A arte “promíscua” de Michel Melamed
A visão de que o estético e o político são indissociáveis e a mistura de meios e linguagens – como literatura, teatro e cinema – são marcas do trabalho performático do artista
TEXTO Biagio Pecorelli
01 de Julho de 2017
Em seu novo espetáculo,
Foto Julia Rodrigues/Divulgação
[conteúdo da ed. 199| jul 2017]
Em Pintura Modernista, ensaio de 1960 que integra o volume Clement Greenberg e debate crítico, o crítico norte-americano Clement Greenberg, baluarte da arte moderna, afirma que “[a] essência do modernismo […] reside no uso de métodos característicos de uma disciplina, não no intuito de subvertê-la, mas para entrincheirá-la mais firmemente em sua área de competência” [1]. Àquela altura, 1960, a arte da performance já se desenhava, tanto nos Estados Unidos como na Europa, como um gênero artístico híbrido, que antecipava aspectos impuros do pós-modernismo e se constituiria, ao longo das décadas seguintes, como uma “indisciplina artística” (como aponta Tânia Alice, em Performance como revolução dos afetos). No Brasil, artistas pioneiros como Flávio de Carvalho já perfaziam desde os anos 1930 uma obra mestiça, que transitava entre a arquitetura, a pintura, o teatro, a música e experiências que levavam o corpo a embates radicais no cotidiano urbano.
De todo modo, a década que se iniciava quando Greenberg escreveu seu ensaio tenderia a implodir, no bojo da contracultura, os “aspectos essenciais” e os “efeitos exclusivos” de cada campo artístico, levando parte considerável dos artistas, especialmente aqueles ligados à performance, a manter o caráter autorreflexivo da arte moderna, mas a instaurar, a partir de então, uma visão promíscua, tanto no sentido de fundir as linguagens como de diluir as fronteiras entre arte e vida, entre o estético e o político, entre a “cultura genuína” e o kitsch.
O trânsito livre entre arte e vida, o recurso à chamada “baixa cultura”, a visão de que o estético e o político são indissociáveis e a mistura de linguagens são marcas do trabalho performático do artista brasileiro Michel Melamed. Poeta, ator, performer, diretor, cineasta, roteirista, apresentador de TV, Michel despontou para o grande público após o sucesso do espetáculo Regurgitofagia (2004): uma inovadora experiência teatral na qual o ator se colocava no palco como parte de uma engenhoca que transformava estímulos sonoros em descargas elétricas sobre seu corpo. Lá pelas tantas, Michel vomitava – cena quase ilustrativa para uma peça que se propunha criticar o conceito de antropofagia ou, pelo menos, a ponderar quanto à assertiva oswaldiana de que, no cerne da formação cultural brasileira, está nossa vocação para devorar o inimigo.
Não seria necessário, já no século XXI, distinguir aquilo que nos cabe deglutir daquilo que devemos, por lição histórica, regurgitar? Qual seja, os choques “reais” levados por Michel em cena pareciam materializar a substância relacional do teatro, de todo teatro, à medida que a mínima reação sonora vinda da plateia (o riso ou o aplauso, por exemplo) sacrificava instantaneamente o desempenho do ator em cima do palco, o que conferia ao espetáculo um quê de sadismo e reflexão política.
Regurgitofagia integrava o que o artista chamou inicialmente de Trilogia Brasileira, da qual fizeram parte ainda Dinheiro grátis (2006) e Homemúsica (2007). No primeiro, Michel se dispôs a utilizar estratégias discursivas, as mais ardilosas, para “extorquir” dinheiro dos espectadores em cena, novamente evidenciando esse fio de cumplicidade que se estabelece entre o ator e o público quando soa o terceiro sinal. Em Homemúsica, Michel esteve acompanhado de uma banda, investigando mais especificamente a fronteira entre a palavra falada e a palavra cantada.
O traço comum dessa Trilogia – além, é claro, do fato dos três espetáculos terem sido escritos e atuados pelo próprio Michel – é a relação franca, “direta”, frontal que o ator estabelece com o público, herança de suas primeiras experiências artísticas ao microfone do CEP 20.000, famoso evento literário da noite carioca, fundado nos anos 1990 pelos escritores Guilherme Zarvos e Chacal. Privilegiando esse eixo de comunicação palco-plateia à maneira de um spoken word ou de um stand up comedy, o teatro promíscuo de Michel Melamed relega o drama a segundo plano, e junto a ele as categorias de “ficção” e “personagem”. Mesmo no assombroso Adeus à carne ou go to Brazil (2012), quando a verborragia dos espetáculos anteriores foi estancada num teatro de imagens, Michel roteirizou e dirigiu um “sambicídio” que quis pôr a nu a estrutura ficcional de um Brasil que, às vésperas de abrigar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada, gabava-se de ter sido considerado a sexta potência econômica mundial.
MONÓLOGO PÚBLICO
Atualmente, o ator apresenta, no Canal Brasil, um programa de entrevistas intitulado Bipolar Show e leva aos palcos o seu mais recente espetáculo Monólogo público (2017). Neste, Michel recorre a memórias familiares para alçar o acontecimento teatral a uma experiência política radical em sua linguagem. Um palco sobre o palco onde o performer alterna um estado, digamos, apenas comunicativo, um self as context, e ações visivelmente mais formais, vestidas de recursos de luz e som, sugerindo inicialmente uma esquizofrenia entre intimismo e extroversão, tanto na forma (confissão poética x mise-en-scène) como no conteúdo (histórias sobre sua mãe, sobre seu pai x chistes sobre o atual cenário político brasileiro). Gradualmente, o espetáculo vai diluindo essa fronteira e produzindo, enquanto linguagem, uma espécie de vertigem, análoga àquela que talvez sintamos ao notar, dia após dia, a histórica promiscuidade entre o público e o privado na vida política brasileira.
Quebras sucessivas de mise-en-scène, uma dramaturgia aforismática (alguns dirão twittteira) e um roteiro de ações que funciona por procedimentos de collage impedem um pensamento conclusivo sobre o que vemos e ouvimos, submetendo a peça ao crivo das singularidades e da multiplicidade de interpretações dos espectadores, que se veem convocados a compor a obra. Uma entrevista concedida ao teatrólogo Antônio Abujamra, no programa Provocações (TV Cultura), anos atrás e disponível agora no Youtube, é, nesse sentido, ainda emblemática.
O mestre pergunta ao jovem poeta: “Você acha a poesia uma coisa muito rara?”, ao que Michel responde “Não, ao contrário, eu acho o ordinário raro”, e o mestre o contesta veementemente: “A poesia é raríssima!”. Claro, reconhecida a grandeza dos clássicos, Michel deglutiu a herança de Marcel Duchamp, Joseph Beuys e Allan Kaprow – isso para ficar apenas com três nomes inebriantes do século ido. Duchamp nos disse que tudo pode ser arte, Beuys que todo ser humano é um artista e Kaprow, que há mais arte nos movimentos de fregueses dentro de um supermercado que na dança contemporânea. Três golpes irreversíveis na aura da obra de arte, golpes que a esvaziam enquanto objeto e, por conseguinte, empoderam o olhar. É no fundo – Beuys tem razão – um projeto tão promíscuo quanto humanista para a arte este projeto do qual Michel participa. E a crítica observa nos trabalhos de Melamed algo de narcisista ou autocentrado, o artista mostra em cena, com espetáculos como Monólogo público, que não vê distinção entre o eu e o político, tal como no célebre verso de Rimbaud: “Je est un autre”.