Somente a música erudita de autores contemporâneos
Fundada por Sergio Roberto de Oliveira, com recursos próprios e empréstimos de amigos, em 1999, a carioca A Casa Discos chega este ano ao marco de 30 CDs lançados
TEXTO Carlos Eduardo Amaral
01 de Maio de 2017
O compositor Sergio Roberto de Oliveira, diretor de A Casa Discos, foi indicado ao Grammy Latino entre 2011 e 2012
Foto Divulgação
[conteúdo da ed. 197 | maio 2017]
A música clássica, por si só, é um nicho pouco lucrativo na indústria fonográfica nacional, salvo pelos álbuns blockbusters de estrelas comercialescas como Andrea Bocelli ou André Rieu (há duas décadas, a febre eram os “três tenores”: Carreras, Domingo e Pavarotti; há três, Richard Clayderman). “Pouco lucrativo” talvez seja bondade, pois é plausível cogitar que esse segmento não seja veramente deficitário no Brasil, mesmo levando-se em conta as plataformas virtuais de vendas, a exemplo do Spotify e iTunes. Afinal, quem gasta dinheiro com música clássica hoje em dia – um entretenimento que, para muitos, continua tão exótico quanto filatelia, aero ou ferreomodelismo, numismática e criação de raças raras de cães e gatos?
O fundador de uma gravadora no Rio de Janeiro pensou diferente e decidiu apostar nesse filão, mais especificamente de música clássica criada por compositores brasileiros vivos. Sem lastro financeiro estatal e sem apelar a outros gêneros musicais para expandir o catálogo, Sergio Roberto de Oliveira investiu cerca de 150 mil dólares – de recursos próprios e de empréstimos com amigos e familiares – na aquisição, reforma e adaptação de uma casa antiga no Bairro do Rio Vermelho, na região central do Rio, além da compra dos equipamentos de som necessários, em 1997. A inauguração d’A Casa Estúdio aconteceu em fevereiro de 1998 e a empresa oficializou-se em junho de 1999.
“Meu início de vida foi muito conturbado: minha filha nasceu quando eu estava no segundo período da faculdade de Música e tocava na noite para pagar as contas. Com a tecnologia digital, os equipamentos de gravação tornaram-se bastante acessíveis, principalmente com a paridade dólar/real, conseguida no governo Itamar Franco. Ou seja, ao mesmo tempo que havia uma necessidade pessoal de sustento, os meios para montar um pequeno estúdio eram mais fáceis”, conta Sergio.
Antes de adquirir A Casa, o produtor possuía um estúdio doméstico no apartamento em que morava, montado em 1995. O aumento da demanda o fez alugar um estúdio de ensaios, para onde levava seus equipamentos de som. O passo seguinte foi construir o próprio estúdio: A Casa demorou cerca de sete anos para ficar estruturada por completo: três anos para reforma do edifício e mais quatro para a estrutura social (banheiros, recepção, escritório etc.).
DISCOGRAFIA
A Casa Estúdio estreou o próprio selo, A Casa Discos, no início dos anos 2000, e concluirá 2017 com 30 CDs lançados, sendo 24 de música clássica (21 destes, de música contemporânea). Em 2016, a gravadora produziu três álbuns: OSN-UFF interpreta compositores de hoje, com obras sinfônicas inéditas de cinco autores residentes no Rio, entre elas, uma do próprio Sergio Roberto, ex-aluno de César Guerra-Peixe (1914-1993); Água-forte: Duo Grosman-Barancoski interpreta Tacuchian, com peças para duo de pianos ou piano a quatro mãos; e The Biedermeiers, que traz arranjos raros com instrumentos do primeiro quartel do século XIX, como o flageolet francês, o csakan húngaro e a guitarra romântica, interpretados por Rubens Küffer e Max Riccio.
Outros títulos de destaque d’A Casa são: o box Quinze, com quatro CDs comemorativos dos 15 anos de carreira de Sergio Roberto, em 2012; e os álbuns O piano de Guerra-Peixe, com interpretação de Ruth Serrão; Bem brasileiro, dedicado a peças de diversos autores nacionais para dois violoncelos, tocadas pelo Duo Santoro; Música brasileira contemporânea, vol. 3, de composições interpretadas pelo violonista Armando Uzeda, e Prelúdio 21: Quartetos de cordas, em que o Quarteto Radamés Gnattali executa partituras de integrantes do principal coletivo de compositores eruditos do país.
Os dois últimos renderam a Sergio Roberto a rara indicação ao Grammy Latino, em 2011 e 2012, respectivamente. Primeiro, pela composição Umas coisas do coração; depois, pela produção fonográfica. No Recife, os CDs d’A Casa, que são distribuídos nacionalmente pela Tratore, podem ser encontrados nas principais livrarias da cidade. No entanto, o produtor chama atenção para as atuais restrições de estoques do setor: “Muitas vezes estamos no catálogo de uma dessas grandes livrarias, mas não no estoque. Cabe ao consumidor fazer a sua parte e encomendar, pedir, pressionar que o varejista tenha o produto que ele quer adquirir”.
LUCRO RELATIVO
Em um nicho no qual poucas gravadoras se aventuraram, como a extinta Kuarup (responsável pelos CDs mais importantes do Quinteto da Paraíba, do Quinteto Villa-Lobos e da última década de carreira de Sivuca), a CPC-Umes e o Sesc Digital, surge a indagação sobre a rentabilidade do empreendimento. Sergio retruca, afirmando que seria, de fato, lucrativo aplicar no mercado financeiro.
“Mas acho que, como brasileiros, temos que pensar além do próprio umbigo: precisamos construir o país, não só na tarefa de toda empresa (geração de emprego e renda) como na de qualquer empresa cultural (ajudar na construção da cultura nacional)”, defende Sergio, que emprega cinco funcionários n’A Casa. Ele explica que A Casa Estúdio congrega estúdio de gravação, estúdio de ensaio, produtora e o selo A Casa Discos, mas que apenas a produtora e o selo trabalham direcionados para o mercado da música erudita, com ênfase na contemporânea.
Os estúdios de gravação e de ensaio são ativos tanto no meio erudito quanto no da música popular. Apesar disso, declara Sergio, o mercado da música clássica tem andado aquecido o suficiente para ser o principal pilar da empresa. Para ele, o segredo, “se é que existe algum”, é não se deixar levar por rumores de crise, arregaçar as mangas e agir como todo empresário deve fazer: analisar o mercado, identificar oportunidades e investir para consegui-las. “Desde que se começou a falar em crise, há cerca de dois anos, nosso negócio apenas aumentou. Independentemente de qualquer coisa, a música contemporânea brasileira justificaria tudo. Graças a Deus, não é o caso”, conclui.
Em 2016, A Casa começou a priorizar gravações sinfônicas, tendo lançado dois discos com a Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense: o …compositores de hoje e o mais recente, o Menestrel e o SertãoMundo, saído em abril passado, com a participação de Elomar. Mas Sergio não deixa de lado a música de câmara, uma de suas predileções, enquanto há mais de dois anos trava uma guerra contra o câncer de pâncreas.
“O trabalho é fundamental. Antes de mais nada, porque a música é uma paixão e realmente ter o foco em algo que amo tanto, em que acredito tanto, que tem tanta vida, ajuda demais. Além disso, percebo que o meu papel como compositor, e através d’A Casa, tem sido muito importante para música brasileira. Vários compositores mais velhos têm me procurado para falar isso, sem contar os mais jovens, os intérpretes. Então, diante de uma missão tão relevante, ganho um combustível a mais para querer viver, querer dar o máximo de mim. Enquanto eu estiver por aqui – e espero que sejam muitos anos – vou continuar criando, produzindo, interferindo no nosso ambiente musical, para tentar dar mais visibilidade para a música de concerto, principalmente para a música de hoje.”