É interessante notar que muitas escritoras, hoje em dia, fazem seu público dentro do universo do mistério, do terror e do suspense. Kaori (Giz Editora, 2009 e 2011)é uma série de livros escritos pela nissei Giulia Moon, que mistura a cultura vampírica à cultura oriental. Apelidando seus fãs de vamps, Moon é considerada um dos notáveis nomes do mundo vampírico no Brasil: Kaori, personagem principal de sua trama – mesclando o universo do Japão feudal com a atual e caótica Avenida Paulista –, possui também a própria legião de fãs no Facebook: os kaorilovers, com quase 600 membros. A autora afirma que se interessou desde cedo por histórias de fantasia e terror: ela é uma grande fã das Crônicas vampirescas (1976), de Anne Rice. Descobrindo, na internet, um grupo de admiradores da obra de Rice (e do universo dos vampiros em geral), passou a publicar pequenos contos que, segundo ela, vinham com excelentes feedbacks. “Nunca enxerguei como algo excêntrico”, diz a escritora, referindo-se à simbiose de universos diferentes.
A presença feminina é forte nas obras de Moon, seja nos seus primeiros contos publicados na internet (disponível em seu site www.giuliamoon.com.br), seja nas suas criações mais recentes. Ainda que os protagonistas, em alguns casos, sejam homens, a maioria de suas ações é desencadeada por mulheres. Buscando inspiração no seu entorno, mesmo que para fins fantásticos, as personagens de Giulia Moon são reflexos das próprias mulheres da sociedade. “O fato de ser uma escritora, e não um escritor, talvez aguce a minha atenção para o desempenho das mulheres e facilite a compreensão da psique feminina, mas isso acontece de forma natural”, explica.
No que diz respeito a essa presença de gênero, na referida Trilogia das cartas, a mulher como personagem está presente desde a capa até seu conteúdo. “Eu gosto de escrever sobre e para mulheres. Acredito que cada uma das minhas personagens tenha um pouco de mim, mas nenhuma delas sou eu. Sempre busco criar personagens do zero, pois é um desafio mais gostoso. Porém, todas elas têm a força, a intuição e a delicadeza que todas as mulheres possuem, assim como eu”, acrescenta Bianca Carvalho.
FANTASIA NO REAL
“Usamos a fantasia para abordar temas muito reais, às vezes chegando a extrapolar certos cenários justamente para causar uma reação mais forte no leitor, alertá-lo (como no caso das distopias). Incluir mulheres nas narrativas, tratá-las como protagonistas de suas histórias e reverter tramas tradicionalmente machistas é importante para conscientizar os leitores”, afirma Roberta Spindler, autora de A torre acima do véu (Giz Editora, 2014) e Contos de Meigan (independente, 2011).
Para ela, a literatura fantástica pode ser um incentivo para iniciar – principalmente nos jovens – uma hábito de leitura. Segundo ela, o gênero pode oferecer um atrativo para quem julga literatura algo entediante, especialmente quando o Ensino Médio brasileiro enfatiza a leitura dos clássicos em detrimento do contemporâneo. “Uma mãe me contou que seu filho não costumava ler, mas depois que descobriu A torre acima do véu, por uma indicação em um site de video games, passou a amar livros”, comenta a autora.
Felipe Siciliano se diz ávido leitor de literatura fantástica. Ele conta 400 livros em sua estante, muitos deles dedicados ao gênero. Estudante de Letras no Centro Universitário Moura Lacerda, em Ribeirão Preto (SP), o rapaz de 22 anos conta que iniciou o hábito de leitura desde cedo, “assim que aprendi a ler”. “A literatura fantástica é, ao mesmo tempo, uma fuga da realidade e uma crítica à realidade. É como sair do mundo real, mas, ao mesmo tempo, refletir sobre ele por meio de relações que nem sempre são tão claras. Acredito que representa que não há limites para a criatividade humana”, afirma o estudante. O apreço por esse nicho literário o levou ao apego pelas personagens femininas, especialmente por Luna Lovegood e Hermione Granger, da saga Harry Potter. Para ele, são personagens que somente uma mulher saberia trabalhá-las. “Não que seja uma regra, mas, nas minhas experiências de leitura, acabei me identificando mais com essas personagens que foram exclusivamente criadas por mulheres.”
Se a fantasia, como gênero, se dá na hesitação do leitor em face aos acontecimentos sobrenaturais de uma narrativa – como conceituou Todorov em Introdução à literatura fantástica –, observamos este impulso criativo e psicológico nas autoras aqui referidas. De Emília Freitas, no século XIX, às autoras que hoje encontram repercussão na internet, o que se observa é o desejo de suspensão do real “sufocante” aliado à capacidade de criar cenários e personagens que, num mundo de fantasia, são capazes de colocar essa mesma realidade em xeque.