A peça é inspirada na vida e na obra do ator, desenhista e dramaturgo argentino Raul Taborda, o Copi, falecido em 1987 em decorrência de complicações do HIV/Aids. O jogo proposto entre passado e presente na narrativa que une Copi ao elenco do Kunyn, 30 anos depois da morte dele, coloca em cena um olhar sobre a abordagem da epidemia da síndrome de imunodeficiência – realidade na vida de 36,7 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da ONU.
O Kunyn é um grupo cuja pesquisa cênica se debruça nas tensões da homoafetividade e da homossexualidade. Nessa trajetória, surgida em 2010, estão três peças: Dizer e não pedir segredo, Orgia – Ou de como os corpos podem substituir as ideias e Desmesura. Todas elas estruturadas, cada uma à sua maneira, em confissões dos atores para seu público. Da primeira até a mais recente, as obras foram erguendo um discurso sobre descoberta, aceitação e ratificação da sexualidade, tomando como norte vieses e falas de diferentes tons.
Na nova montagem, o mergulho na obra de Copi aponta para um amadurecimento das reflexões do Kunyn sobre ser e estar no mundo, preocupado com a atualidade da fala, sobretudo no que diz respeito à transgeneridade, visibilidade e, mais precisamente, soropositividade. Neste caso, com um olhar pautado pelo sarcasmo, acidez e jocosidade intrínsecos à obra de Copi.
Para o ator e dramaturgo Ronaldo Serruya, que, além de protagonizar a montagem, assina o texto, ao colocar Copi no centro da discussão, levanta-se um questionamento sobre a exclusão do argentino da história do teatro mundial como resultado de preconceito.
“A primeira coisa que me vem à cabeça, ao ‘descobrir’ Copi neste momento, é pensar por que um autor como ele, que foi contemporâneo de vários autores importantes que chegaram, penetraram e se mantiveram no teatro, estudados e montados, não teve esse mesmo espaço nas escolas de formação em teatro”, comenta Serruya. “Existe uma escolha de barrar alguns discursos e de tomar outros como norma. Copi tem uma obra profundamente transgressora para o tempo em que ele escreveu e para o tempo em que a gente vive.”
HUMOR E SARCASMO
Na opinião da professora e pesquisadora Renata Pimentel, referência no estudo da obra do dramaturgo argentino no Brasil, ele toca com “uma potência metafórica imensa em questões de gênero e representatividade, discutindo, para além das filigranas dos discursos e nomeações, as pautas de reivindicações de setores minoritários em suas especificidades”. “Ele até ironizava com humor os movimentos de reivindicações gays e lésbicos daquela época. No entanto, faz de sua arte um espaço privilegiado para a discussão crítica e representação bem-humorada de toda a ‘taxonomia’ das dissidências sexuais avant-garde, desnudando os falsos moralismos.”
Renata é autora do livro Copi: transgressão e escrita transformista, tradutora das peças do argentino para o português e assessora teórica da maioria das montagens brasileiras, como é o caso de Desmesura, da qual é a dramaturgista. “Copi falou sobre questões quando elas nem haviam sido nomeadas e ainda eram embriões ou nem visíveis”, destaca a escritora. “A Aids, por exemplo, é uma das temáticas-eixo da vida de Copi (dizia ele, que foi tão vanguardista, que a Aids o contaminou antes de qualquer outro), e, portanto, se converte ele próprio (autor e obras) em uma ‘plataforma’ para discutir o tema, pois que tematizou ele mesmo esse assunto.”
Em Desmesura, Copi conversa com seus personagens e se questiona sobre a própria vida, as escolhas e os acasos. “Tentamos, com esta dramaturgia, levar à discussão este problema que continua incômodo, assunto-tabu e em índices novamente crescentes de casos de contaminação. Também, para escancarar as hipocrisias que cercam o modo como o tema ainda é tratado”, explica Renata Pimentel.
Em 2017, décadas depois da grande epidemia do vírus HIV, numa sociedade em que o tratamento antirretroviral mudou a realidade de vida de milhares de pessoas, os textos de Copi surgem para preencher parte
de uma lacuna nas abordagens sobre soropositividade, no teatro brasileiro. Longe de visões melancólicas e trágicas, que permearem os debates artísticos até o final do século XX, o argentino possibilita, com seu humor e sarcasmo, um novo olhar em sintonia com o movimento do tempo e o avanço da ciência.
“A nossa ideia, nesse espetáculo, é de fazer com que as pessoas estejam conectadas ao tempo em que elas vivem. É muito assustador perceber como as referências das pessoas ainda são basicamente historicistas, estagnadas em determinado momento do passado”, afirma Ronaldo Serruya, que, em 2015 e 2016, realizou a oficina O Corpo Interdito, sobre movimentos de interdição do corpo no século passado – incluindo a Aids. “Quando chegávamos à discussão da Aids, as referências estavam plantadas na década de 1980, como se nada tivesse sido construído de lá pra cá. As pessoas que têm HIV não estão morrendo mais; elas estão vivas. Então, se vamos falar sobre esse tema, precisamos criar narrativas de vida e de tudo que significa estar vivo no mundo hoje: se relacionar, trabalhar e estar na vida.”
Ainda segundo o dramaturgo, a obra de Copi possibilitou ao coletivo um entendimento maior sobre muitas das questões que estão sendo colocadas em pauta na contemporaneidade, como a ideia de protagonismo e lugar de fala. “A gente sai desse processo, por tudo que aconteceu nele e discutiu nele, muito mais conscientes dessas questões do que como a gente era há dois anos.”
O caráter confessional dos espetáculos do Teatro Kunyn reforça essa percepção de Serruya. “Esse texto traz questões que atravessavam a vida desse artista (Copi), mas que também atravessam a vida dos artistas que estão hoje encenando essa obra – no sentido de que esses assuntos (sobretudo o HIV/Aids) atravessam a vida de pessoas do nosso tempo, que estão se relacionando, transando, conhecendo outras pessoas. Até porque é engraçado perceber como, de alguma maneira, sublimamos assuntos e fazemos com que eles, de certa forma, não existam, quando eles estão ali, à nossa frente.”
AFIRMATIVOS
A busca por uma narrativa sintonizada com a realidade atual é um dos nortes apontados pelo diretor e ator Fabiano Freitas, do Teatro de Extremos, do Rio de Janeiro, e um dos idealizadores da Ocupação Copi, em 2015, no Sesc Copacabana.
Para Freitas – que na ocasião encenou O homossexual ou a dificuldade de se expressar, até então inédita no Brasil –, a desatualização da abordagem da Aids no teatro escancara uma crise artística de narrativas. “A gente carece de narrativas que sejam mais contemporâneas e que digam mais ao nosso tempo e sobre o nosso tempo. Muitas das narrativas, no cinema, no teatro ou na televisão, quando tocam na questão, ainda é a partir de uma abordagem dos anos 1980 e 1990: a morte eminente e visão fatalista. Elas revelam muito pouco do que vivemos hoje”, analisa.
Lançada em 2015, em São Paulo, a peça Anatomia do fauno, do Laboratório de Práticas Performativas da USP e do Teatro da Pomba Gira Coletivo de Criadores, é um dos exemplos contemporâneos de montagens que levaram ao palco a vivência com o HIV no contexto LGBT.
Na montagem, mais de 20 homens construíram cenas com base em performances e improvisações coletivas, norteados pela memória afetiva de cada artista. Entre o material levantado com os perfomers, o coletivo percebeu que o sexo quase sempre esteve associado a questões como a rejeição, a culpa, o medo e a repressão, segundo o dramaturgista Alexandre Rabelo, responsável por “costurar” os fragmentos do trabalho.
Entre as criações, a soropositividade, inevitavelmente, surgiu na abordagem como um tabu a ser desconstruído. “No início, evitava-se falar disso até nas mesas de bar após os ensaios, mesmo sendo tácito que entre as dezenas de pessoas que passaram pelo processo havia alguns soropositivos”, conta Rabelo. “Ainda assim, um dos performers foi corajoso e trouxe a temática numa improvisação. Nossa abordagem foi a do medo do contágio, apenas. Esse era nosso lugar de fala.”
No espetáculo, o Fauno contrai o vírus e, após sofrer com isso, recupera suas forças e celebra a vida. “Era isto o que queríamos: mostrar que sabíamos qual era o lado denso, mas dar uma virada sem chororô”, explica. “Precisamos tirar o estigma ligado à soropositividade. Precisamos entender que ela não é atributo de gays, mas um problema da humanidade. A arte pode mostrar que o contágio não é uma sentença de morte, e que pode, inclusive, como acontece com muitos amigos, servir para que se celebre ainda mais a vida. A soropositividade pode, sim, ajudar a formar um olhar mais voltado para a essência.”