Kopenawa também estava na plateia, para conhecer a criação. Na lembrança de Andujar, que desde os anos 1970 é uma das mais prolíficas artistas/ativistas/indigenistas do Brasil, o líder ianomâmi ficou impressionado com a conjunção de movimentos articulados a partir das suas palavras. Em conversa com a Continente para o especial sobre os indígenas publicado na edição de abril, ela percebia Para que o céu não caia como uma iniciativa fundamental para conscientizar os jovens sobre os direitos dos povos originários, pois “são os jovens que têm que levar em frente a política e entender o sentido da vida”.
De certa forma, a coreógrafa Lia Rodrigues também partilha dessa crença. Há 13 anos, ela cria, ensaia e convive no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Em 2009, aliou-se à Redes da Maré, outra instituição da sociedade civil encravada no maior conglomerado de favelas da capital carioca, para criar o Centro de Artes da Maré/CAM. É no centro que funcionam a Lia Rodrigues Companhia de Danças, a Escola Livre de Dança da Maré, o MaréCine e o Ponto de Cultura Rede de Arte da Maré. Entre 2008 e 2009, organizou o projeto << dança para todos >>, que oferecia aulas gratuitas de dança contemporânea e consciência corporal para jovens e crianças. Ou seja, não é exagero afirmar que Lia trabalha para dar à juventude da Maré o vislumbre de um futuro para além de tiroteios e preconceito.
“A favela não é, absolutamente, apenas o lugar de violência e da pobreza. É um espaço rico em diversidade de manifestações culturais e artísticas, com um comércio efervescente, e lugar de moradia e de vida de milhões de brasileiros”, opina a coreógrafa. Nascida em São Paulo, formou-se em balé clássico e chegou a cursar História na USP, porém os ventos afetivos e artísticos a empurraram para a França, onde integrou a Compagnie Maguy Marin. Foi no Rio, contudo, que fundou a companhia, em 1990.
A carreira de Lia, 61 anos de idade e mais de 40 de atuação profissional, é repleta de prêmios e comendas – em 2007, recebeu do governo francês a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres; em 2014, o Prêmio Prince Claus, do governo holandês; e, já neste 2017, recebeu o prêmio Bravo Bradesco por Para que o céu não caia. Sua trajetória também se caracteriza por diversos espetáculos que muito lhe orgulham, a exemplo de Pindorama (2013), Piracema (2011) e Pororoca (2009) e Aquilo de que somos feitos (2000). Foi sobre arte, dança, política e a cultura como resistência no Brasil de 2017 que ela falou, por e-mail, à Continente.
CONTINENTE Para que o céu não caia nasce das palavras de Davi Kopenawa em A queda do céu. Ele diz que a floresta está viva, mas vai morrer, se os brancos insistirem em destruí-la e, se morrerem também os xamãs, o céu desaba. Há muita sabedoria no pensamento dele, mas também há força e um alerta. Como surgiu a ideia de transpor o livro para o palco?
LIA RODRIGUES Na verdade, Para que o céu não caia não é uma transposição do livro para o palco. Leio, desde muito tempo, artigos e entrevistas de Eduardo Viveiros de Castro. Mais recentemente, li Metafísicas canibais e o livro que ele escreveu junto com Deborah Danovisky, Há mundos por vir. E também li antes de ser lançado aqui no Brasil o livro A queda do céu, de Davi Kopenawa. Esses livros e escritos foram o ponto de partida para desenvolvermos essa peça, uma criação coletiva com os 10 artistas bailarinos, com a assistência de direção e de coreografia de Amália Lima e dramaturgia de Silvia Soter. Vivemos momentos assustadores, tristes e inquietantes. Fazer uma nova criação requer uma inclinação à esperança, em especial na Maré – esse lugar onde os direitos civis dos moradores são desrespeitados, local onde, segundo a Anistia Internacional, “a relação da polícia com os moradores é marcada por abusos e violências, consequência de uma abordagem voltada para a guerra ao tráfico que criminaliza o conjunto da comunidade, em especial os jovens negros”.
CONTINENTE Como a criação artística veio a partir de um relato que nos impele a olhar para o céu sob o risco de tomarmos parte na sua queda também?
LIA RODRIGUES Participar da campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, com uma ação nas ruas da Maré com os estudantes da Escola Livre de Dança da Maré e estudantes de dança convidados, foi um dos momentos que marcaram o início dessa criação, que nasceu do sentimento de perplexidade diante dos acontecimentos no Brasil, no mundo, no planeta. Como uma reação a esse momento que parece sem respostas. Então nos lançamos aos ensaios, encontros e conversas com uma pequena centelha, imaginado como criar uma brecha, uma pequena trégua combatente. Assim como os estudantes secundaristas que ocuparam as escolas em São Paulo e que agora ocupam as escolas no Rio de Janeiro, como o movimento LGBT, como o movimento a favor do aborto, contra a cultura do estupro, o primeiro assédio, entre tantos outros. Foram nove meses de trabalho no Centro de Artes da Maré e nos perguntamos: diante de tantas catástrofes e barbáries, que todos os dias nos assombram e emudecem, neste contexto de drásticas mudanças climáticas que escurecem o futuro, o que nos resta a fazer? Como imaginar formas de continuar e agir? O que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?
CONTINENTE Os dançarinos da sua companhia que interpretam Para que o céu não caia sobem ao palco tingidos, como indígenas preparados para um ritual, e se alternam em movimentos fortes, quase como uma coreografia de pajelança. De que modo os rituais indígenas se imiscuíram no seu processo criativo? Para preparar um espetáculo como esse, você se alimenta de montagens anteriores suas ou vai em busca de um repertório específico de referências para construir a narrativa em movimentos?
LIA RODRIGUES Meus trabalhos são construídos em colaboração muito estreita com os artistas bailarinos da companhia e com a minha assistente e parceira de tantos anos, Amália Lima. É sempre muito rico o processo até chegarmos na forma final. Eu os provoco e eles me provocam com leituras, conversas, improvisações. A cada vez que começamos um processo de criação, lançamo-nos perguntas e problemas. E as nossas experiências vão se organizando em torno disso. Cada trabalho forma um universo próprio que alimenta a criação. Eu me sinto pescando num mar cheio de ideias. E somos nós que povoamos esse mar de ideias-peixes: peixes-livros, peixes-textos, peixes-imagens, peixes-conversas, peixes-sonhos. Depois, é jogar a vara e pescar. O processo de criação é bastante caótico. Ou, melhor dizendo, ele é extremamente organizado dentro de uma lógica própria e única a cada vez. Cada processo nos leva a um universo a ser descoberto. Usamos todos os recursos necessários para colocarmos uma ideia em cena, sem nos preocuparmos se eles são do universo do teatro, da literatura, da filosofia, da política, da música ou da dança.
Cada criação pede uma maneira específica de trabalhar. É sempre novo: partir de novas inquietações, experimentar maneiras de se mover e pensar. É um trabalho árduo, um longo processo. E é preciso tempo para entender o corpo do outro, entender a língua que estamos falando e construir uma língua em comum, sem que se aplainem as ricas diferenças de cada um dos artistas envolvidos. Os artistas que dançam na companhia precisam ter muito desejo, inquietação e empenho para se lançarem ao desconhecido. Além de estarem abertos para uma convivência em grupo, que é sempre intensa, com suas delícias e dificuldades. Algumas vezes também trabalhamos com uma encomenda e acho um desafio interessante, uma restrição que me intriga.
CONTINENTE Claudia Andujar, uma das entrevistas da Continentepara o especial sobre os indígenas no Brasil de 2017 que publicamos em abril, nos contou que se sentiu bastante emocionada ao ver o espetáculo na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. “Foi uma performance de muita força. Todo mundo saiu de lá emocionado”, disse a fotógrafa. Como você percebe o espetáculo no atual contexto sócio-político-cultural do Brasil? E, já que a sede da sua companhia fica no Complexo da Maré, como sua criação reflete tudo isso?
LIA RODRIGUES Acho que tudo o que fazemos está inserido num contexto social e político. O fato de a companhia trabalhar diariamente na Maré, de estar mais próxima dos projetos desenvolvidos pela Redes da Maré desde 2004, altera e contamina o que criamos. Sem dúvida, o lugar onde estamos está inscrito no nosso corpo e na maneira de nos movermos. São experiências estéticas impregnadas do encontro da companhia com a Maré. Um encontro pleno em suas diferentes intensidades, seus fracassos e vitórias, de buscas alternativas para sair de alguns impasses. Acho que essa ideia de encontro das diferenças, de mistura e de invasão vem mesmo permeando meu trabalho nos últimos anos. É claro que essa escolha de estar na Maré muda o meu trabalho. Tem uma expressão de que eu gosto: “a gente tem que outrar”. A gente tem que virar o outro. Não virar o outro totalmente, mas olhar para a diferença e achar uma coisa que às vezes não combina, mas não faz mal, a gente está junto mesmo sem combinar. Meu encontro com a Maré é também assim. A favela não é absolutamente apenas o lugar de violência e da pobreza. É um espaço rico em diversidade de manifestações culturais e artísticas, com um comércio efervescente, e lugar de moradia e de vida de milhões de brasileiros. A questão é a ausência da atuação do Estado. Quando eu decidi instalar a minha companhia de dança em uma favela, estava ciente de que estaríamos diante de situações muito específicas, resultantes das desigualdades econômicas e sociais. Mas, para mim, o ato artístico não pode ser limitado à criação de uma obra de arte. Precisamos ocupar um espaço e criar um território. A decisão de desenvolver o meu trabalho na Maré significa tomar uma posição política e ir contra a tendência de exclusão dessa grande parte da população do Rio de Janeiro. Nos tempos que correm, nos quais mais e mais muros e barreiras são construídos e onde territórios são ferozmente defendidos e demarcados, propomos fazer o movimento inverso e descobrir novas oportunidades de partilha, diálogo e criação.
CONTINENTE Como a arte e a cultura podem atuar na resistência em um país cuja democracia está em escombros após um golpe?
LIA RODRIGUES Trabalhar com cultura no Brasil é um árduo trabalho! Nós, artistas, compartilhamos a imprevisibilidade dos recursos para a manutenção de nossas atividades, e cada um de nós procura estratégias diferentes para continuar criando. Posso afirmar que fazer arte no Brasil é um processo contínuo de afirmação, investimento e resistência. Tenho 61 anos e trabalho como artista desde os meus 18 anos. Os próximos passos no meu trabalho de criação estão conectados com esses tempos sombrios que estamos vivendo aqui no Brasil e no mundo. Como projetar o futuro então? E, se alguma esperança há, onde ela reside? Só sei que há de ser uma esperança combatente. O título da minha última criação é Para que o céu não caia. Mas o céu já está caindo e vai acabar caindo sobre nossas cabeças. É uma certeza. A questão é o que fazemos para segurá-lo, cada um à sua maneira. E, aqui no Brasil, muito trabalho nos espera para diminuir essa imensa desigualdade. E também acredito (ou procuro ainda acreditar) que a criação artística, nesse mundo a cair, pode ser ainda um campo de batalha, uma arma a ser empunhada e brandida.