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Um saber passado de mão em mão

Mulheres que atuam em suas comunidades realizando partos domiciliares contam com o apoio de projetos de valorização da atividade, que sofre preconceito pela cultura da medicalização

TEXTO Julya Vasconcelos

01 de Maio de 2017

A parteira Dôra Nascimento, que é índia pankararu, já perdeu as contas de quantas mulheres atendeu em Tacaratu

A parteira Dôra Nascimento, que é índia pankararu, já perdeu as contas de quantas mulheres atendeu em Tacaratu

Foto Hélia Scheppa

[conteúdo da ed. 197 | maio 2017]

Na casa de Dôra, há ervas secretas plantadas no quintal. Se alguém lhe pergunta os nomes, ela sorri e diz: “Aaah, não pode dizer não. É segredo!”. As dores do parto, as angústias da espera, os sangramentos, o coração, o corpo, a mente: tudo pode ser curado com chás, emplastros e banhos feitos com as ervas dos quintais, ou com aquelas que nascem selvagens, no mato. O segredo de Dôra não é feito de mesquinharia, mas de sabedoria e cuidado, porque “a gente não quer que as pessoas passem a usar as ervas sem saber o que é, sem respeitar a tradição, de qualquer jeito”.            
Maria das Dores Nascimento, vulgo Dôra, ou mãe Dôra, índia pankararu, devota dos praiás e dos guias, das velhas parteiras indígenas, de Santo Antônio e Nossa Senhora, parteira, pegou tanta criança do Brejo, do Saco, do Jitó, que há anos já nem mais conta quantas mulheres atendeu.

Mas quando Dôra fala do segredo das ervas, o mais interessante é seu sorriso. Um sorriso para um subsequente amoroso “não pode dizer, não”. Na Aldeia Brejo dos Padres, em Tacaratu, sertão de Pernambuco, o riso do povo é frouxo feito água correndo no rio, e, se retribuído, cresce como redemoinho, e ninguém mais lembra do que ri. E, minutos depois, se a memória traz uma emoção à tona, o choro vem também, feito da mesma água.

Dôra desce a escadinha de cimento de sua casa usando a camiseta da Corrida do Umbu, festa tradicional da etnia Pankararu. Nas costas, está escrito: “Nascer e viver, amando e praticando a minha tradição pankararu”. A saia jeans no joelho, os cabelos em um coque, o rosto bonito de olhos puxados e o riso (novamente ele) larguíssimo. Alguma timidez na tensão dos braços. Na parede da sua casa, a inscrição: “parteiras tradicionais”, acima da janela basculante.

O sol do sertão vai queimando a pele de Dôra. “A seca tá demais desde o ano passado”, lamenta. Depois ri. No meio da conversa, o olhos marejam, e a parteira que já ouviu tanto choro de criança recém-nascida, de mulher com dor de parto, leva as mãos ao rosto para enxugar as lágrimas. “É muito difícil contar isso sem chorar.” E conta sobre o primeiro parto que fez, aos 18 anos, massageando a barriga da cunhada, por pura intuição, ajudando Mãe Chiquinha a trazer Ricardo ao mundo, hoje com mais de 30 anos e prestes a ter um filho. “É como se eu já soubesse.” Lembra quando um bebê demorou um longo tempo pra respirar, e de como os guias trouxeram a criança de volta à vida. “A gente tem os guias. A gente pede às parteiras velhas que já se foram; pedimos a presença delas. Estava desesperada. Pedi pra tia Ana puxar um canto da nossa aldeia. Quando ela começou a cantar, eu joguei o bebê nos braços dela e ele gritou.”

É bonito ver, de longe, a figura da mulher de chapéu de palha em meio a dezenas de pés secos de pinha, jogando devagarinho feijões nos sulcos abertos na terra. Dias antes, deu uma chuva forte no Sertão, enchendo de esperança a gente nas aldeias de Tacaratu, que logo tentou trabalhar a terra. Ana Maria dos Santos, a tia Ana, tira o chapéu, sorri, prende o cachorro, que late desesperadamente. “Eu e Dôra gostamos de fazer juntas os partos. Enquanto uma ajuda a mulher, a outra pega uma coisa. É muito bom essa parceria”, conta a mulher de mais de 60 anos. “Na hora que eu vi o menino já roxinho, roxinho, pedi a Deus, deu vontade de puxar uma toada, todo mundo chorando.”

Existe algo na relação de Dôra e Ana com a sua atividade que transcende a ação de “fazer um parto”. Há, inegavelmente, um saber acumulado de muitas gerações. Um saber empírico, construído por mulheres que conhecem seus corpos e seus processos, e aperfeiçoam esse conhecimento observando outras mulheres e a variedade de situações que podem ocorrer em um parto. Um saber tradicional que recepciona e salva vidas há séculos. Mas há, para além disso, uma dimensão holística, de conhecimento profundo associado a afeto e cuidado, e de conexão com o tempo, com a natureza, com a memória.

Há algo que diferencia os procedimentos de uma parteira tradicional que está relacionado ao atendimento e ao respeito ao corpo da mulher. “Eu já trabalhei em hospital e via como as mulheres eram atendidas. Não tinha carinho, não tinha amor. Aqui, quando eu chego na casa de uma mulher que está em trabalho de parto, a primeira coisa que eu faço é tranquilizar, fazer massagem, preparar um chá. A gente conversa, fala coisa engraçada, canta, dança, dá risada”, compara Dôra.

MEDICALIZAÇÃO
Luciana Palharini, antropóloga e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas, observa que há uma questão de gênero colocada na marginalização das parteiras, e que o corpo feminino foi medicalizado e investigado como o corpo do homem não foi. “A história da ciência obstétrica nos mostra que o investimento sobre o corpo feminino, nos moldes do biopoder, alijou a mulher do protagonismo sobre a gravidez e o parto, deslocando seu significado para um evento patológico”, explica Palharini.

A pesquisadora afirma que a medicalização da assistência ao parto e ao nascimento tem início no século XVII, em países europeus como França e Inglaterra, estabelecendo-se, de fato, no século XX, após haver passado por diversas fases e em meio a contextos complexos, como o período pós-II Guerra Mundial e a própria profissionalização da ciência e da medicina.

“Esse advento não se deu sem conflitos, colocando em cena relações de gênero entre médicos e parteiras, entre o conhecimento institucionalizado masculino e o saber tácito feminino, e entre o médico, homem, e a parturiente, mulher. O parto, até então, não era considerado um ato médico e ficava a cargo das parteiras, pertencendo ao domínio privado – o ambiente doméstico, íntimo e composto por mulheres com outras mulheres. O termo em inglês para parteira, midwife, quer dizer withwife, ‘com mulher’. A presença masculina não era bem-vinda pelos pudores morais da época. A atenção ao parto dentro dessa rede, que se limitava ao universo feminino, era entendida mais como uma ‘solidariedade’ entre mulheres, extensão do ambiente doméstico, do que como uma profissão”, completa a pesquisadora. “O instrumental tecnológico que começava a ser desenvolvido, e que pertencia exclusivamente ao domínio do cirurgião, conferia a fama de eficácia e domínio pelos homens sobre um evento do campo feminino.”

Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim, ONG feminista que atua, principalmente, na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, observa que, há pouco tempo, na Declaração de Nascido Vivo, não havia nem mesmo a opção de nascido com parteiras. A declaração incluía as opções “médico”, “enfermeiro” ou “outros”. “No Código Brasileiro de Ocupações está a atividade de parteira. Lá se chama ‘parteira leiga’, um termo de 1940! O que é leigo? Leigo é o que não sabe! É um absurdo colocar as parteiras no lugar do leigo”, pontou Paula, em seminário que aconteceu recentemente no Museu do Homem do Nordeste.

BOLSA DE PARTEIRA
“Toda a vida eu fui muito corajosa, muito curiosa. Tudo eu queria fazer”, diz Josefa Alves de Carvalho, uma das parteiras mais antigas em atividade em Caruaru. Zefinha, como é conhecida, fala em ritmo acelerado, como que para conseguir dizer o máximo no mínimo de tempo. Os olhos vivíssimos da menina que foi criada sendo balançada na rede pelos irmãos Antônio, Luís, Severino e José. E trepando nos pés de fruta, correndo nas plantações de milho e feijão, pulando com as cabras do terreno da família na Pedra do Cachorro, em Fazenda Velha. Conta como “fez de tudo nessa vida”, porque tudo o que ela tomava conhecimento da existência, dizia “eu sei, eu quero fazer”. E foi assim com o ofício de partejar. Um dia, resolveu que faria e, sem ninguém que a ensinasse, foi lá e realizou o parto de uma vizinha quando tinha 27 anos. Hoje tem 77.

A bolsa branca de parteira está sempre pronta, a postos, com álcool, tesoura, luvas, sabão, o inseparável estetoscópio de Pinard, normalmente de madeira, e com o qual se escutam os movimentos e batimentos cardíacos do bebê. Às vezes, faz um chá de pimenta do reino para acelerar as contrações, às vezes, uma xícara de café com manteiga.

Há alguns anos, a Associação de Parteiras Tradicionais, presidida por ela, passou por um processo de enfraquecimento. A gestão anterior da prefeitura de Caruaru incentivou as mulheres a não serem acompanhadas pelas parteiras. “Fez um verdadeiro terrorismo, estimulando a ignorância em relação à atividade dessas mulheres, que são verdadeiras sábias”, pontua Maria, filha de Zefinha. Partos, só no hospital, “com segurança”. Um verdadeiro boicote por meio das políticas públicas foi empreendido contra as parteiras da cidade agrestina, que sentiram fortemente a falta de apoio e a perseguição, o que comprometeu as atividades de grupo e a quase extinção da associação.

Para Júlia Morim – doula e antropóloga que atua junto a parteiras tradicionais, no que diz respeito a documentação, promoção e valorização do ofício –, as parteiras sofrem preconceitos. “São marginalizadas por esse modelo tecnocrata, médico centrado e hospitalocêntrico de atenção ao ciclo grávido-puerperal. Os saberes populares são sempre vistos como ‘menores’ por aqueles que estão inseridos no paradigma biomédico. E como nosso sistema de saúde é baseado nesse paradigma, as parteiras e suas práticas são marginalizadas.”

Júlia é uma das responsáveis por tirar do papel a ideia do Museu da Parteira, um projeto em construção, que vem ajudando a documentar, expor, valorizar e comunicar as práticas e saberes das parteiras tradicionais. Um dos objetivos da organização de informações referentes às práticas das parteiras tradicionais é a inclusão desses saberes na lista de patrimônios culturais imateriais do Brasil, através do Iphan. O projeto de museu esteve em exposição entre novembro de 2016 e abril de 2017 na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.

Diana Dianovsky, da Coordenação de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, explica que “um patrimônio para ser reconhecido tem que ser enraizado no tempo. E isso não é problema para as parteiras”. O grupo de antropólogas, parteiras e militantes do parto tradicional e humanizado estão levando à frente um trabalho hercúleo de sistematização de informações para a defesa da inclusão das parteiras no cadastro do instituto.

Para o grupo engajado nessa luta de difusão dos saberes, o reconhecimento é importante porque, como acredita Elaine Muller, que coordena o grupo de pesquisa Narrativas do Nascer, no Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, “a política pública para o patrimônio imaterial, conforme é colocada pelo Iphan, se assemelha a uma ‘carta de intenções’ da parte do Estado, embora não garanta totalmente a continuidade ou melhorias na qualidade de vida das parteiras”.

HERDEIRA
Na Rua Maria Augusta Dutra tem um pé de coco amarelo, indica Maria dos Prazeres Souza. “Não tem erro não, é a única rua aqui onde tem um pé assim, o resto é tudo verde.” As ruas tortuosas de Sucupira levam a uma casa de fachada azul escura, onde a parteira vive. Os gatos rondam a porta da sala, assim como os seus netos, que fazem um burburinho de crianças enquanto um café com bolo é servido.

“Eu fiz desse trabalho um sacerdócio”, diz a mulher de quase 80 anos. Mostra as mãos, pequenas como as de uma criança. As linhas escuras e fundas lhes dão uma aparência de escultura, marcas do tempo. A aparência frágil da mulher de voz mansa esconde uma força inabalável. Prazeres não para. “Eu sou do signo de Escorpião”, diz, como se revelasse a si mesma.

Ela é uma das idealizadoras do Museu da Parteira e, ao falar da sua atividade, expressa vitalidade e compreensão de sua importância no mundo que são inspiradoras. “Tá vendo essa ladeira? Quantas vezes eu não subi essa ladeira pra atender parto de filho de bandido? Quantas vezes eu não subi pra atender parto em casa que não tinha nada, nada, de eu ter que comprar comida pra família, ou de ter que convencer a Celpe a não cortar a luz bem na hora em que uma criança vinha ao mundo?”, relembra a mulher, que é filha de uma parteira indígena que lhe ensinou o ofício. “Gosto de queimar alfazema na hora do parto, isso é uma coisa muito tradicional. Lembro quando era criança e começava a sentir o cheiro. Sabia que tava vindo menino. Minha mãe não me deixava ver, mas eu ouvia todas as conversas. Meu sonho era fazer um parto.” Um dia, ainda adolescente, correu para atender um parto na ausência da mãe. Reproduziu o que havia escutado, lembrou como cortava o cordão, lembrou o chá, o café, o cuidado. Trouxe a primeira pessoa ao mundo. Sentiu-se gigante no seu menos de 1,50 m.

Prazeres não é ingênua a respeito da sua missão no mundo. Entende que sua prática, da maneira como a encara, e por atender numa região próxima de um centro urbano, envolve também militância, resistência e estudo constante. “Enquanto existir vida humana, haverá parteiras. Nós somos muito úteis, corajosas. Nós somos simbiose, estamos em todas. Não tenho medo de nada, nem de bandido, nem de lugar feio. Me aposentei de tudo, mas de parteira tradicional, não. A coisa que eu mais tenho orgulho de dizer é que essas mãos são puras”, e mostra mais uma vez as mãos. “Onde é que estão os olhos das parteiras? Nos dedos, nos dedos!”, afirma Prazeres. “Cada passo, cada coisa, cada gemido. Nós, mulheres, somos muito parecidas, e a nossa história é muito bonita. Nós não vamos recuar”, diz em pé, na frente de casa. 




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