Além dessa condição privilegiada, a exposição conjuga a experiência de um curador como Paulo Herkenhoff – cujo currículo vai do MoMA (Nova York) à Fundação Bienal (SP), passando pelo Museu de Arte do Rio (MAR/RJ) e pela Funarte – com o frescor de dois curadores mais jovens como Thais Rivitti e Leno Veras. Graças ao trabalho competente dos curadores, ao lado do arquiteto Álvaro Razuk, temos uma expografia que impressiona pela qualidade. Ao mesmo tempo, é amiga dos deleites e dos respiros necessários ao exercício da fruição e do pensamento crítico pelo público, que certamente tem muito a ganhar.
O grande mérito dos envolvidos foi saber promover encontros inesperados entre obras, técnicas/linguagens e tempos históricos díspares, porém potentes em seu alinhamento – sem aquelas soluções esvaziadas nas quais se arvoram muitas curadorias de mostras contemporâneas, como é caso das bienais, por exemplo. Na montagem de Modos de ver o Brasil, nada soa gratuito. Além disso, a própria arquitetura espiralada e porosa da Oca, projetada por Oscar Niemeyer, facilita a lógica de correlacionamento entre os trabalhos expostos, como propõe a curadoria.
No último pavimento da mostra, no segundo andar do prédio, temos combinações improváveis entre obras colocando-nos diante da ideia de “formação social do Brasil” de uma maneira intrigante, como a arte deve ser. Nesse ambiente, uma pintura de Frans Post do século XVII – típico exemplar documental do período colonial holandês – convive com a produção popular recente, vinda de “dentro”, das mãos de artistas como Heitor dos Prazeres, Mestre Valentim e Djanira. Exemplares do barroco, incluindo Nossa Senhora das Dores, de Aleijadinho, confeccionada em madeira policromada no ano de 1791, dividem área não só com os demais citados, mas ainda com obras que revisitam a herança barroca – o caso dos trabalhos dos contemporâneos Miguel Rio Branco e Adriana Varejão. Em meio a isso, há exemplares que reclamam o lugar do negro nessa história. Prova disso são as peças de Mestre Didi, como Iyä Agbá – Mãe Ancestral (1998), uma “nervura de palmeira, couro, contas e búzio”, e uma escultura em ferro de Emanoel Araújo. Estão ainda nesse escopo as impressionantes séries fotográficas de Mario Cravo Neto: O Deus da Cabeça (1995-2001) e Eternal now, com as imagens Voodoo figure (1998) e Lua with egg, homage to Brancusi (1992).
O último piso da mostra funciona, de fato, como o aprofundamento ou, quiçá, a síntese de um projeto expositivo que se propõe a “ver o Brasil” por múltiplas perspectivas. Nesse espaço, evidencia-se o aspecto germinal de nossas questões e existe uma intenção de revisão crítica de nossa história que não passa despercebida. É, portanto, o ambiente mais didático e bem-resolvido da exposição, e por isso vale a pena começar a visita por lá, pegando logo o elevador no térreo do prédio.
Além dos encontros citados acima, o visitante irá se deparar com diálogos, por exemplo, entre cartografias antigas (Nova orbis tabvla – Mapa mundi, de A. F. de Wit, 1675) e novas interpretações de nosso território, como é o caso do “pedaço de terra” esboçado por Jaime Lauriano em “pemba branca e lápis dermatográfico sobre algodão preto”. Feito em 2016, o trabalho intitula-se Novus brasilia typus: invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural epertence às aquisições recentes do Acervo de Obras de Arte do Itaú Unibanco, estimuladas pelos curadores para cobrir as lacunas desta coleção. Neste caso, o paulista Jaime Lauriano, jovem artista negro, entra como parte do reforço da instituição ao núcleo afro-brasileiro do acervo, ao lado de nomes como Alcides Pereira dos Santos, Aline Motta, Almandrade, Arjan Martins, Rosana Paulino e outros, que reafirmam o seu lugar de fala sob poéticas veementes. Uma das belas aquisições nesse sentido foi a série Cabeças bori, do baiano Ayrson Heráclito, que nos contempla com um conjunto de fotoperformances em referência ao ritual de oferenda do candomblé, a partir de alimentos oferecidos ao orixá ou santo “de cabeça”. Nessas imagens, o artista pôs em volta de cabeças de negros deitados, elementos como a pipoca, o feijão, o milho, a mandioca, o inhame, o amendoim, o acarajé, em um resultado plástico telúrico, também alusivo ao ciclo vida-morte-vida.
O saldo desses encontros promovidos pela exposição é uma amostra bem-conjugada de obras representativas para o país – particularmente daquelas que ecoaram desde São Paulo e adjacências, o que faz jus ao próprio trabalho do Itaú Cultural ao longo desses 30 anos. De forma geral, a mostra dá margem a inúmeras reflexões em torno da ideia de Brasil, em um passeio labiríntico que, como todo ele, traz a reboque impossibilidades.
De alguma maneira, corremos o risco de não conseguir sair de determinadas lógicas explicativas que rondam as interpretações da cultura brasileira, mesmo de sua história da arte. Com todo o mérito da mostra, é preciso que se diga, por exemplo, que os “modos de ver o Brasil” proposto pelo projeto desde o título se apresenta como um modus de ver o Brasil a partir de São Paulo, o que não é nenhuma novidade, desde que a cidade assumiu o posto de centro catalisador e definidor não só da economia nacional, mas das práticas discursivas acerca do “país”. Não por acaso, o térreo, o piso da Oca que dá as boas-vindas aos visitantes, propõe “um encontro com São Paulo: sua história, sua arquitetura, seus habitantes e os artistas que criam a partir desse lugar”, tal qual escreve a curadora Thais Rivitti, em seu texto de apresentação.
A ÓTICA PAULISTANA
Ora, por que a entrada principal de uma mostra chamada Modos de ver o Brasil abre-sejustamente para um discurso sobre uma cidade? Durante a coletiva do Itaú Cultural a jornalistas de diferentes estados, ocorrida na Oca, Paulo Herkenhoff reforçou que “a exposição reflete o acervo, as escolhas da instituição em momentos diversos” e que a curadoria procurou evidenciar as lacunas da coleção ao olhar para a “arte brasileira”. Essas ausências buscaram ser compensadas por meio de um discurso crítico, da aquisição de novas obras, como as do núcleo afrodescendente, e de empréstimos (pagos) de outros trabalhos, o caso da sequência de documentários do Vídeo nas Aldeias, instituição cujo propósito é tornar os indígenas brasileiros donos do seu próprio discurso, a partir da produção audiovisual. Para Herkenhoff, aliás, o legado da organização voltada aos povos originários é um monumento para o país, assim como a produção dos artistas negros atualmente.
No entanto, o curador também comentou que, na exposição da Oca, “São Paulo extravasa por todos os lados”, o que parece ser a bem da verdade – e isso não é reflexo somente da formação do acervo, mas de uma escolha curatorial. É de se surpreender, afinal, estamos diante do trabalho de alguém com o histórico de Paulo Herkenhoff, defensor da descentralização cultural brasileira e do pioneirismo do modernismo/modernidade pernambucana, por exemplo. Talvez isso tenha se dado por uma demanda institucional, mas, ao que parece, estamos diante de contradições. A concepção da mostra é contemporânea e não há uma linearidade cronológica ou narrativa – como acontece com a expografia da mostra da Coleção Brasiliana (parte do mesmo acervo), em cartaz atualmente na sede do Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Na Oca, vemos uma diversidade expositiva, sem dúvida, mas há um certo conservadorismo no ar, ou uma necessidade de se reafirmar algo.
Algumas evidências da mostra reiteram São Paulo como força centrífuga de legitimação e difusão da arte no país. Entre os núcleos temáticos do térreo, por exemplo, estão Modernismo e Outros modernismos – entendendo-se “outros”, segundo explicou um dos curadores, como as manifestações modernistas vindas de estados outrem que não São Paulo. Logo na entrada da Oca – e os organizadores ressaltam o seu caráter especial para o projeto –, foi colocada uma escultura de Ascânio MMM retirada da Praça da Sé há 28 anos, na época em que Olavo Setúbal, patrono do Itaú Cultural, era prefeito da cidade. Ao longo da exposição (principalmente no térreo e primeiro andar), há ainda inúmeros exemplares do modernismo paulistano, bem como do movimento concreto e neoconcreto, estes que são alguns dos maiores reforços simbólicos da hegemonia cultural e estética do eixo Rio-SP em relação ao restante do Brasil. Ao que tudo indica, não poderia ser diferente, afinal, parafraseando o próprio Herkenhoff, “a sede do capital determina a circulação dos bens culturais”, ou seja, aquilo que “existe” ou “deixa” de existir em dado território – questão também evidente nas demais partes, ou centralidades do globo.
A compensação dessas questões históricas e impositivas está no próprio projeto curatorial, paradoxal por natureza. Além do discurso crítico na disposição das obras e nos textos de apresentação, a seleção dos artistas e das obras contempla, de alguma maneira, a diversidade cultural brasileira, em linguagens e discursos díspares. De Pernambuco, aliás, estão artistas como Montez Magno, Paulo Bruscky, José Patrício, Marcelo Silveira, Gilvan Samico, Cícero Dias e Aloisio Magalhães. Do Ceará, Leonilson. Do Pará, Berna Reale. De Minas, Cao Guimarães, Paulo Nazareth. Da Bahia, afora os citados (como Emanoel Araújo e Ayrson Heráclito), Virgínia de Medeiros. Mas a questão não são as “representações regionais” e, sim, a multiplicidade discursiva que a pluralidade regional e suas linguagens podem proporcionar. Há nordestinos-paulistas, cariocas-mineiros, gaúchos e uma suíça-yanomami habitante de São Paulo, a fotógrafa Claudia Andujar, cuja poética vai sempre além. Ao adentrarmos a Oca, esse espaço referência de nosso “indigenismo”, devemos, pois, não esquecer de ultrapassar a ótica que, há mais de 500 anos, vem balizando nossa forma de ver o Brasil, que não começou em São Paulo e não deve terminar lá.
* A jornalista viajou a convite do Itaú Cultural