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As mulheres na literatura fantástica

Tendo como precursora no Brasil Emília Freitas, essa produção, que enfatiza a aventura e o mistério, é hoje realizada de forma independente pelas autoras

TEXTO Eduardo Montenegro

01 de Maio de 2017

"Ao olharmos para as estantes de literatura fantástica nacional, ainda parece existir um vácuo de nomes femininos"

Pintura Reprodução

[conteúdo da ed. 197 | maio 2017]

Emília Freitas era uma escritora rebelde. Nasceu no Ceará, em 1855, e desde os 18 anos passou a publicar contos e poesias nos jornais locais. Ela é a autora de A rainha do ignoto, lançado em 1899, livro que permaneceu praticamente obscuro na história da literatura brasileira, sendo somente impressa uma segunda edição em 1980. Caracterizada pela própria como um “romance psicológico”, a obra de Emília Freitas é considerada a primeira de literatura fantástica do país. Logo nas primeiras páginas, apresenta seu livro quase como um desafio aos escritores brasileiros de sua época, a quem dedica o trabalho: “Ei-la delapidada como um diamante arrancado do seio da terra e oferecido por mão selvagem”.

Ainda que outras obras mais antigas do que A rainha do ignoto possuam elementos do fantástico, tais como Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, é venerável a participação esquecida de Freitas para a construção desse gênero que, ultimamente, cresce em popularidade, especialmente nas redes sociais. No romance, a autora ultrapassa os limites impostos pela cultura sexista da sociedade do Império, desafiando o “papel-lugar” da mulher; em outras palavras, o enredo poderia se encaixar perfeitamente numa história produzida nos tempos atuais. Em seu “clássico escondido”, a rainha é um ser mágico, carregado de doçura e mistério, que viaja pelo Brasil “salvando” mulheres de suas realidades sufocantes e opressoras. A Ilha do Nevoeiro, por fim, é o local onde uma sociedade secreta é formada por essas mulheres resgatadas, que desenvolvem atividades atípicas para seu sexo na época: são advogadas, médicas, engenheiras, donas de si. Portanto, ao contemplar esse livro específico de Emília Freitas, a representatividade da mulher no campo da literatura é um tema de indubitável importância. 

No Brasil, escritores do fantástico já se consagraram no meio, a exemplo de André Vianco, autor de inúmeros livros bem-sucedidos comercialmente; Eduardo Spohr, de A batalha do apocalipse (Versus Editora, 2010), traduzido em outros idiomas; e Raphael Draccon, com sua trilogia Dragões de éter (LeYa, 2011). A própria Lygia Fagundes Telles, autora de clássicos com elementos do fantástico, como Seminários dos ratos (1977), também já se consagrou. Entretanto, ao olharmos para as estantes de literatura fantástica nacional, ainda parece existir um vácuo de nomes femininos. 

Ao questionarmos sobre representatividade, é necessário pensar numa idiossincrasia por parte de dois polos: mercado e autoras. Por exemplo, quando J.K. Rowling terminou seu rascunho de Harry Potter e a pedra filosofal, várias editoras disseram que as pessoas não leriam um livro de fantasia escrito por uma mulher. Eis o motivo da abreviação de seus nomes Joanne Kathleen (este sendo o nome do meio) ao seu sobrenome. 

“No Brasil, o mercado literário é muito fechado para autores nacionais. Mas sinto que muitas coisas estão mudando, o que é gratificante”, explica Bianca Carvalho, da Trilogia das cartas, lançada de forma independente. Sua estreia foi com o primeiro volume da saga, Jardim de escuridão, durante a Bienal do Livro Rio, em 2011. Na edição seguinte do evento, vendeu 600 exemplares do segundo volume, Versos sombrios. “Eu acho que elas estão chegando. De mansinho, mas vão aparecendo. Há muito preconceito ainda, principalmente vindo do público masculino, que, mesmo sabendo que existe uma J. K. Rowling (e muitas outras), ainda torcem um pouco o nariz. Temos muitas coisas publicadas de forma independente, porque algumas editoras fecham as portas. O que falta no mercado brasileiro é mais ousadia”, acrescenta Bianca, em entrevista à Continente.

Carolina Vasconcelos, estudante de Psicologia na Faculdade de Saúde de Pernambuco (FPS), define-se como uma leitora ávida de literatura fantástica, mesmo assim, não lembra ter lido autores nem autoras nacionais. Ela diz que começou a admirar esse gênero na infância, pelos contos de fada. “O melhor é que não tem nenhum ou quase nenhum toque de realidade. Quando você é uma criança e sua realidade não é segura, ou não faz com que você se sinta segura, uma coisa completamente fora dela te ajuda muito”, categoriza a estudante. 

Olhando em retrospecto ao contexto histórico da literatura fantástica no Brasil, vimos que, por muitos séculos, esse gênero era subestimado pelos críticos: é o que aponta a professora doutora Maria Cristina Batalha em entrevista para a revista Desassossego, da USP. A pesquisadora é especialista em literatura fantástica no país, estudando também o Romantismo e Ultrarromantismo. Em entrevista concedida por e-mail à Continente, afirma que – nos dias atuais – o papel da mulher nesse nicho literário vem aumentando, uma vez que “uma retomada do gênero de um modo geral e a sequência de filmes, quadrinhos, livros, no Brasil e no mundo, trouxeram de volta o fantástico e suas variantes (gótico, horror, maravilhoso, fantástico, ficção científica etc.)”. 

“Essa manifestação literária, embora com presença relativamente forte no Romantismo, era tida como ‘não séria’, vinculada à literatura de baixa qualidade ou àquela que era dirigida às mulheres, por gostarem de histórias escabrosas. Por conta disso, era sistematicamente excluída dos espaços de alto valor simbólico, como livros, antologias, currículos escolares”, acrescenta Batalha.

LINHAS NARRATIVAS 
Numa analogia, se na Ilha do Nevoeiro as mulheres reuniam-se numa seita secreta para desenvolverem papéis que, na sociedade real, lhes eram vetados, podemos dizer que a Ilha acontece agora para as autoras do gênero: independentes, muitas vezes recorrem à internet para divulgarem seus trabalhos. 

É interessante notar que muitas escritoras, hoje em dia, fazem seu público dentro do universo do mistério, do terror e do suspense. Kaori (Giz Editora, 2009 e 2011)é uma série de livros escritos pela nissei Giulia Moon, que mistura a cultura vampírica à cultura oriental. Apelidando seus fãs de vamps, Moon é considerada um dos notáveis nomes do mundo vampírico no Brasil: Kaori, personagem principal de sua trama – mesclando o universo do Japão feudal com a atual e caótica Avenida Paulista –, possui também a própria legião de fãs no Facebook: os kaorilovers, com quase 600 membros. A autora afirma que se interessou desde cedo por histórias de fantasia e terror: ela é uma grande fã das Crônicas vampirescas (1976), de Anne Rice. Descobrindo, na internet, um grupo de admiradores da obra de Rice (e do universo dos vampiros em geral), passou a publicar pequenos contos que, segundo ela, vinham com excelentes feedbacks. “Nunca enxerguei como algo excêntrico”, diz a escritora, referindo-se à simbiose de universos diferentes.

A presença feminina é forte nas obras de Moon, seja nos seus primeiros contos publicados na internet (disponível em seu site www.giuliamoon.com.br), seja nas suas criações mais recentes. Ainda que os protagonistas, em alguns casos, sejam homens, a maioria de suas ações é desencadeada por mulheres. Buscando inspiração no seu entorno, mesmo que para fins fantásticos, as personagens de Giulia Moon são reflexos das próprias mulheres da sociedade. “O fato de ser uma escritora, e não um escritor, talvez aguce a minha atenção para o desempenho das mulheres e facilite a compreensão da psique feminina, mas isso acontece de forma natural”, explica. 

No que diz respeito a essa presença de gênero, na referida Trilogia das cartas, a mulher como personagem está presente desde a capa até seu conteúdo. “Eu gosto de escrever sobre e para mulheres. Acredito que cada uma das minhas personagens tenha um pouco de mim, mas nenhuma delas sou eu. Sempre busco criar personagens do zero, pois é um desafio mais gostoso. Porém, todas elas têm a força, a intuição e a delicadeza que todas as mulheres possuem, assim como eu”, acrescenta Bianca Carvalho.

FANTASIA NO REAL
“Usamos a fantasia para abordar temas muito reais, às vezes chegando a extrapolar certos cenários justamente para causar uma reação mais forte no leitor, alertá-lo (como no caso das distopias). Incluir mulheres nas narrativas, tratá-las como protagonistas de suas histórias e reverter tramas tradicionalmente machistas é importante para conscientizar os leitores”, afirma Roberta Spindler, autora de A torre acima do véu (Giz Editora, 2014) e Contos de Meigan (independente, 2011).

Para ela, a literatura fantástica pode ser um incentivo para iniciar – principalmente nos jovens – uma hábito de leitura. Segundo ela, o gênero pode oferecer um atrativo para quem julga literatura algo entediante, especialmente quando o Ensino Médio brasileiro enfatiza a leitura dos clássicos em detrimento do contemporâneo. “Uma mãe me contou que seu filho não costumava ler, mas depois que descobriu A torre acima do véu, por uma indicação em um site de video games, passou a amar livros”, comenta a autora.

Felipe Siciliano se diz ávido leitor de literatura fantástica. Ele conta 400 livros em sua estante, muitos deles dedicados ao gênero. Estudante de Letras no Centro Universitário Moura Lacerda, em Ribeirão Preto (SP), o rapaz de 22 anos conta que iniciou o hábito de leitura desde cedo, “assim que aprendi a ler”. “A literatura fantástica é, ao mesmo tempo, uma fuga da realidade e uma crítica à realidade. É como sair do mundo real, mas, ao mesmo tempo, refletir sobre ele por meio de relações que nem sempre são tão claras. Acredito que representa que não há limites para a criatividade humana”, afirma o estudante. O apreço por esse nicho literário o levou ao apego pelas personagens femininas, especialmente por Luna Lovegood e Hermione Granger, da saga Harry Potter. Para ele, são personagens que somente uma mulher saberia trabalhá-las. “Não que seja uma regra, mas, nas minhas experiências de leitura, acabei me identificando mais com essas personagens que foram exclusivamente criadas por mulheres.”

Se a fantasia, como gênero, se dá na hesitação do leitor em face aos acontecimentos sobrenaturais de uma narrativa – como conceituou Todorov em Introdução à literatura fantástica –, observamos este impulso criativo e psicológico nas autoras aqui referidas. De Emília Freitas, no século XIX, às autoras que hoje encontram repercussão na internet, o que se observa é o desejo de suspensão do real “sufocante” aliado à capacidade de criar cenários e personagens que, num mundo de fantasia, são capazes de colocar essa mesma realidade em xeque. 

 

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