico e criativo que tornam invisíveis autonomias de vozes e corpos independentes, entre América e África espanholas, que se interseccionam por similaridades em naturezas políticas, históricas e linguísticas. Vislumbra-se, como objetivo, reconhecer nas aproximações estéticas e culturais entre os dois espaços, latino-americano e africano, a oportunidade de repensar-se e reconhecer-se a partir das próprias experiências históricas e difundir valores negligenciados por uma herança colonial comum em seus métodos e ações.

Para Boaventura de Sousa Santos (2014), a revisão de epistemologias modernas apresenta-se como desafio teórico para dar inteligibilidade a um mundo que, apesar de diverso, ainda possui dificuldades em articular-se como tal. A ideia também se legitima pela busca do reconhecimento de contribuições culturais africanas com vistas a dar uma maior visibilidade ao negro no processo de formação social e literária em âmbito de alcance local e global. Trata-se de um desafio ético, na medida em que se observa o silenciamento de ancestralidades por condutas politicamente questionáveis que até os dias de hoje esvaziam, gradativamente, a noção do particular em detrimento de vias que uniformizam o entendimento do diverso.

Apesar de mais comuns em espaços de língua portuguesa, os estudos afrodiaspóricos não se desenvolveram a contento no contexto hispânico no Brasil. Sim: existe uma literatura afro-hispano-zmericana. Sim: existe uma literatura hispano-africana e por razões semelhantes as que motivam a existência e valores de uma literatura afro-brasileira. É por estranhar o não investimento nas particularidades afrodescendentes no contexto de língua espanhola que se justifica essa discussão. É preciso reiterar a importância da África no processo civilizatório global como dado positivo; é igualmente importante observar que a noção de hispanismo não se restringe à bilateralidade América-Espanha; é relevante conhecer a existência de uma África de língua espanhola e os marcos que unem e nos separam como ferramenta de instrução e humanismo. 

Portanto, aprofundar as diretrizes de estudo sobre etnia e literatura, aqui, desse modo, ultrapassa o sentido reivindicatório sugerido pelos Estudos Culturais, quase sempre articulado a partir da perspectiva de subalternidade. A ideia aqui consiste em reabilitar, articular e incluir linguagens e representações como exercício democrático que, por meio de uma simetria dialógica, visa substituir a beligerância do descaso retórico ou mero isolamento ou, ainda, como prefere Enrique Dussel (1997), “práxis racional da violência”, por oportunidades e esclarecimentos interessados em arregimentar a ideia de civilização a partir da ampliação de redes que dão acesso ao (re)conhecimento das particularidades ignoradas do que se compreende como diverso. 

 

 

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