O imaginário desses tempos de cultura canavieira forte parece estar impregnado no lugar e também nas pessoas que lá vivem. Usinas como a de Barreiros e a de Catende conseguiram, diante da sua potência, constituir comunidades que foram alçadas à categoria de municípios. Hoje, também desativadas, deixaram uma lacuna no modo de vida das pessoas. A Santa Terezinha não chegou a fundar um município, mas criou uma vila em seu entorno, cujos moradores também sofreram os impactos do fim da moagem de cana. Enquanto essa cultura arraigada se deteriora, a população local viu surgir, em 2015, algo novo naquele lugar onde antes a cana-de-açúcar era centro da vida. Uma movimentação cultural brotou de forma pouco organizada: nascia o projeto Usina de Arte.
Proprietário das terras da usina, o empresário Ricardo Pessoa de Queiroz deu início – informalmente – ao projeto após uma viagem ao Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, instalado na cidade de Brumadinho (MG), espaço ao qual o Usina de Arte vem sendo reiteradamente comparado. Em 2012, Ricardo e sua esposa, Bruna, fizeram uma visita ao centro mineiro. Lá, eles se apaixonaram pelo trabalho do artista Hugo França, que desenvolve “esculturas mobiliárias” em madeira. “Falei para Bruna que queria uma peça dele. E o convidei para vir até a usina e aproveitar a matéria-prima que temos em abundância por aqui. Depois, alguns amigos me pediram para convidá-lo novamente para desenvolver outras peças para eles. Hugo veio em 2013, depois novamente em 2014. A partir daí, em nossas conversas, surgiu a ideia de chamar outros artistas para vir a esse lugar, dialogar com o entorno e com as questões culturais da região”, conta Ricardo.
PODER DA ARTE
Era início de 2015, e eles receberam a sugestão de convidar o paraibano José Rufino para conhecer a Usina e desenvolver ali uma obra. O artista levou um tempo para aceitar o convite, mas seguiu rumo à Santa Terezinha achando que era chamado simplesmente para a produção de uma obra encomendada – já levava, inclusive, duas propostas. Ao deixar seu ateliê, no entorno de João Pessoa, Rufino sabia que se dirigia a uma área com números altos de violência e índice muito baixo de desenvolvimento humano. Além disso, chamava a atenção a ausência de manifestações culturais na região, já que a Mata Norte, a despeito da exploração da cana, conseguiu preservar algumas de suas tradições culturais. Essa era uma pergunta importante para o artista. Por que a Mata Sul não tinha referências culturais tão fortes quanto às da Mata Norte?
Ao chegar, em contato com Bruna e Ricardo, percebeu que ali havia espaço para se investir no processo de mudança social através da arte. “Temos aqui a opulência e a decadência, num ambiente rico, com possibilidade de transformação”, pontua Rufino. O que se ventilava nas conversas não era uma simples encomenda de obras para fins particulares. O contato com o entorno passou a ser visto como mais importante que a obra física. Surgiu a ideia das residências, foi criada a escola de música – que hoje atende a 53 crianças –, deu-se início ao cultivo de um jardim botânico e foram pensadas ações para fomentar a economia alternativa.
O projeto tem sido transformador também para o artista. “Foi a primeira vez que vi o meu trabalho em teste. Você vai para uma bienal e está protegido, a cada ano você fica mais protegido, porque vai se mitificando. Aqui não, estou acompanhando direto o trabalho e sua relação com as pessoas, vendo se ele serve, se funciona. Ainda que o prazer do ateliê seja algo incrível, estou tendo dificuldade de me imaginar de novo nessa produção silenciosa”.
O artista recebeu convite para participar de uma exposição em São Paulo e o curador pediu que a obra viesse justamente dessa sua experiência na Usina Santa Terezinha. O pedido causou certa confusão para Rufino, para quem a ideia de tirar a obra do lugar e enviá-la para São Paulo, colocar a roupa de “arte”, integrar um grande evento, sair em um catálogo, vir acompanhada de um texto crítico, não fazia mais tanto sentido. “A gente está vivendo uma era pós-contemporânea do ponto de vista da arte. Não interessam apenas as galerias, os museus, o mercado da arte. As ocupações, os trânsitos, os compartilhamentos passam a ser relevantes”, diz.
O projeto, segundo Bruna Pessoa de Queiroz, foi nascendo de modo intuitivo, ganhando vulto e crescendo. A Associação Jacuípe foi criada para dar conta das propostas que surgiram. Rufino chegou lá como artista, mas, com o avançar das ideias, terminou fazendo o papel de curadoria. Ele se apresenta, na verdade, como uma espécie de conselheiro da associação. “É como se fosse uma curadoria porosa, cada colega sugere alguma coisa e vai virando algo coletivo. Ainda não temos uma estrutura institucional de logística grande, então, cada um faz um pouco”, conta.
Dentro dessa proposta de ação ampliada, o grupo viu também suas responsabilidades serem alargadas. Passou a ser necessário responder a demandas históricas, ter a preocupação de buscar artistas que nunca se destacaram em Pernambuco, outros de estados vizinhos, ou que se relacionam de algum modo com a cultura da cana; enfim, buscar uma diversidade que atenda ao ideal do projeto, apresentando o que é a arte na região, no país. Um artista que está na mira de Rufino é Macaparana, pernambucano radicado em São Paulo desde a década de 1970, pouco conhecido em seu estado.
RESIDÊNCIAS
As residências artísticas começaram no final de 2015, com o artista pernambucano Carlos Mélo. Depois de explorar o lugar durante duas imersões de 15 dias, ele propôs a realização de Freedom, um trabalho que engloba uma fotografia e uma performance. “Foi uma iniciativa muito desafiadora para mim. Fui sem noção do que faria e encontrei um livro sobre o açúcar, com muitas receitas de doces, no quarto em que fiquei na casa-grande. Nele, havia um trecho de Gilberto Freyre que se referia à escravidão como o momento mais amargo do açúcar, acompanhado pela imagem de um negro sendo torturado na berlinda. Aquilo me chamou a atenção, vi que tinha que trazer essa discussão para a obra”, conta Mélo.
Com esse mote, ele criou a performance Berlinda, na qual ficou preso pelos pés no instrumento de tortura homônimo durante algumas horas no meio da vila, repetindo o ato, por mais algumas horas, numa das instalações da usina, que hoje guarda suas obras. Mélo escolheu uma das colinas que cercam o local para criar o cenário da sua fotografia. Ele instalou um varal em que foram estendidos os lençóis brancos da casa-grande, simbolizando um tratado de paz.
“Eu queria trabalhar essa ferida trazendo a perspectiva da liberdade, dando um viva à liberdade. Curiosamente, depois que já estava com a obra em curso, Ricardo me trouxe um recorte de um jornal português que destacava famílias que haviam dado alforria a seus escravos antes da abolição. Entre eles, estava um tio dele. O documento está lá, hoje, junto com as obras, cujos direitos de exibição foram adquiridos pela Associação Jacuípe”, detalha Mélo.
Segundo Rufino, há a ênfase em chamar para as residências artistas que sejam capazes de imergir naquele ambiente. “Não queremos alguém que chegue aqui e diga a lista de coisas que temos que comprar para produzir seu trabalho. Desejamos que as ideias e as obras surjam a partir do nosso espaço, com os materiais e também com as histórias, lendas, tradições da região.”
Esse modus operandi do projeto é o que vai diferenciá-lo daquele realizado em Inhotim. As semelhanças chamam a atenção, quando se observa que ambos têm muito marcada essa relação da arte com a botânica. Entretanto, Rufino vê no espaço mineiro uma constituição mais formal, com o perfil do dono, enquanto, na usina, é algo mais endógeno, orgânico, com essa ideia de residência artística e troca com a população, sem a criação de pavilhões. Ele acredita que o Usina de Arte vai se aproximar mais de outros parques no mundo, que trazem esse formato de residência como algo fundamental e específico. Iniciativas que levam artistas a ocupar uma fábrica inoperante e, a partir dessa vivência, produzir obras e atuar diretamente no lugar, impactando na vida das pessoas.
Agora, estão em residência os artistas Lais Myrrha e Daniel Acosta. A mineira visitou a usina pela primeira vez em 2016 e retornou este ano para mais algumas temporadas. Seu trabalho já está em curso e deve resgatar a tradição das olarias da região, do uso do barro, a ideia da passagem de uma coisa a outra – tal como a passagem imposta a essa população habituada a uma cultura da cana-de-açúcar na busca por novas formas de ganhar a vida.
Já Daniel Acosta, cuja trajetória perpassa a questão da arquitetura, da criação de espaços, foi convidado para pensar uma obra aplicada, a criação de um epifitário de 1.500 m2 dentro do jardim botânico, o qual vai abrigar as espécies epífitas (orquídeas, bromélias e afins). Em vez de chamar um arquiteto para projetar as estruturas do jardim, o grupo propõe convidar artistas que possam pensar esses ambientes. Um desafio, segundo Acosta, que já está estudando as características técnicas que um epifitário necessita, para criá-lo com base nessas orientações. O artista também saiu em busca dos materiais pelas redondezas e encontrou estruturas de metal leve em outra propriedade de Ricardo Pessoa de Queiroz. Possivelmente, esses serão os elementos-chave de sua obra.
MAMAM
Além dos artistas convidados, a Associação Jacuípe estabeleceu um acordo com a Sociedade dos Amigos do Mamam, que possibilitou a vinda de alguns artistas ligados ao museu, convidados pela diretora da instituição, Beth da Matta. Márcio Almeida, Marcelo Silveira, Paulo Meira, Paulo Bruscky e Daniel Santiago abraçaram o projeto e se comprometeram em repassar ao museu parte dos valores que recebessem pela execução das obras. Cada um deles está desenvolvendo um trabalho de grande dimensão, a ser incorporado ao jardim botânico.
O artista Marcelo Silveira propôs a reprodução do pátio interno da casa-grande – projetada pelo arquiteto italiano Giácomo Palumbo, responsável também pelo projeto do Palácio da Justiça e pelo prédio do Memorial de Medicina de Pernambuco – dentro do jardim botânico, possibilitando que a população local, para quem a casa dos proprietários gera muita curiosidade, pudesse entrar e conhecer um pouco desse elemento central na construção.
Paulo Meira planejou a criação de uma rádio, a Rádio Catimbó, que ficará à disposição dos artistas residentes e também da população. O artista ministrou a primeira oficina com os moradores para ensinar-lhes como manusear o equipamento.
Paulo Bruscky começou a recolher materiais diversos durante suas três visitas à Usina. Ferros, parafusos, restos de espelhos e afins irão compor Arquitetura de imaginário, uma série de muros que vão sofrer o impacto do ambiente, sendo modificados com a chuva, com a ferrugem.
Márcio Almeida percorreu o lugar e criou lendas inspiradas naquilo que viu, tais como as quatro ninfas do Rio Jacuípe, para o seu Eremitério tropical, situado na entrada do jardim botânico. A proposta de Daniel Santiago ainda está em fase de consolidação e deve ser definida até o fim do ano. Segundo Bárbara Maranhão, presidente da Sociedade dos Amigos do Mamam, existe a possibilidade de a parceria ser estendida e passar a incluir outros artistas em 2018.
O HANGAR E O JARDIM
José Rufino também produziu uma série de obras na usina. Logo que chegou, vislumbrou no espaço do antigo hangar o seu ateliê. Dentro dele, encontrou muita matéria-prima, peças em metal, tratores e maquinário sem uso. Na parte externa, ele compôs a instalação Tempus fluvium com a antiga cadeira de José Pessoa de Queiroz, bisavô do atual proprietário, Ricardo Pessoa de Queiroz, que comandou a propriedade nos anos áureos da cultura do açúcar em Pernambuco, sendo seguida por um rastro que imita o trajeto do Rio Jacuípe, feito com restos de peças metálicas encontradas na usina, até os limites com o Rio Una. No espaço interno, em uma das paredes, está disposta parte da obra Ligas. Rufino reuniu velhos facões de corte de cana – instrumentos que têm um tempo de vida determinado e precisam ser trocados regularmente – e começou a fazer composições, em diálogo com a população local, fazendo referências ao maculelê, manifestação popular tradicional que utiliza bastões de madeira numa espécie de luta. Foram feitos 900 conjuntos, mas só parte deles está em exibição no hangar.
O artista considera a obra Opera hominum, na qual utilizou as fichas coletivas de recibos de pagamento dos antigos funcionários,como uma das mais importantes produzidas por ele no local. Nelas, os funcionários tinham que assinar ou imprimir sua digital (aqueles que não eram alfabetizados), quando recebiam seus pagamentos. Rufino propôs que os antigos funcionários marcassem as fichas com suas mãos. A ideia é de que a obra seja reunida numa pequena publicação. O artista também se apropriou das fichas de controle de entrada e saída dos materiais do almoxarifado da usina e adicionou a elas monotipias. Enquadradas, as fichas trazem agora elementos botânicos, numa referência à diversidade de vegetação que começa a surgir no entorno do hangar, com a criação do jardim botânico, cuja primeira etapa tem 29 hectares e deverá receber mais de 30 mil plantas de médio e grande porte, num espaço onde antes só se via cana-de-açúcar.
A criação do jardim botânico está provocando a população local, acostumada à monocultura da cana, na medida em que a leva a pensar em outras formas de trato com a terra. Além das iniciativas do projeto cultural, Ricardo Pessoa de Queiroz tem investido na mudança de alguns dos seus negócios, instalando a pecuária em suas terras e levando antigos canavieiros a terem contato com o gado – algo não muito comum na região. O grupo sente que ainda existe uma resistência em “abandonar” o sonho da usina e parte dos moradores não entende o porquê de tirar as pessoas da cana para plantar palmeiras ou cuidar do gado.
Entretanto, enquanto alguns resistem, ou julgam que se trata de algo passageiro, outros se engajam no projeto como parceiros dos artistas. Há ainda a movimentação gerada na vila. Os moradores passaram a ver o projeto como uma oportunidade para empreender em outras áreas. Um pensa em ampliar o salão de beleza, outro idealiza a criação de um restaurante que possa dar conta de uma demanda de visitantes que se espera ter no lugar com o avanço das atividades, e com a realização do Festival Arte na Usina, que teve duas edições, em 2015 e 2016.
O FESTIVAL
Os produtores consideram o festival um momento de culminância do Usina de Arte, trazendo para o lugar artistas das mais diversas áreas para dar oficinas, participar de palestras, shows, performances, exibição de filmes, numa programação gratuita e aberta ao público. Ricardo conta que, na primeira edição, eles tiverem que fazer um trabalho de captação para que a população da região soubesse das oficinas e se inscrevesse.
Em 2016, o processo fluiu de forma mais natural, com a comunicação via redes sociais. Os produtores, além de oferecer um camping para quem vinha de fora, criaram mecanismos para viabilizar o aluguel de casas na vila. Para 2017, a aposta é que a população tenha autonomia e disponibilize a hospedagem diretamente.
A segunda edição, em novembro do ano passado, teve 10 dias e trouxe 15 artistas para dar oficinas, participar de palestras, shows, performances, exibição de filmes. O curador e pesquisador cearense Bitu Cassundé foi um dos convidados e participou da mesa Arte como transformação, com José Rufino e José Luiz Passos. Ele trouxe suas experiências nesse processo de formação desenvolvida no Porto Iracema e também mostrou de que forma a artista Virgínia de Medeiros, cujo trabalho ele vem acompanhado há algum tempo, trabalha a questão da transformação.
“Estou muito feliz por estar nesse festival. A ideia me soa muita simpática, quando eu penso na formação de repertório aqui do entorno. Eles têm uma potência que pode ser desdobrada. Acredito muito no poder transformador da arte vindo, muitas vezes, pelo exercício do ver, do construir repertório e do exercício do fazer. É interessante observar essa possibilidade num espaço cheio de camadas históricas como esse”, destaca Cassundé.
Leda Catunda foi outra convidada para o festival, no qual ministrou uma oficina de pintura. Ela se instalou com o seu grupo num dos prédios da usina, que carrega toda a mitologia do lugar, ainda viva no dia a dia da população do entorno. “Essas pessoas vêm ao prédio abandonado e encontram os artistas e aquilo mexe com o imaginário delas. Está sendo muito importante para mim passar por esse processo com essas pessoas. A gente não fica imune, sentimos o que os outros estão sentindo”, refletiu, à época, a artista.
Os produtores, além da planejar a realização de mais uma edição do festival, vislumbram a possibilidade de uma visitação externa mais perene, com pessoas vindo durante o ano conhecer o projeto, visitar o jardim e visitar as obras desenvolvidas por lá. É por isso que incentivam ações de negócios na vila que possam ajudar nesse processo.
Uma das colinas que se avista desde a casa-grande já não foi utilizada para plantação de cana na última safra. Nela surge, espontaneamente, uma nova vegetação, que parecia estar latente, esperando o momento de emergir. Em alguns anos, quando o projeto tiver avançado e o jardim botânico, consolidado, a paisagem será outra. E será possível também conhecer a força da arte nesse processo de transformação.