No meio do jogo, Mestre Alexandre espalma as mãos, com os braços semiesticados horizontalmente, e vai ao encontro das mãos de Rodrigo. O rapaz repete o gesto do mestre e encosta suas mãos nas dele. De repente, os dois parecem dançar um bolero suave: dois passos pra frente, dois passos pra trás, e esse movimento se repete algumas vezes. A energia é suspensa, e os olhos todos parecem pairar nas mãos coladas das capoeiras. A música continua com o som do berra-boi (o principal berimbau dentre os três usados nessa modalidade de capoeira, tem som mais grave e também pode ser chamado de gunga), dos pandeiros, do reco-reco, do agogô, do atabaque. Os oito instrumentos que ditam os ritmos da angola. É bonito, como se a cumplicidade entre os jogadores se evidenciasse ainda mais. A qualidade ritualística é explosiva nesse momento. Mestre Alexandre diz que, no entanto, é preciso não se enganar: a chamada pode ser um blefe, uma cilada, e terminar numa rasteira de surpresa, num “aú” desconcertante, num “rabo de arraia” fatal. “É uma coisa bruta e sutil, a capoeira de angola. Tem a maldade, mas você aplica se quiser. Tem a pancada, tem a rasteira, mas tudo dentro do contexto. Se sai dali, o berimbau chama; tem que respeitar o berimbau”, explica.
ESTILO LAPIDADO
A “malícia” e a “mandinga” são essenciais dentro da capoeira de angola. Ser angoleiro é também usar a malícia o tempo todo. Segundo Mestre Pastinha, no dossiê do Iphan Rodas de capoeira e ofício dos mestres de capoeira, esse aprendizado tem que dar condições para que cada aprendiz desenvolva seu estilo próprio de dissimulação, beleza, continuidade e elegância em seus movimentos, toque e cantos. A singularidade e a beleza são perseguidas incessantemente. O estilo de cada jogador/dançarino/capoeira é lapidado e exaltado constantemente pelos praticantes, numa busca por identidade. Ninguém joga igual a ninguém, segundo Pastinha.
Ainda segundo seu depoimento no dossiê, há “o descompromisso alegre da vadiação, a malícia ácida da malandragem, a espiritualidade dos rituais religiosos, a beleza das danças e toques. A celebração e a comunhão de um povo não cabem em técnicas e conceitos”.
Para Alexandre, praticar a angola é também um ato político e de resistência, principalmente no que diz respeito à reverência a uma ancestralidade africana, além de uma filosofia de vida. “Enxergo os espaços de prática de capoeira como verdadeiros quilombos”, afirma o mestre. Para a contramestra Di, a capoeira também é muito mais complexa do que apenas uma dança, ou uma luta, ou um jogo. “A própria capoeira de angola tem sua espiritualidade”, diz, enquanto senta em um tronco seco em meio às muitas árvores do terreno do sítio da Dona Geni, na zona rural de Olinda.
Um cheiro forte de manga-espada madura toma conta de tudo. Olhando para o chão, é possível ver dezenas de pontos amarelados entre as folhas secas caídas das árvores. As crianças do sítio, que são também alunas de capoeira da contramestra Di, em um projeto de formação que encabeça sozinha há cerca de seis meses, passam catando as mangas, subindo nas árvores. Miguel sobe alto, conversa com os saguis. O corpo atlético de Di revela uma prática corporal constante, e o seu discurso, que passeia entre o conscientemente político e libertário, nos dá uma pista do quanto a capoeira de angola é também uma escola de formação intelectual e espiritual para os seus seguidores. “A capoeira tem tudo a ver com isso aqui, com a natureza. É o seu habitat”, afirma Di, olhando as copas frondosas das mangueiras do terreno.
Depois, enquanto caminha por sobre terra, plantas e lixo (o sítio fica em uma comunidade carente na zona rural de Olinda, e há um claro descompromisso com a coleta de lixo, só para citar um dos problemas), mostra que ali mesmo nascem os vegetais que são a matéria-prima do berimbau. Pega um galho e faz menção à forma fina do instrumento, tão essencial ao jogo de capoeira. “É muito estranho ainda ouvir que o capoeira é um vadio. Uma forma de expressão corporal que atravessou anos e anos! No mato, cultuando a natureza, cantando, dançando. Muito triste ser visto como vagabundo porque se tem essa filosofia de vida. Eu estou sempre conectada com a natureza e a capoeira.” “Essa é uma filosofia de vida”, diz Di, que se chama na verdade Adriana Luz do Nascimento e começou na capoeira aos 13 anos de idade. A capoeira é seta tão afiada na vida dos homens e mulheres que encaram esse caminho, que é menos uma atividade que uma filosofia. Vive-se a capoeira. “A capoeira de angola me deu um norte, uma direção, me fez descobrir qual a minha missão no mundo. Pra mim, é uma mãe que só me ensinou, que só me deu força, me fez querer ser quem eu sou. Ajudou diretamente na minha formação enquanto mulher, pessoa, visão de mundo. É paixão, filosofia, missão”, resume a contramestra.
MULHER ANGOLEIRA
No domingo, dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Di procurou desmarcar as fotos agendadas pela Continente para aquele dia. Queria ir com um grupo de amigas e capoeiras à passeata marcada para a data. “É muito importante para mim e para elas”. A reivindicação por direitos iguais e respeito dentro do espaço predominantemente masculino da capoeira é uma questão forte para Di. “O número pequeno de mulheres sempre me incomodou. Convivendo em um ambiente masculino, você precisa se impor. Meu mestre me incentivava, mas havia momentos em que eu percebia que fazia pouco. Tinha que correr muito atrás. Rompi com meu mestre para buscar meu caminho de autonomia como mulher angoleira.”
As mesmas questões são levantadas pelas professoras Mônica e Gabriela Santana. “Eu me maltratei muito dentro da capoeira, tive que me masculinizar. Não quero mais fazer isso, quero ser quem eu sou”, diz Mônica, que acredita que a capoeira de angola ainda precisa amadurecer a sua matriz africana, que é muito centrada na dualidade e valoriza a figura da mulher. “No candomblé, por exemplo, a figura da mulher é central. A capoeira precisa também compreender essas questões”, completa.
Gabriela observa uma tomada de consciência por parte das mulheres, principalmente em Pernambuco. “A mulher está muito mais reconhecida como alguém que organiza, mas não necessariamente como quem lidera e instrui as outras pessoas. Isso tem a ver com o nosso próprio processo, estamos sempre sendo colocadas à prova, sendo caçoadas, coagidas, intimidadas, e de maneiras muito sutis e perversas. Já existem discussões, e muitas mulheres já estão sensibilizadas, algumas mestras também vem questionando isso. Temos que perguntar: como eu me imponho sem reproduzir?”, questiona.
ANGOLA EM PE
No Alto da Sé, Cidade Alta de Olinda, Severino José Magalhães, 47 anos, faz sua roda um domingo sim, outro não. Apelidado Nino Faísca, por sua agilidade nas rodas, desde que jogava a capoeira-regional, é um dos mais antigos praticantes da angola em Pernambuco.
Com seu boné preto, um berimbau a tiracolo, caminha devagarinho em frente à Academia Santa Gertrudes, senta (com um sorriso que não lhe sai do rosto) e começa a contar como a tradição angoleira chegou a Pernambuco, nos anos 1980, o que se confunde também com sua história como angoleiro.
“Vim a conhecer o Mestre Sapo, aí comecei a treinar com ele a capoeira de rua, e todo sábado pela manhã estávamos ali na Praça do Diário (no centro do Recife), jogando capoeira com Mestre Teté, Mestre Barrão, Mestre Todo Duro (que hoje em dia é boxeador), e vários outros de todas as partes. A gente jogava sempre e, pra ganhar o pão de cada dia, passava o chapéu. Até que um dia apareceu o Mestre Cobra Mansa, Cobrinha, lá de Salvador, numa dessas rodas. E lá chegou e jogou a capoeira dele. Até então, a gente não conhecia, e foi uma surpresa pra todos. Aí, Sapo olhou e disse: ‘É essa a capoeira que eu quero. Que capoeira é essa?!’ Ficou todo mundo encantado”, contou Nino.
A partir daquele encontro, a relação entre Mestre Sapo e Mestre Cobra Mansa se estabelece. Sapo vai a Salvador aprender aquela capoeira potente, e leva seus dois principais alunos, Nino Faísca e Marcelo Baiacu. Assim começa a história da capoeira de angola em Pernambuco, na figura ainda central e controversa de Humberto Ferreira de Mendonça, o famoso Mestre Sapo. Praticamente, todos os professores, mestres, contramestres e trenéis de angola passaram pelas suas mãos.
SAPO E COBRA MANSA
Na enladeirada Rua Ilma Costa, em Bonsucesso, Olinda, a porta de madeira da casa de número 243 dá acesso à Associação de Capoeira Angola Mãe. Mestre Sapo abre a porta, depois de alguns minutos do soar da campainha. O homem de quase 70 anos ostenta longos dreads grisalhos. Abre a porta, faz algumas perguntas, mas não quer dar entrevista. Diz que vai abandonar a capoeira, que seu nome já está marcado.
Sapo tem uma relação conturbada com seus antigos alunos e não acredita na diplomação de mestres através do reconhecimento da comunidade. Para ele, assim como era para o Mestre Pastinha, apenas um mestre pode reconhecer um novo mestre. Muitos dos mestres pernambucanos foram reconhecidos por suas comunidades, por seus trabalhos sociais, pelo tempo de dedicação à capoeira. Mestre Sapo não os reconhece. Suas famosas rodas, que aconteciam aos domingos, estão suspensas.
O grande vão, do que já foi uma fábrica de isopor, é um espaço cheio de memória. Fotografias de Pastinha, Cobra Mansa, Mestre Rogério. Cartazes, instrumentos, recortes de jornal. As paredes da associação abraçam a roda de capoeira pintada de amarelo no chão. Mestre Sapo aponta as fotografias, conta do encantamento de ver pela primeira vez Cobra Mansa jogando a angola, do reconhecimento como mestre pelo Mestre Rogério, do Rio de Janeiro. É tudo o que fala.
O professor Caíca, coordenador do Grupo de Capoeira Herança de Angola, na Cidade Tabajara, também foi aluno de Sapo, ficando no seu grupo até 2000. O seu espaço é um dos mais ativos do estado, com rodas e aulas constantes. No entanto, de um modo geral, há pouco incentivo e estrutura para os angoleiros. Os mestres, professores e trenéis não conseguem sobreviver de sua arte, com dificuldades para manter espaços e atividades. Nino Faísca, Di, Alexandre, Sapo, e tantos outros mestres vivem a mesma situação, apesar de a capoeira ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil.
Para Caíca, que também é formado em História pela UFRPE, este é um problema histórico de falta de valorização da cultura negra. “Pernambuco nunca incentivou a prática da capoeira! Porém, a resistência venceu até mesmo a proibição do Código Penal republicano. Hoje, somos patrimônio imaterial. A cultura negra sempre aprendeu que o nosso valor nunca poderá depender de reconhecimento externo. E, em Pernambuco, a repressão era mais severa. Tivemos o presídio nacional dos capoeiristas, a Casa de Detenção de Fernando de Noronha. Tivemos a transformação da capoeira no frevo, como estratégia de sobrevivência. Nunca nos inclinamos ao poder instituído. A busca por espaços próprios se configura na perpetuação de ‘quilombos’, em consonância com a liberdade pedagógica deixada por nossa ancestralidade”, afirma.
Já são quase 21h. As roupas elegantes de Mestre Alexandre e seus alunos não resistem ao calor de Olinda e estão molhadas de suor. Um a um, os discípulos vão atravessando a porta da N’golo Bantus, passando pelas fotografias, pela imagem do Preto Velho que adorna a parede ao lado da porta. Um Bob Marley em tecido observa as atividades do grupo. Alexandre vai até a rua de terra, observa a despedida de todos, e volta ao espaço que o dignifica. “Eu vivo a capoeira dia a dia, e isso é que me fortalece. Eu não sou mestre não, eu zelo pela capoeira de angola, apenas. Deixo ela correr como um rio.”