Kuleshov, por exemplo, via cada plano como um tijolo de uma construção maior. Eisenstein, por outro lado, chamava de “célula da montagem”, ou seja, muito mais do que apenas um simples elemento, era algo vivo, e a junção dos planos promoveria um ponto de vista. Sua técnica ficou conhecida, entre outros nomes, como “montagem dialética”.
Filho de uma família de classe média, e estudante de engenharia, Eisenstein se envolveu com o Exército Vermelho, na guerra civil, e acabou abandonando a faculdade em 1920, até entrar para o teatro engajado, chegando a trabalhar com nomes de peso como Vsevolod Meyerhold, e poucos anos depois começou sua carreira como teórico do cinema e montador de novas versões de filmes estrangeiros para serem exibidos na União Soviética.
Nesse trabalho, o diretor pôde ter contato, em primeira mão e sem qualquer censura, com filmes hollywoodianos clássicos. Acredita-se que ele esteve presente na reedição de filmes como Intolerância, de D. W. Griffith, entre outros. Apesar das mudanças devido à censura (uma delas, por exemplo, foi a remoção por completo do epílogo cristão), o filme teve um impacto enorme não apenas no cinema soviético, como em toda a sociedade. Conta-se que o próprio Lênin queria o cineasta americano como chefe da indústria cinematográfica soviética, e isso não por questões estéticas, mas por perceber que, como o diretor, ele era capaz de transformar um filme em um artefato de agitação política. Griffith acabou sendo uma influência assumida para quase todos os cineastas mais importantes desse período na URSS.
Quando começou a atuar como cineasta, Eisenstein filmou peças de teatro, mas subvertendo a maneira mais usual, já experimentando na edição, desconstruindo a trama, e usando artifícios que davam uma comicidade ao filme, ao que ele chamou de “montagem das atrações”, formulada em parceria com Sergei Yutkevich – enfim, uma provocação ao cinema tradicional.
Mas foi com a montagem dialética – a qual, grosso modo, alterna imagens de duas sequências distintas – que Eisenstein se destacou. Um dos maiores exemplos disso é a famosa cena da Escadaria de Odessa, na quarta parte de seu O Encouraçado Potemkin. Cria-se, inicialmente, uma dialética entre as cenas ensolaradas de pessoas acompanhando e saudando embarcações dos mais diversos tamanhos. Até que essas imagens idílicas são subitamente substituídas por soldados do czar atirando contra pessoas nos degraus.
A primeira imagem, do rosto de uma mulher que perde o equilíbrio, já estabelece o novo tom, o do caos. As pessoas desesperadas descem pela escadaria, enquanto os soldados, enfileirados como uma muralha, seguem atrás. Os planos abertos ser alternam a outros mais fechados de pessoas caindo, desesperadas, tentando se salvar. A dialética de vida e morte se intercala com imagens da população (câmera em movimento tremulante) e de soldados (câmera sempre firme). Até culminar na mãe exasperada com o filho ferido no colo caminhando em direção à guarda, pedindo que não atirem. O episódio, no entanto, terá seu clímax com outra figura materna, que, mortalmente ferida com um tiro, deixa escapar o carrinho de seu bebê, e este desce penosamente degrau por degrau, até tombar no final da escadaria, ao mesmo tempo que uma outra mulher é ferida no rosto.
A escolha da escadaria como cenário, simbolicamente, já vem carregada de significado. Estabelece entre cada uma das pontas (a de cima e a de baixo) uma dinâmica de classe social, de tentativa de ascensão frustrada a balas pelos soldados dos donos do poder. A tensão da alternância das imagens é a materialização formal da mesma tensão entre os estratos da sociedade, transmitindo ao público uma sensação de choque, mas, ao mesmo tempo, fascinação diante do destino trágico de toda uma população. Obviamente, embora isso tudo esteja distante da montagem das atrações, há um princípio unificador entre os dois tipos de edição: uma espécie de hipnose. É impossível desconcentrar e parar de prestar atenção numa cena dessas.
A descontinuidade entre dois planos, algo que no presente está naturalizado, era inovador, e em O Encouraçado Potemkin nos causa até hoje estranhamento e desconforto emocional. Eisenstein acreditava que os filmes deveriam ser construídos por meio de uma série de choques ou conflitos – uma ideia inspirada na dialética hegeliana. Nessa ideia, o cineasta materializa a própria Revolução de 1917, com o embate entre dois opostos: os donos do poder e da propriedade e a classe operária. A síntese seria, ao menos em teoria, a ascensão de um novo estado dos trabalhadores.
A alternância entre planos abertos e fechados de toda a sequência, por exemplo, cristaliza na forma o conteúdo sócio-histórico da dialética da Revolução. Esse é exatamente o tipo de edição que o próprio Griffith não faria, pois chamaria a atenção para a montagem, distraindo o espectador de sua imersão no filme – ou seja, quebraria o efeito da mentira realista do cinema. Eisenstein, por sua vez, não se interessava por essa ilusão, e trabalhou com uma montagem de conflitos, contrapondo contrários de um momento a outro.
REFERÊNCIA E LEGADO
As ideias do russo sobre montagem, conflito e desconforto persistem até hoje. Filmes, até norte-americanos, se inspiram nessa forma para criar conflito. O exemplo mais claro está em Os intocáveis, de Brian De Palma, em que o episódio do carrinho de bebê da escadaria de Odessa é copiado plano a plano. Francis Ford Coppola também se vale de algo bem parecido em seu primeiro O poderoso chefão, intercalando imagens de um batizado com a de diversos assassinatos de inimigos da família de mafiosos protagonistas do filme.
O legado do cinema soviético, no entanto, está longe de perder sua força. “Diretores como Eisenstein ainda terão muito a ‘contar’ não apenas para nós, mas para as gerações futuras. Ainda que ele tivesse apenas sistematizado a teoria da montagem, já seria o suficiente! Ocorre que Eisenstein não é ‘apenas’ um diretor de cinema (não que isso seja pouco). Ele foi um dos grandes mestres universais da arte, um dos maiores teóricos da arte (e não apenas do cinema). Sua erudição e capacidade de reflexão e articulação das ideias de forma profunda e criativa é incomparável dentro de toda a cinematografia (e não apenas da cinematografia russa). Artistas com essas características são inigualáveis e suas obras atravessam séculos, a cada vez que são vistas, lidas e estudadas, mostram novas nuances, ainda que séculos os separem das novas gerações”, explica Neide Jallageas, editora do site brasileiro KinoRuss, e doutora pela USP, onde estudou o cinema de Andrei Tarkovsky.