“Há hoje uma Sociedade Para-Brisa no Reino Unido que ainda imita o nosso modelo. Ela se dedica ao tema principal da caminhada em Kassel: o que nós experienciamos através de um para-brisa? Nós ainda não estamos conscientes de como o para-brisa limita a nossa percepção”, explica o professor da disciplina em questão, Lucius Burckhardt, em conversa com o curador e crítico de arte Hans Ulrich Obrist, publicada no livro Warum ist landschaft schön: die Spaziergangswissenschaft (em tradução livre para o português, Por que a paisagem é bela: a caminhadologia), publicado pela editora Martin Schmitz, em 2006.
Lucius Burckhardt, mais além de economista, sociólogo, artista, desenhista e (por que não?) performer, foi um livre-pensador suíço nascido em 1925 que problematizou os caminhos pelos quais se orientavam a política, a paisagem, o design, a arquitetura e o consumo em uma Europa ainda social-democrata, mas beirando o que hoje se observa como um continente imerso na lógica neoliberal. Através de suas aulas e de seus variados desenhos, ensaios e artigos publicados em revistas especializadas, Burckhardt desenvolveu críticas ousadas às formas de vida no capitalismo, sempre problematizando um modo de interação entre o sujeito e a cidade na qual o indivíduo até passa pela urbe, mas o contrário nem sempre acontece.
A sua provocadora crítica da arquitetura ganhou um nome irônico: spaziergangswissenschaft, no alemão; strollology, no inglês; ou caminhadologia, em livre tradução para o português. Burckhardt criou uma ciência do caminhar que, embora não se constituísse segundo os rigorosos parâmetros científicos, ousava se chamar de ciência, em uma espécie de ironia ao status que se dava, no meio acadêmico, ao que se considerava ciência. Mas Lucius sempre esteve consciente de que a caminhadologia se tratava de “um assunto menor”.
“A caminhadologia é uma crítica do planejamento que começou a surgir depois da Segunda Guerra Mundial. Ela começou, na verdade, a partir da observação de que havia uma intensa automobilização da sociedade. Cada pessoa tinha um carro e começaram a existir muitos estacionamentos para carros na cidade. Assim começou a pesquisa de Lucius. Ele vivia em Basel, na Suíça, e observava que a cidade estava sendo reconstruída sob a lógica do automóvel. A caminhadologia ganhou contornos de disciplina em 1980”, explica Martin Schmitz, professor da cátedra Annemarie & Lucius Burckhardt da Kunsthochschule Kassel, editor na editora Martin Schmitz e curador, tendo sido o curador-chefe da programação de fílmica da documenta 9, em 1987.
Martin Schmitz se graduou no curso de Arquitetura, Planejamento Urbano e Paisagem na Universidade de Kassel, foi orientado por Lucius Burckhardt durante os seus estudos e já editou cerca de 10 livros com os ensaios, artigos e desenhos publicados dispersamente por seu ex-orientador. Além disso, foi curador e amigo de Annemarie Burckhardt, esposa e parceira profissional de Lucius, cujos trabalhos merecem uma matéria à parte.
Em entrevista concedida à Continente em fevereiro, em Berlim, Martin Schmitz contou como Lucius Burckhardt foi um pensador pioneiro na crítica ao planejamento urbano e como ele estabeleceu uma relação amigável e cooperativa com os seus alunos. Burckhardt dava aulas em um sofá na Universidade de Kassel, não tinha hora marcada para orientar os alunos (normalmente, na Alemanha, os professores universitários se encontram com os seus alunos em horas definidas coladas nas portas de suas salas, as sprechstunde) e não seguia o métier acadêmico. “Era possível conversar com ele ou na sua mesa de trabalho diretamente ou através de uma visita aos Burckhardt durante as férias de verão nos arredores de Basel”, comentou Schmitz, apontando que o bom humor dos Burckhardt era inesquecível. Lucius faleceu em 2003 e Annemarie, em 2012.
DESLOCAMENTOS
Embora a caminhadologia seja relativamente conhecida na Suíça, Alemanha, Áustria e em alguns circuitos especializados nos Estados Unidos, como aponta Schmitz, ela é praticamente desconhecida no Brasil (até a data de publicação desta matéria, não se encontrou nenhum artigo, ensaio ou página da web dedicada ao assunto em português). Algo realmente inesperado para um trabalho que, embora dê conta de uma realidade completamente diferente da brasileira, pode ser bastante pertinente em um cenário consolidado no Brasil de reflexão sobre os caminhos seguidos por uma lógica arquitetônica que prioriza a maximização do lucro, em detrimento da experiência do sujeito.
Burckhardt, seguindo uma espécie de crítica romântica à forma de vida moderna, questionava não só o crescente uso de carros na Europa, mas também todas as formas de locomoção que não proporcionavam ao sujeito a experiência do deslocamento. O metrô subterrâneo, por exemplo, chegou a ser criticado pelo pensador em diversos artigos, porque o indivíduo simplesmente iria de um lugar para o outro como um paraquedista. “Atualmente, a pessoa chega à frente de várias construções interessantes do mesmo modo que um paraquedista, mas por baixo da terra, pelo metrô”, escreve Lucius, no ensaio Spaziergangswissenschaft, em 1995.
Embora o ponto de vista de Burckhardt possa soar como uma “reclamação de barriga cheia” para o brasileiro, mais especificamente para o recifense, que só tem como meios de transporte ou ônibus e o metrô abarrotados ou o carro que pouco sai do lugar, é preciso que ele seja compreendido como uma crítica mais ampla à forma de vida que vem com a modernidade. É claro que, se o Recife recebesse linhas de metrôs mais efetivas, resolveríamos o nosso problema da falta de mobilidade urbana, mas permaneceríamos inseridos na rotina casa – trabalho – casa, alienados das experiências de vida possíveis de serem vividas nos trajetos entre um lugar e outro. É comum ver que, nos vagões de metrô, as experiências individuais não vão além da audição de músicas em celulares, a leitura de livros ou a interação nas redes sociais.
Com seu exame dos meios de transporte modernos, Burckhardt defende que o resultado de um planejamento que ignora a paisagem do deslocamento seria o desprezo por um urbanismo gradual (que insinua para o caminhante que ele está indo de um lugar para outro), em favor de um urbanismo no qual os lugares precisam ter, em si, toda a experiência do caminho. Em outras palavras, a rota atualmente tem que ser subsumida, representada no ou ser representada pelo objeto arquitetônico em si. E o objeto arquitetônico precisa ser autossuficiente para que a viagem ou o trajeto seja percorrido. “Modos modernos de transporte tendem a tornar uma jornada por si só insignificante e abstrata, uma vez que eles focam apenas no destino”, defende Burckhardt, no mesmo ensaio mencionado anteriormente.
É interessante perceber que o pensador tece uma crítica à modernidade através de sua ciência do caminhar, de modo semelhante ao filósofo e sociólogo Georg Simmel, por exemplo, no ensaio A metrópole e a vida mental, de 1902. Simmel defende, segundo uma interpretação psicológica, que a vida mental nas cidades se vê fortemente afetada pela lógica do dinheiro. A atitude blasé, traduzida em um comportamento de completa indiferença dos sujeitos para com outros indivíduos e com a cidade, estaria relacionada, segundo Simmel, com o dinheiro, “o mais assustador dos niveladores, pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de ‘quanto?’”.
O dinheiro tornar-se-ia o denominador comum de todos os valores, porque extrairia irreparavelmente a essência das coisas, seu valor específico e sua incomparabilidade. Como escreve Simmel, “o indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-lo de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva”. O indivíduo flâneur tão exaltado pelo poeta Charles Baudelaire no ensaio O pintor da vida moderna, de 1863 (aquele que se sente em casa quando na rua, o “espectador apaixonado”, aquele que é “o centro do mundo” quando no mundo), morre simbolicamente 10 anos depois com o nascimento do indivíduo blasé de Simmel, completamente indiferente ao que acontece na cidade.
BAGAGEM CULTURAL
Burckhardt retoma justamente essa crítica específica à cidade moderna a partir de sua caminhadologia, que pode ser interpretada como uma crítica da arquitetura e do urbanismo, um método pedagógico, um modo de experiência estética ou uma provocação artística. Mas, como enfatiza, a caminhada da caminhadologia não é a mesma caminhada tradicional, pois é uma caricatura do modelo principal. “Ela herdou o vagar da distância do flâneur da realidade, no entanto, perdeu o seu tom nostálgico. A caminhadologia foi criada a partir de nosso senso de ironia”, explica Burckhardt ao curador Hans Ulrich Obrist.
A caminhadologia parte do pressuposto de que o indivíduo percebe a paisagem de acordo com um certo background pessoal, formado por itens simbólicos como experiências afetivas, narrativas literárias e impressões visuais já marcadas anteriormente na memória. Como método pedagógico, foi usada em atividades ao ar livre, nas quais Burckhardt saía em grupo com os seus alunos por diversos lugares da cidade de Kassel. O resultado dessas caminhadas era que cada aluno deveria dizer quais lugares pelos quais eles passaram seria mais bonito, formando um “colar de pérolas” gráfico, no qual cada estudante marcava com um ponto os lugares que os tocaram. O fato de os “colares” serem tão semelhantes confirmava, na prática, o seu argumento de que as paisagens são percebidas segundo uma certa bagagem cultural – neste caso, bastante semelhante entre os alunos.
Além da caminhada com para-brisas, Lucius Burckhardt realizou outras provocadoras críticas urbanas. Com os seus alunos, ocupou vagas reservadas para carros na Rua Neue Fahrt, em Kassel, com bancadas de aula. Para ele, um considerável espaço público é perdido com carros estacionados, além de custar bastante para os cofres alemães. “Mas por que apenas um carro? Eu poderia estacionar o meu guarda-roupa, o fogão da cozinha ou uma bancada na rua”, provoca Burckhardt, em artigo dedicado à caminhadologia.
Na noite antes da ação, eles “estacionaram” mesas e cadeiras para 30 pessoas em vagas de estacionamentos. “Ali, no dia seguinte, ficamos sentados por duas horas, discutindo transporte público. (…) Fomos obrigados pelas autoridades a hastear uma bandeira vermelha e outra branca, durante o evento. Pergunta: por que os donos dos carros estacionados também não são obrigados a fazer o mesmo?”, escreve, equiparando o carro a qualquer outro bem privado – o que é um posicionamento bastante interessante nos tempos atuais, levando em consideração inclusive o cenário brasileiro. Ou seja: por que não podemos, então, estacionar outro bem privado além do carro?
Burckhardt também realizou outra interessante intervenção urbana com os seus alunos em 1993, o ZEBRA crossing. Eles produziram um tapete com estampa de zebra e rolaram-no em qualquer lugar que quiseram, inclusive em uma estrada com seis faixas, para que a atravessassem quando quisessem, sem dependerem de que os carros parassem. A ação chamou a atenção para o direito do pedestre de andar livremente. As críticas radicais de Lucius se dirigiam até para os semáforos: para ele, a ideia de que o pedestre deveria esperar o carro parar para poder andar seria inconcebível, pois ele deveria poder andar e parar quando e como quisesse.
Embora a metrópole idealizada por Lucius Burckhardt só possa ser factível atualmente se concebermos uma catástrofe capaz de “zerar tudo” para que seja construída uma nova cidade, na qual a experiência do sujeito seja o primeiro critério de qualquer plano arquitetônico, é interessante perceber a busca de Burckhardt por ambientes mais autênticos. Para ele, a escuridão, por exemplo, seria um elemento importante nas paisagens noturnas, contra todas as orientações urbanísticas que seguiam a lógica do quanto mais iluminado, melhor. Para ele e seus alunos (é interessante perceber, nos seus escritos, como os diálogos com os seus alunos são constitutivos de suas opiniões e teorias sobre diversos temas), o uso intenso de iluminação nas ruas não só custaria muito dinheiro para os cofres públicos, como também não resolveria o problema da falta de segurança. As causas da falta de segurança seriam outras.
PAISAGEM POTENTE
A crítica de Lucius Burckhardt à artificialidade da arquitetura é interessante não apenas pelos seus argumentos, mas pelo modo como ele os ancora: nas ações políticas e artísticas realizadas coletivamente, tirando as suas teorias do simples academicismo. Um dos experimentos mais interessantes de Lucius Burckhardt aconteceu em um shopping. Ele tinha três jardins móveis e “desempacotou” o jardim italiano em frente a uma loja italiana, a fim de mostrar como o ambiente natural entrava em choque com o artificial, mas o efeito foi reverso: “Nós pensamos que isso causaria uma agitação. Não foi o caso. (…) Neste ambiente, o efeito é completamente perdido. Porque tudo aqui é simulação e então você pode simular tudo o que quiser e não é percebido. (…) Nem uma escada de avião levantaria uma sobrancelha nestes arredores. As pessoas diriam: “Oh, é uma propaganda do aeroporto”, conta Lucius Burckhardt.
O que Lucius Burckhardt desejava era uma cidade que proporcionasse as condições para que as pessoas pudessem viver a própria vida em todo o seu potencial, com a liberdade de andarem por onde quisessem e a que horas desejassem, que pudessem frequentar lugares públicos e encontrar pessoas espontaneamente. Uma “paisagem potente”, como ele define todas as paisagens livres da sensação de manipulação – que superavam a característica de terem sido feitas pelos homens, seu aspecto man-made-ness – foi vista por ele em 1992, durante a documenta 9, em Kassel.
Como ele aponta, era possível ver em todos os relatos de jornais e resenhas de revistas de arte que o evento dedicado à arte contemporânea era um completo desastre. A cidade estava lotada e uma série de problemas de produção fez com que as filas estivessem gigantes. Lucius Burckhardt e a sua esposa, a artista Annemarie Burckhardt, não precisaram enfrentar as filas, pois já moravam na cidade.
“Algum tempo passou antes que percebêssemos que se tratava de uma paisagem potente. Verdade, ela foi planejada – apesar disso, ninguém esperava que ela mudasse como mudou. Ela foi, na verdade, um desastre. (…) Então se passaram algumas semanas até que percebêssemos que se tratava de uma grande atração. Pessoas interessantes se encontravam ali e se ajudavam, uns usando o guarda-chuva dos outros para ir ao depósito de bagagens e voltavam quando o céu abria. Uma pessoa era eleita para buscar café para outras pessoas da fila, mas era surpreendida de repente com um banho completo, então tinha que voltar para pegar os guarda-chuvas enormes do café para ir a fila e depois tinha que voltar”, narra Lucius Burckhardt, em um de seus ensaios.
Algumas das intervenções urbanas realizadas por Lucius com os seus alunos aconteceram durante as edições da documenta, mas elas sempre buscavam sair do centro a fim de questionar as margens. De alguma maneira, é possível dizer que Lucius Burckhardt era um pensador marginal por pensar fora dos limites das lógicas já disseminadas de produção desenfreada, consumo intenso e desperdício. É através de suas descrições das paisagens potentes que ele mostra que a fusão de atividade humana, lazer humano e sorte em uma paisagem não é uma utopia, mas uma possibilidade.
Aliás, é tão possível e viva que, como escreveu Adam Szymczyk, o curador da 14ª edição da documenta, que tem início este mês na cidade de Kassel: “Annemarie e Lucius Burckhardt continuam a ser uma inspiração para a documenta 14”. Diferentes eventos já foram realizados neste ano em Kassel sobre o trabalho dos dois pensadores, inclusive uma caminhada.