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Verdade falseada

Todo dia, uma maior parcela da população mundial se conecta pelas redes sociais e faz circular, com velocidade instantânea, informações nem sempre confiáveis

TEXTO Fábio Lucas

01 de Junho de 2017

"Notícias falseadas passaram a ser alvo de campanhas publicitárias em defesa da imprensa em todo o mundo"

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo da ed. 198 | julho 2017]

Uma das bases
filosóficas de validação do conhecimento científico é a possibilidade, defendida por Karl Popper, de que a verdade seja falseada. Somente assim as hipóteses na ciência podem avançar e ganhar respaldo na realidade, sendo submetidas aos filtros da crítica e da coerência entre a teoria e os fatos. Nos últimos meses, outro tipo de falseabilidade vem recebendo a atenção da considerável parcela da população mundial conectada pelas redes sociais: as fake news, ou notícias falsas. Sem o rigor da epistemologia, a Continente aproveita a atualidade do tema – objeto de intenso debate no meio acadêmico e na mídia global – para abordar, por mais de um ângulo, a falseabilidade dos fatos que circulam, com velocidade instantânea, nas redes sociais da internet.

Depois de provarem o seu alcance na influência que teriam exercido na eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, as notícias falseadas passaram a ser alvo de campanhas publicitárias em defesa da imprensa em todo o mundo. Campanhas realizadas por veículos isolados, como o New York Times, ou por entidades como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), no Brasil, têm pregado o discurso de que as mentiras lançadas e disseminadas nas redes sociais devem ser combatidas com o resgate da confiança na credibilidade nos meios de comunicação e, antes disso, no exercício do jornalismo. A Organização das Nações Unidas (ONU) entrou na briga contra as fake news, especialmente através da Unesco, com declarações de sua diretora-geral, Irina Bokova. “A mídia como atividade empresarial está sendo abalada em seu núcleo, com o advento das redes digitais e das mídias sociais. Jornalistas cidadãos estão redesenhando os limites do jornalismo”, disse ela, referindo-se ao desafio das empresas de comunicação e realçando a importância de um “jornalismo original, crítico e bem-fundamentado, orientado por altos padrões profissionais e éticos, e por uma educação em mídia de qualidade”. No Brasil, o slogan da campanha da ANJ, publicada em diversos veículos do país, em maio, dizia: “Nunca se precisou tanto da imprensa. Compartilhe isso”.

O duopólio que domina a internet – Google e Facebook – foi chamado a participar dos esforços contra a suposta onda de desinformação que assustou até governos de potências como a Alemanha. A chanceler Angela Merkel se pronunciou sobre o assunto, exigindo medidas concretas do Facebook. Aliás, entre os alemães, essa história tem dolorosa lembrança: a expressão Lügenpresse era usada por Adolf Hitler para atacar o que denominava como imprensa mentirosa.

Outra potência europeia se voltou para a questão. Nos dias que antecederam o segundo turno presidencial na França, foi levantada a suspeita sobre o uso de fake news para prejudicar o candidato Emmanuel Macron, que terminou se sagrando vitorioso. Meses antes, em fevereiro, o projetoCrossCheck foi lançado em Paris, conjuntamente, pelo Google e pelo Facebook, em parceria com grandes veículos franceses de comunicação.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, Trump ataca a imprensa tradicional desde os primeiros dias de mandato, chamando os grandes jornais do país, como o NY Times e o Washington Post, de produtores de fake news, numa manobra diversionista que inflamou ainda mais os ânimos. O duelo do presidente norte-americano com a mídia possui outras nuances. No entanto, sobretudo após a manifestação do governo e de parlamentares na Alemanha, os mecanismos de checagem das informações na internet, bem como de inibição da distribuição de notícias falsas, devem ser aprimorados por causa da pressão política que tomou conta do debate acerca do tema.

Um professor da Universidade de Nova York, Jeff Jarvis, manifestou à imprensa norte-americana uma preocupação que não deve ficar fora do debate. “Cuidado com o que desejamos. Queremos mesmo colocar o Facebook e o Google como censores do mundo? Queremos que decidam o que é real e fake, verdadeiro e falso?” De fato, a instauração da checagem da informação com o intuito de legitimá-la carrega, junto, a possibilidade de manipulação similar à que ostentam as fake news.

A reação institucional às notícias falseadas rebate na qualidade do jornalismo praticado pelas grandes empresas de mídia – qualidade posta em xeque pela crise de financiamento dos meios de comunicação – que deságua invariavelmente na eterna discussão sobre imparcialidade perante os fatos. Rebate na atração das pessoas ao que se parece com a verdade que querem ver, e, ainda, na afronta à liberdade de expressão que se vincula à virtual proibição de proliferação de boatos. De onde vêm as notícias falsas – e para onde vai a sociedade da informação a partir do reconhecimento de que o falseamento dos fatos, amplamente compartilhado, é um fato, em si, inescapável?

DISRUPÇÃO DA REALIDADE?
Pesquisador do Berkman Klein Center para Internet e Sociedade da Universidade Harvard (EUA), o jornalista e escritor David Weinberger acredita que o fenômeno das fake news afeta não apenas o jornalismo, mas o próprio conceito de notícia, e também de realidade. Para ele, a mudança é saudável. “Muitas pretensas notícias são mentiras. Mas não estamos mais limitados àquilo que a mídia nos mostra como ‘as notícias’ – e aqui me refiro à mídia legítima que busca a verdade”, diz ele para a Continente.

Uma consequência dessa mudança é que agora podemos nos aprofundar o quanto desejarmos num tópico. Outra é mais importante: no aprofundamento, topamos com redes de indivíduos falando sobre o assunto, articulando sentidos e conexões, dando opiniões, perguntando e explicando a questão uns para os outros. “Descobrimos que há tanto para saber sobre um assunto, de tal forma, que só conseguimos fazê-lo juntos”, pontua Weinberger, ex-diretor do Harvard Library Innovation Lab, onde organizou estudos sobre o futuro das bibliotecas.

No emaranhado de informações e pontos de vista disponíveis em rede, as pessoas precisam manter uma inteligência crítica para discernir o que encontram. “Sabemos que nem todos podem estar certos, então temos que aprender a separar aqueles que valem a pena ser escutados. Percebemos que sempre seremos imperfeitos, e vamos precisar melhorar continuamente neste aspecto”, acredita David Weinberger. “Viemos de um tempo em que a mera publicação de algo sinalizava um grau de seriedade, o que nos treinou a aceitar o que líamos como confiável simplesmente porque estávamos lendo”, lembra o também escritor, ex-professor de Filosofia. “Agora, qualquer um pode publicar, o que é uma evolução incrível e de alcance mundial, mas muitos de nós ainda não abandonamos o velho treinamento de leitura e apreensão da realidade.”

Além disso, Weinberger menciona a tendência que as pessoas têm de procurar e acreditar nas informações em que já acreditavam. “É como a genuína compreensão funciona: assimilamos o novo através do contexto do que nos é familiar. As fake news jogam com essa estrutura básica da razão”. Neste sentido, avista-se um potencial inovador e simultaneamente de ruptura no exame do que espelham as fofocas, mentiras e boatos postados freneticamente nas redes sociais. Um termo da moda utilizado para caracterizar as transformações em curso com o avanço da tecnologia digital – disrupção – talvez contenha parte da explicação sobre o fenômeno, ainda por ser devidamente esmiuçado pelos pesquisadores sociais e teóricos da comunicação. Como resvala na apreensão que as pessoas podem ter da realidade, a disrupção ligada às fake news atinge a noção básica de verdadeiro e falso, e por isso, deve ser vista além da onda superficial.

Com graduação em Jornalismo pela UFPE, doutora e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com doutorado sanduíche na McGill University (Canadá), Ariane Holzbach também enxerga o benefício coletivo no advento das fake news – ou sua intensificação em escala virtual. “Notícias falsas se espalham basicamente porque costumam tratar de questões prementes socialmente e porque são críveis em vários níveis, ou seja, parecem ‘verdade’ para muitos perfis de leitores”, explica. “Mais do que meramente julgar, precisamos entender melhor esse fenômeno. Por exemplo, acredito que o espraiamento das fake news comprova que determinados temas precisam ser mais debatidos e compreendidos socialmente”, diz Ariane.

Para o também professor da UFF, Fernando Resende, a internet é lugar de muitos crédulos. E as fake news se espalham “porque a internet é este lugar onde as coisas se aglutinam e escoam”, diz Resende, sem creditar algum “valor” nas fake news propriamente ditas. “A internet é um lugar extremamente propício hoje para a difusão de histórias, verdadeiras ou não”, afirma o professor do curso de Estudos de Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Departamento de Mídia e Estudos Culturais da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena o Laboratório de Experimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia.

JORNALISMO NA BERLINDA
Para Ariane Holzbach, é sintomático que o fenômeno atinja em cheio a atividade jornalística. “A ‘notícia’ fundamentou historicamente toda a formação e legitimação do jornalismo como uma ferramenta social distinta de outras, como a literatura. As fake news, em vários sentidos, desestruturam a principal ferramenta dessa profissão, potencializando um fenômeno em curso vinculado à própria crise de identidade do jornalismo no Ocidente a partir da popularização da cultura digital.” Ela não pensa nas fake news como uma onda que tenha surgido do nada, espontaneamente.

“Todo fenômeno tem razões historicamente construídas e acontece processualmente. As mídias sociais permitiram com mais facilidade que um gigantesco grupo social – os ‘não políticos’, os ‘não jornalistas’, por exemplo – desenvolvesse um espaço potencialmente compartilhável para expor seus pensamentos e emoções”, aponta Ariane, no que podemos tomar como um detalhamento do trabalho colaborativo de sentido para a realidade, sugerido por David Weinberger. “Essas pessoas não vão desistir ou perder a vontade de se expressar, seja se apropriando de convenções do jornalismo, seja utilizando qualquer outra ferramenta social, através de plataformas como as mídias sociais. Posto isso, não tenho a menor dúvida de que estamos vivenciando um processo de reconfiguração profunda que se relaciona com a legitimação do jornalismo e da profissão de jornalista.”

No processo de reconfiguração em curso, Holzbach crê não haver mais espaço para a separação dicotômica entre mídia ‘tradicional’ e outras mídias. “Essa separação não faz mais sentido, e o jornalista deve ao máximo compreender e lidar com isso.” E a compreensão do fenômeno, por sua vez, exige o resgate da falsificação das notícias antes da era digital. “A história do jornalismo é abarrotada de notícias falsas historicamente desenvolvidas, inclusive, pelos próprios jornalistas. Só no Brasil, por exemplo, ‘notícias’ como o nascimento do Bebê Diabo, no ABC Paulista, ou do Mão Branca, na Baixada Fluminense, mostram que a ‘culpa’ não está nem na tecnologia nem nas pessoas que não são jornalistas”, ressalta Ariane. “Essa questão, portanto, está além da cultura digital ou das mídias sociais. Seria preciso, eu diria, discutir mais para não se demonizar a ferramenta sem se compreender o fenômeno.”

Para Fernando Resende, as mídias sociais, pela natureza do ambiente em que estão instaladas, têm relação direta com as fake news, na medida em que são lugares propícios para a difusão de histórias. “São os novos ambientes onde também (e esta palavra é importante, pois ali outras relações também se fazem presentes) se produzem e se espalham boatos. Penso que não se trata de nada mais profundo, mas, com certeza, duradouro”, aponta o coordenador do Laboratório de Experimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia, para quem o futuro das notícias falsas no mundo virtual é bastante promissor, pois elas seguirão se propagando.

O importante, na visão do professor da UFF, “é referendar a relevância do papel que cabe aos órgãos competentes (ou sujeitos responsáveis) por preservar as verdades dos fatos: sempre foi assim, mas, nos dias atuais, mais que nunca, são eles os responsáveis por organizar os fatos, apurando-os de forma competente e só divulgá-los a partir do trabalho de apuração e investigação devidamente realizado”.

O pesquisador do Instituto Reuters, Richard Sambrook, sintetiza como a questão pode ser tratada daqui por diante. “As empresas de tecnologia precisam assumir maior responsabilidade sobre os impactos públicos de suas plataformas. Os políticos precisam reconhecer que a comunicação e a compreensão dos fatos mudaram. O jornalismo precisa igualmente entender o poder das fake news, dos memes e outros adventos da cultura digital. E o público precisa de um padrão mais alto de educação midiática para tentar compreender o que está consumindo”.

DEMOCRACIA E FAKE NEWS
O impacto dessa disrupção que põe jornalistas e empresas de comunicação na berlinda pode ser visto, portanto, além das fronteiras da mídia. Para David Weinberger, um dos grandes efeitos é a alimentação do cinismo, da indisposição de crer em qualquer acontecimento. “Uma coisa é questionar tudo com o objetivo de achar o que é digno de crença. Outra é não acreditar em nada, quando nos é dito repetidamente que as fake news estão em toda parte.” O pesquisador de Harvard indica outro impacto crucial: a erosão do senso de autoridade. “É bom porque nos deixa mais céticos em relação ao que lemos. Porém, traz o efeito negativo de nos fazer imaginar que não há verdadeira autoridade para nada. É uma conclusão equivocada. Não existe autoridade que não mereça questionamento, mas algumas fazem melhor do que outras o trabalho de nos trazer a verdade.”

Nesse ponto, o uso político do fenômeno turbinado pelas redes sociais desponta. “É importante recordar que as fake news têm sido promovidas como conceito por indivíduos no poder”, diz Weinberger, “com a intenção de subverter a autoridade tradicional (da mídia) em seus próprios interesses. O presidente Trump, que mente várias vezes antes do café da manhã, fala sobre fake news o tempo inteiro porque não deseja que acreditemos nas fontes que nos dizem a verdade”. No caso de Trump e de outros políticos que pegaram carona no termo, a deturpação das fake news é dupla: além de designar o mau uso da informação noticiada, traz o conceito desvirtuado pelo populismo incomodado com a imprensa livre.

Pesquisador do Instituto Reuters e ex-diretor da BBC, Richard Sambrook chama a atenção para o fato de que a democratização dos meios de comunicação deveria ser uma coisa boa, “mas as fake news e a desinformação deliberada que elas projetam são tóxicas”. Ainda mais porque o fenômeno é impulsionado pelo efeito de câmara de eco “onde as pessoas reforçam seus preconceitos, acreditando somente naquilo que estiver de acordo com suas próprias visões predispostas”. Além disso, o maior impacto é a confusão causada nos consumidores de informações falsas. “Se as pessoas estiverem equivocadas sobre o mundo, elas não podem fazer boas escolhas para suas vidas. Isso afeta a política, o debate cotidiano e a vida pública.”

Sambrook, que produziu a cobertura da BBC sobre a queda do Muro de Berlim, em 1989, divisa um risco maior a respeito do tema que, por ora, rebate mais na política e no jornalismo. “Por baixo das fake news mora a ‘pós-verdade’, o relativismo que desmerece especialidades, fatos e provas. Essa é uma característica perigosa, pré-iluminista”, adverte. “A informação é a moeda do nosso mundo. Negócios, política, discurso social e relações internacionais se baseiam na suposição de informação acurada, compartilhada.” Para Sambrook, a insegurança da informação abre um vácuo na confiança creditada a instituições que formam o sustento da democracia. Não é à toa que um especialista em fake news, Jonathan Albright, da Elon University, cunhou a expressão “máquinas de micropropaganda”, voltadas à produção instantânea de opinião pública através da reação maciça a assuntos políticos e eventos midiáticos. Tais microinstrumentos de persuasão ganham escala e sentido no universo livre das redes sociais.

Os sinais de desestabilização foram lidos antes da eleição de Donald Trump, ou mesmo do referendo na Grã-Bretanha, que terminou optando pela saída dos britânicos da Comunidade Europeia – onde se diz que as fake news desempenharam um relevante papel de desinformação. Em 2013, o Fórum Econômico Mundial divulgou um relatório em que preconizava o risco global associado à tecnologia da informação, incluindo no mesmo patamar o terrorismo, ciberataques e falhas na governança global.

Na visão do apocalipse da pós-verdade, os órgãos de comunicação emergem da crise como sentinelas da ‘verdade’ referendada como tal. Será um peso excessivo? O papel do jornalismo na democracia não deveria ser alterado diante das fake news, de acordo com Fernando Resende. É algo que precisa ser reiterado e reforçado sempre. “A existência das fake news, ao que me parece, só ganhou, tecnologicamente falando, um novo ambiente. Os boatos sempre existiram e o jornalismo sempre teve como missão ir contra os boatos e a favor dos fatos apurados”, diz ele.

Ariane Holzbach muda a perspectiva. “Acho que a pergunta deve ser invertida: qual o papel da democracia no jornalismo? Nesse sentido, a democracia evoca necessariamente a sempre almejada liberdade de expressão, ainda que essa expressão possa ter consequências complexas, nem sempre autoevidentes e até negativas para a política hegemônica, por exemplo. De qualquer forma, a democracia tem como premissa o diálogo e a representatividade. O jornalismo e as outras instâncias sociais hegemônicas precisam, então, dialogar e representar. Se não fizerem isso, outras instâncias farão”. 

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