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Explorando diferentes texturas sonoras

Músico carioca, que é filho do cantor e compositor Lenine, tem se destacado atuando como produtor ou na engenharia de som, masterização e mixagem de discos

TEXTO Camila Estephania

01 de Junho de 2017

O músico Bruno Girogi

O músico Bruno Girogi

Foto Flora Pimentel/divulgação

[conteúdo da ed. 198 | junho 2017]

Entre um show e outro, o músico e produtor carioca Bruno Giorgi atende o telefone para a entrevista enquanto se acomoda no quarto de hotel. Há cinco anos, desde que passou a integrar a banda do pai, o cantor e compositor pernambucano Lenine, o guitarrista tem sua agenda lotada de viagens e apresentações que inviabilizaram a sua participação ao vivo em shows de outros grupos dos quais já fez parte, como Cícero, Posada e o Clã e a banda pernambucana Rua, mas ainda assim não abre mão de trafegar entre os distintos universos musicais através da produção. Com cerca de 30 trabalhos como produtor ou na engenharia de som, masterização e mixagem, Bruno se multiplica para abraçar todos os projetos e coleciona elogios pela sua contribuição na criação dos discos como É, de Duda Brack, Carbono, de Lenine, e Levaguiã Terê, de Vitor Araújo.

Atualmente com 28 anos, o rapaz já tem na conta uma indicação ao Grammy Latino de 2013, pela engenharia de som de Chão, de Lenine. O talento precoce para o estúdio começou a ser desenvolvido antes mesmo que o carioca tivesse consciência do seu interesse pela música. Quando criança, Bruno ficava sob os cuidados de Lenine quando estava fora da escola e constantemente era levado para as gravações dos discos, enquanto a mãe, Anna Barroso, ocupava-se como produtora da Rede Globo. “Quando entrei na faculdade de música, foi engraçado perceber comotodo mundo tocava um instrumento desde muito cedo e eu comecei tarde. Mas muito cedo eu já estava em estúdio, acompanhando o trabalho de gente como Marcos Suzano, Chico Neves e Tom Capone”, relembra ele parceiros de produção do pai. 

Antes mesmo de Chão, de 2012, cuja produção foi assinada com Lenine e JR Tostoi, Bruno já havia produzido o primeiro álbum da Posada e o Clã e o Do absurdo, da banda Rua, lançado em 2011. “O Chão foi fruto desses dois discos, porque vem da mesma linha de pesquisa, foram dois artistas sobre os quais eu e meu pai discutimos bastante. Disso surgiu o processual do Chão, com a ideia de fugir do óbvio e usar sons do ambiente”, explica Bruno. Em entrevista à Continente, Lenine definiu como total a influência do filho. “Toda a arquitetura sonora que ele criou no disco – a tridimensionalidade do 5.1, o relevo – foi uma tremenda descoberta para mim, mudou a minha maneira de conceber um espetáculo”, comentou o cantor, que passou a ter Bruno como integrante da banda a partir da turnê do álbum.

Não só Lenine, como também outros músicos, a exemplo de Pupillo e Vitor Araújo, interessaram-se pelo trabalho de Bruno através da banda Rua. “No processo de feitura do disco Do absurdo, nós pudemos compreender outras nuances para a música que estávamos propondo. Desde então, Bruno é da banda, sempre pontuando que sua presença nisso fica sem rosto, mas que inventa as sensações conosco, enquanto música. Além de ser muito inventivo em estúdio, ele está sempre fuçando equipamentos, instrumentos, timbres e isso nos dá confiança de encontrar o som que procuramos, ou simplesmente de sermos descobertos por eles num processo de experimentação a que nos permitimos”, observa Caio Lima, vocalista do grupo, que também contou com a coprodução de Bruno em Limbo (2014). 

MODUS OPERANDI
Na pré-adolescência, a premissa libertadora do movimento punk encorajou Bruno a aprender a tocar algum instrumento e finalmente enfrentar os palcos, como se a transgressão sonora fosse a condição que lhe faltava para, enfim, se interessar pelo mundo fonográfico. “Eu gostava de punk e meu pai me apresentava outros discos, como o Cabeça dinossauro. Depois caí para o grunge, pela contemporaneidade mesmo, estava mais próximo de mim”, conta como começou a engordar o cardápio musical, que hoje tem como referências os nomes de Radiohead, Bjork, Sigur Ros, Caetano Veloso e Milton Nascimento.

A “guitarra de metaleiro” que Lenine já havia escanteado há anos passou a ser a principal vítima dos atentados musicais de Bruno, aos 12 anos de idade, quando iniciou o aprendizado no instrumento. Mas foi somente no lixo do estúdio Nas Nuvens, do produtor Liminha, que finalmente encontrou sua alma gêmea. Certa vez, a caminho de casa, o menino passou pelo local e encontrou uma guitarra Telecaster Giannini de 1972, detonada, e resolveu carregá-la consigo. “Levei para o estúdio do meu pai, e ele e o Tom (Capone) acharam massa. Mais tarde, meu pai me deu um braço novo e, pouco depois, chegou pelo correio um captador com uma cartinha do Tom. Respondi que não podia aceitar, mas ele disse que eu faria a base de dois discos que ele estava produzindo e ficaria pago com isso, porém ele morreu antes (em 2004)”, relembra, sobre a reconstrução do instrumento que usa até hoje por conta de sua sonoridade particular.

A curiosidade sobre a mecânica musical logo revelou a busca por explorar diferentes texturas sonoras e novas camadas de audição. “Em determinado momento, percebi que estava compondo só para produzir. Quando comecei a gravar minhas próprias bandas, fui percebendo o prazer que tinha nisso. O prazer de trabalhar com mais de um laço estético e poder me estender para qualquer âmbito musical. Mas o gosto de fazer um trio de rock ou uma orquestra é o mesmo”, garante ele, que já teve a oportunidade de trabalhar com os dois formatos. A experiência ainda se estende para o samba, com a Casuarina, a música de terreiro, com banda pernambucana Bongar, e o afrobeat, com a Abayomi Orchestra, por exemplo. 

Nesse último caso, Bruno fez a engenharia de som do disco Abra sua cabeça, que teve a produção de Pupillo, baterista da Nação Zumbi. O bom resultado garantiu a confiança que fez o pernambucano convidar o carioca para a mixagem de Ottomatopeia, próximo álbum de Otto, atualmente em fase de finalização. “Trabalhar com Bruno me deu tranquilidade para desenvolver toda a estética sonora, sabendo que teria alguém do lado para viabilizar as ideias. Ele tem um background musical que interage com o meu de forma harmoniosa e rápida. Tê-lo pilotando o som é como voar em céu de brigadeiro”, elogiou o baterista.

A facilidade para dialogar com tantos gêneros, Bruno atribui ao conhecimento adquirido na Unirio, onde cursou a faculdade de Música. “Meu interesse pelo conhecimento mais formal foi em função de amigos, que já haviam estudado e tinham uma facilidade maior para resolver harmonia e outras questões que apareciam no nosso dia a dia de ensaio”, explica ele, que elege como seus trabalhos mais difíceis a produção do disco Levaguiã Terê, do pernambucano Vitor Araújo, e a gravação ao vivo e mixagem de A saga da travessia, do baiano Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz. “Os dois tinham orquestra, por isso ter feito faculdade ajudou, porque o cara traz o que está no papel e você entende. Então você tem que ser didático o suficiente para chegar na estética que ele quer e abrangente o suficiente para abrir o leque”, explica.

Essa abertura, inclusive, é um dos maiores trunfos do seu trabalho no estúdio, onde consegue reverter imprevistos em acertos com a mesma paciência de um alquimista que busca transformar metais ordinários em ouro. “Na hora do estúdio, vale tudo. Dentro da arte contemporânea existe uma discussão de como se manter no eixo de criatividade, e se fala muito em estar aberto para o entorno e os erros como parte do processo. Temos que entender que o erro pode ser melhor do que você havia planejado”, observa ele, também sem cair no comodismo de recorrer às regras preestabelecidas. “Existe uma prática de mercado de assumir preceitos, como acreditar que o bombo sempre fica melhor com determinado microfone, por exemplo. Há uma parcela de técnicos que não acredita nisso e sempre busca alternativas melhores”, justifica ele. 

Esse tipo de capricho chamou a atenção do maestro Letieres Leite durante as suas gravações com a Orkestra Rumpilezz para a faixa À meia noite dos Tambores Silenciosos, do disco Carbono (2014), de Lenine. Gravado ao vivo com estúdio móvel no Teatro Castro Alves, Leite ficou tão impressionado com a habilidade do rapaz de extrair o melhor som que, ao fim da sessão, deu três tapinhas nas costas do carioca e disse: “Tu vais fazer o nosso disco daqui a três meses”. A gravação e mixagem de A saga da travessia (2016) não só foi aprovada pelo baiano, como também levou Bruno a trabalhar no álbum mais recente do Bongar, Ogum Iê,deste ano, em que o maestro assina a produção.

LEÃO DO NORTE
Além do fato de ter a família paterna em Pernambuco, a música tem sido o principal fator de aproximação com o estado, de onde vem um bom número de suas demandas, que ainda incluem as masterizações dos discos mais recentes da Gudicarmas e Mojav Duo, além do próximo trabalho de A Banda de Joseph Tourton. “Até os 16 anos, eu passava um ou dois meses por ano com avós e tias no Recife, tenho muitos amigos por aí. Acabou que hoje quase todo trabalho que faço tem alguma ligação com Pernambuco. Fico feliz, porque é um lugar que se sobressai musicalmente”, comemora ele, também por ter a prerrogativa de viajar para o estado. 

Isso porque o músico diz fazer questão de ter o máximo de contato pessoal com as bandas com as quais trabalha. “Sempre visito os que são de outras cidades, porque não acredito que a internet supra a necessidade de ter um contato físico”, explica ele, cuja dinâmica mais intimista de produção é uma das influências que o falecido Tom Capone lhe deixou. “Ele acreditava que a produção partia de um ambiente tranquilo. Isso, obviamente, me impregnou muito, não sei trabalhar de um forma que não seja fazendo amizade”, comenta sobre as relações de cumplicidade que constrói com as bandas. O guitarrista da Kalouv, Túlio Albuquerque, confirma: “A sintonia que tivemos ajudou bastante a já considerar esse trabalho o que nos dará mais orgulho até aqui. Criamos um forte laço de amizade e reciprocidade, baseado na troca de influências, ideias e energias, nos permitindo dizer que, nesse disco, ele funcionou como um sexto membro da banda”, resumiu ele, sobre a escolha de Bruno como produtor de Elã, próximo álbum do grupo instrumental pernambucano.

A interpessoalidade é tão determinante para o carioca, que está entre os motivos pelos quais faz questão de permanecer na banda de Lenine. “Uma vez, antes do show, meu pai perguntou à banda se rolava tocar uma música que a gente nunca tinha ensaiado. É uma confiança que eu admiro muito, por isso é um prazer grande estar no palco”, explica ele, embora reconheça que o lugar que o deixa mais à vontade é o estúdio. “Mas nunca vou parar de tocar, porque, para mim, não existe estúdio sem o palco”, esclarece, para alívio do pai. “Com competência e permanência, Bruno não só conquistou seu espaço, como hoje é peça fundamental em tudo o que eu faço”, disse Lenine. 

 

 

 

 

 

 

 

 

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