Porém, se existe uma obra musical que pode ser tomada como ícone do futurismo russo, essa é Zavod: muzika machin, op. 19 (Fábrica: música-máquina), mais conhecida como Forjaria de aço, de Alexander Mossolov (1900–1973). O impacto visual e sonoro da execução – com a batida regular e martelada da percussão, as trompas dispostas pela sala de concerto, o emaranhado textural das cordas e do flautim, e os aflitivos e progressivos ostinati (células rítmico-melódicas repetitivas) – imprime a qualquer ouvinte a atmosfera mecânica e sufocante de uma fábrica siderúrgica, especialmente na seção final da obra, em que uma folha de flandres e uma bigorna reforçam a percussão.
A suíte para o balé Stal (Aço), estreada em 1927, possuía quatro movimentos: Zavod, o primeiro, e mais três que se perderam – Na prisão, No baile e Na praça. Outras duas peças “fora da caixa” de Mossolov também garantiram fama ao compositor, pelo cunho insólito: Três cenas infantis, op. 18 e Quatro anúncios de jornal, op. 21, ambas para meio-soprano solista e orquestra, nas quais Mossolov se vale de dois tipos de textos banais: miados, zumbidos e deboches com a avó, em episódios domésticos; e anúncios de um caderno de classificados, incluindo o de um cão setter inglês à venda.
Em 1932, o realismo socialista tornou-se a diretriz oficial da arte soviética, cabendo a supervisão de sua implantação, na música, pelo órgão criado para tal, a União dos Compositores Soviéticos – em outras palavras, a entidaderesponsável pelo patrulhamento estético-ideológico dos compositores do país. Mossolov, como diversos colegas de ofício, passou por um severo acossamento para se “adequar” às normas e chegou a apelar, sem sucesso, a Stálin, para que intermediasse em seu favor.
Quatro anos depois, Mossolov procurou se reabilitar com a União dos Compositores por conta de imbróglios de caráter pessoal, mas não comoveu a nomenklatura e acabou gentil e piedosamente enviado para um gulag no ano seguinte, sendo liberado do degredo em agosto de 1938 por intervenção de seus professores Glière e Miaskóvski, do Conservatório de Moscou, e proibido de fixar-se em Moscou, Kiev e São Petersburgo (então Leningrado) até 1942. Depois disso, dedicou-se a basear suas composições em temas folclóricos turcomenos, tadjiques e quirguizes, bem ao estilo que agradava à “União”.
GRUPO DOS CINCO
A maior simpatia da nomenklatura dirigia-se às obras do Mogutchaya Kutchka, ou Grupo dos Cinco, baseadas na música dos povos russos e conquistados pela Rússia, e de feitura tonal ou modal. O Grupo dos Cinco, vale lembrar, eram: o russo Mily Balakirev (1837–1910), o médico e químico georgiano Aleksandr Borodin (1833–1887), o lituano César Cui (1835–1918) e os militares russos Modest Mussórgski (1839–1881) e Nikolai Rímski-Korsakov (1844–1908) – este, a maior referência em orquestração no século 19, ao lado do francês Hector Berlioz (1803–1869).
Todos os cinco estão enterrados no Cemitério Tikhvin, em São Petersburgo, o mesmo de Dostoiévski e dos companheiros de ofício Anton Rubinstein, Aleksandr Glazunov, Mikhail Glinka e Piotr Tchaikovski. Glinka (1804–1857), tido como o “pai” da música russa, foi o primeiro compositor a construir linhas melódicas russificadas, mantendo a estrutura e o tratamento vocal operístico do bel canto italiano (seguindo a linha de Rossini, Bellini e Donizetti) e sinalizando, assim, um caminho que os cinco retomaram, no embalo do movimento narodista (populista).
A rigor, nenhum membro do grupo pertencia aos narodniks, intelectuais da elite que visavam a mobilizar a classe camponesa contra o regime czarista, na segunda metade do século XIX, aproximando-se e assimilando os costumes desta (experiência fracassada, pela desconfiança e rechaço violento dos camponeses, que serviu para os narodniks se voltarem, dessa vez com sucesso, ao proletariado urbano, preparando o terreno para a revolução de poucas décadas depois).
Mas os cinco contribuíram para disseminar a musicalidade de todos os recantos do Império Russo em suas sinfonias, óperas, peças para piano, canções, sonatas etc. e libertar-se das cartilhas francesas, italianas e alemãs. Apesar de usar fontes russas como inspiração em parte significativa de sua obra, Tchaikovski (1840–1893) foi desprivilegiado com a ascensão do regime comunista por ser um compositor do gosto da burguesia – e, ele próprio, um burguês sustentado por uma patronesse burguesa, Nadejda von Meck (1831–1894).
REALISMO SOCIALISTA
O embate entre futuristas (que defendiam uma radical ruptura com o passado) e tradicionalistas pendeu cada vez mais para o lado destes últimos, à medida que os anos 1920 foram passando e o regime comunista soviético foi adquirindo maior controle da economia, até cessar a Nova Política Econômica de Lênin (1922–1928) e, por tabela, o estímulo artístico via mecenato, que beneficiava todas as vertentes.
Com o Estado financiando exclusivamente a arte, vinham junto as diretrizes que deveriam ser obedecidas – nominadas oficialmente, em 1932, de “realismo socialista” e balizadas, em 1934, por quatro pressupostos, a serem seguidos conjuntamente: foco no trabalhador, no seu universo de vivência, na realidade e na lealdade ao Estado e ao Partido Comunista, ou seja, a arte tinha de ser proletária, típica, figurativa e partisana.
Por isso, o individualismo subjetivista – seja de viés emotivo, como em Tchaikovski e Rachmaninoff, seja abstracionista, como em Scriabin (1872–1915) –, e o experimentalismo futurista foram proscritos sob o rótulo genérico de “formalismo” (utilizado também pelo regime nazista), denegrindo retroativamente a escola literária conhecida por esse termo. Estamos falando de música, mas as artes como um todo, por definição, ficaram sob amarra, já que se encontravam no contexto de um Estado totalitário.
Ao artista se impunha a obrigação de beber nas fontes populares e destinar sua arte ao próprio povo, evitando, ainda por cima, a tragédia e o negativismo (o regime nunca poderia passar uma sugestão emocional ruim). A fuga à cartilha realista rendia a censura governamental e o descrédito, como aconteceu com Chostakovitch após a estreia de suas duas mais aclamadas óperas: O nariz (1930) e Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934) – esta, execrada por quase 30 anos, após artigo publicado no Pravda em 1936, atribuído a Stálin.
JDANOV
A despeito da tirania do líder máximo soviético, nenhuma outra figura, na cultura soviética, deteve tanto poder quanto Andrei Jdanov (1896-1948), que ocupou o comando do soviete supremo (parlamento) da República Soviética da Rússia entre 1938 e 1947 e policiou ferrenhamente a arte produzida no regime stalinista (1924–1953), não poupando de seus caprichos em forma de penalidade sequer os compositores mais conceituados de então: Chostakovitch, Prokofiev e o georgiano (de etnia armênia) Aram Khatchaturian (1903–1978).
Os dois primeiros destacavam-se, inclusive por exaltar os feitos da revolução ou propagados por ela. A Sinfonia n° 11 de Chostakovitch rememora o Domingo Sangrento, de 1905; a n° 7, a invasão de Leningrado pelos alemães em 1941; e a n° 5 foi utilizada como trilha sonora opcional ao célebre filme Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein (1898–1948). Prokofiev limou a violência percussiva de seus concertos para piano e suas primeiras sonatas para piano para produzir música bem mais palatável, nem por isso menos brilhante, como Pedro e o Lobo, o balé Romeu e Julieta, a suíte Tenente Kijé e outras duas obras-primas do cinema épico-bélico, também de Eisenstein: Ivan, o Terrível e Aleksandr Névski.
Jdanov foi o criador do Cominform (órgão liderado pelo Partido Comunista da União Soviética que coordenava os demais partidos dos países filiados ao Pacto de Varsóvia) e dos Congressos de Compositores Progressistas, de cuja segunda edição, em 1948, participaram Cláudio Santoro (1919–1989) e o pianista Arnaldo Estrella (1908–1980), além de Hanns Eisler (1898–1962), principal nome da composição na extinta Alemanha Oriental, autor do hino desse país e parceiro artístico de Bertolt Brecht.
Por pertencer aos quadros do Partido Comunista Brasileiro, Santoro teve a entrada para os Estados Unidos negada e não pôde desfrutar de uma bolsa que havia ganhado da Fundação Guggenheim. Isso o impeliu a ir até Praga, sede do congresso, e tomar parte das discussões sobre o realismo socialista, abrindo mão de fazer o exame de conclusão do curso de regência no Conservatório de Paris. O compositor amazonense voltou ao Brasil motivado pelos resultados e mudou sua ótica artística, vindo a legar peças representativas nesse sentido, como a Sinfonia n° 4 “Da paz” e o Canto de amor e paz, mas enfrentou dificuldades constantes para encontrar emprego, por conta de sua militância política, ao mesmo tempo em que era executado, aplaudido e gravado nos países da Cortina de Ferro.
A mesma recepção foi dada a José Siqueira (1907–1985) em Moscou, quando do autoexílio na União Soviética (por haver sido cassado pelo AI n° 5). Por isso, suas obras mais significativas foram registradas por conjuntos orquestrais e corais soviéticos. E, verdade seja dita, aproveitando-se o ensejo: nunca o regime soviético pensou em extinguir orquestras, bandas e corais em nome da suposta “popularização” das artes ou do remanejamento de gastos. Apenas em países de jecas-tatus se tolhe a cultura musical erudita quando, até nos tempos do despotismo esclarecido do século XVIII, a elite política sabia do poder e do status que ela confere a um povo e a uma civilização.