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Arte: da vanguarda ao Realismo Socialista

TEXTO Bárbara Buril

01 de Maio de 2017

Pôster de propaganda feito pelo artista plástico russo Rodchenko para a editora do estado soviete, 1924

Pôster de propaganda feito pelo artista plástico russo Rodchenko para a editora do estado soviete, 1924

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 197 | maio 2017]

“Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, era o lema do poeta Vladimir Maiakóvski durante os anos posteriores à Revolução de 1917, que deu fim ao regime czarista na Rússia, com a ascensão do Partido Operário Social-Democrata Russo, mais conhecido como Partido Bolchevique, liderado pelo revolucionário Vladimir Lênin. A expressão de Maiakóvski, que inspirou tantos artistas russos engajados com uma radical mudança do estado de coisas da Rússia naqueles anos iniciais do século passado, nos leva ainda a pensar em questões que ultrapassam barreiras geográficas e temporais: quais são os limites entre arte e política (se é que eles existem)? A política pode dizer qual é o lugar da arte? A arte pode abraçar a política, mais especificamente a política partidária? Uma arte política pode recair em uma estética panfletária?

Certamente, os exemplos que a história das artes visuais na Rússia no início do século XX nos traz não respondem a essas perguntas de maneira categórica. Não nos dizem como a arte e a política devem se relacionar, mas como elas simplesmente se articularam naquele cenário social e político específico, hoje desintegrado. Comemorados neste ano de 2017, os 100 anos da Revolução de 1917 eram esperados por Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética, com uma grande comemoração oficial – algo que não se concretizou. Em 25 de dezembro de 1991, Gorbachev anuncia, em rede nacional, o fim da União Soviética. Durante esses 69 anos de socialismo como política de estado, as artes visuais e decorativas foram do auge ao eclipse.

Artistas visuais como Kazimir Malevich, Vladimir Tatlin, Aleksandr Rodchenko, Natalia Goncharova e Mikhail Larionov, embora não fossem exatamente revolucionários do Partido Bolchevique, acreditavam que a arte deveria acompanhar as mudanças revolucionárias que se davam na Rússia. “Mesmo antes da Revolução Russa, este círculo de artistas acreditava que a arte iria transformar o mundo. A Rússia foi um dos primeiros lugares a abraçar a arte moderna e esta arte moderna realmente acreditava que poderia mudar o mundo. Estes artistas achavam que a estética e a arte teriam um efeito tal, que poderiam transformar o observador e, por sua vez, o mundo”, explica Erika Zerwes, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora da dissertação de mestrado A fotografia eloquente: arte e política em Aleksandr Rodchenko

A atuação política da maior parte desses artistas, como aponta Zerwes, não se daria por meio de armas, mas pela arte. Muitos deles participavam de comícios, no entanto. É importante ressaltar que, antes mesmo da Revolução Russa, também conhecida como Revolução de Outubro, os artistas visuais na Rússia czarista já estavam completamente imersos nos paradigmas estéticos modernos, participavam de grupos de artistas e faziam o que já se chamava, na Europa, de arte de vanguarda. 

Embora esses artistas não tivessem como preocupação principal uma abordagem estética da revolução e nem atuassem como revolucionários diretamente engajados com as ideias bolcheviques, eles recebiam a revolução com muito entusiasmo. Eram, em suma, modernistas que ansiavam por mudanças em um país de dimensões continentais ainda imerso em uma espécie de feudo absolutista, regido pelo czar Nicolau II. Como aponta o historiador da arte John Bowlt, no livro Russian art of the avant-garde: theory and criticism (em tradução livre para o português, Arte russa de vanguarda: teoria e crítica), antes da revolução, já existia uma espécie de espírito revolucionário e anarquista que inspirava as atitudes dos artistas naquela época pré-revolucionária.

Os artistas Mikail Larionov e Natalia Goncharova, por exemplo, escandalizavam o público ao andarem por lugares requintados em Moscou com os corpos e rostos pintados. Malevich publica, no jornal Anajiia em 1918, 18 declarações incitando os artistas a apoiarem um novo estilo de vida trazido pela revolução. Rodchenko pinta uma série de quadros pretos sobre preto. Ivan Puni declara, em um panfleto distribuído na exposição 0.10, em 1915, em Petrogrado, que “2 x 2 é qualquer coisa menos quatro”. Para Bowlt, portanto, já existia uma espécie de tendência à anarquia e à revolução entre os artistas da Rússia pré e pós-revolucionária. O que era novo significava modernização e poderia trazer o tão esperado ambiente democrático que a Rússia czarista já não oferecia.

De modo geral, foi com o sentimento de boas-vindas entre os artistas que os bolcheviques assumiram o poder. Entre eles, no entanto, havia fortes divergências, quando se tratava de como a arte deveria ser realizada naquele momento. Embora, tradicionalmente, críticos e historiadores buscassem reunir todos esses artistas sob o denominador comum de “vanguardas russas”, havia relevantes diferenças entre eles, que se traduziam frequentemente em conflitos abertos. “A história dos manifestos dos vanguardistas russos (assim como de suas exposições) é uma história de constante contradição, paradoxo e aniquilação mútua”, escreve John Bowlt, no ensaio Agentes de la anarquía (em português, Agentes da anarquia), que integra o catálogo da exposição Vanguardias rusas, que aconteceu em 2006, no Museu Thyssen-Bornemisza, em Madri. 

SUPREMATISMO X CONSTRUTIVISMO
Como aponta Bowlt, as vanguardas russas iam desde o nadismo ou niilismo até o raionismo, o Futurismo e o Expressionismo. O Construtivismo e o Suprematismo também eram correntes de vanguarda, que ficaram mais conhecidas por terem se desenvolvido na Rússia de forma pioneira. O Suprematismo, representado por Malevich, por exemplo, não só tinha como prioridade a forma geométrica pura como também tinha especificamente o quadrado como base de seu pensamento formal, em uma oposição aberta à arte figurativa. O quadrado seria a semente de todas as possibilidades, a forma básica do suprematismo. 

Como escreveu Malevich, no manifesto Do Cubismo e do Futurismo ao suprematismo: o novo realismo na pintura, de 1915: “Mas eu me transformei no zero da forma e a partir do zero eu atingi a criação, ou seja, o suprematismo, o novo realismo pintado – criação não objetiva. (…) Na arte do suprematismo, formas irão viver, como todas as formas vivas da natureza. Estas formas anunciam que o homem atingiu o seu equilíbrio”. No entanto, é preciso ressaltar que, provavelmente ao contrário do que desejava Malevich, não havia tantos artistas engajados com o suprematismo, bastante rigoroso nas suas premissas.

“Embora Malevich tivesse seus seguidores e ainda que em 1916 tenha se organizado o grupo Supremus (do qual fazia parte Popova, Rozanova, Kliun, Udaltsova, Menkov, Pestel, Davydova, Puni), entre seus integrantes praticamente não havia autênticos suprematistas”, escreve a pesquisadora Tatiana Goriacheva, do Departamento de Artes Gráficas do Século XX da Galeria State Tretyakov, no ensaio Suprematismo y constructivismo: paralelismos y entrecruzamientos (em português, Suprematismo e construtivismo: paralelismos e entrecruzamentos). Goriacheva também aponta que, para alguns artistas, o suprematismo foi mais uma espécie de inspiração para a própria formação do que propriamente um manual para a ação. 

Dessa maneira, muitos artistas acabavam adotando escolhas estéticas mais livres, não tão presas ao rigor do suprematismo de Malevich. O construcionismo de Vladimir Tatlin, que se desenvolveu simultaneamente ao suprematismo, acabou recebendo aqueles artistas que queriam converter os planos de cor suprematista em construções geométricas, em monólitos ou em formas que tendiam à tridimensionalidade, como concebia Tatlin. Mas, como mostra Goriacheva, o grupo de seguidores de Tatlin era tão instável como o de Malevich.

As diferenças entre Malevich e Tatlin e Rodchenko, estes dois últimos do Construtivismo, se traduziam em conflitos que iam mais além do terreno profissional. Não só Malevich não hesitava em criticar fortemente a racionalidade e o espírito utilitário do construtivismo como, depois da Revolução de 1917, houve um choque na vida cotidiana entre Malevich e Rodchenko, de modo que a aquisição de obras, a influência da imprensa e a concessão de tarefas para ambos se viram afetadas diante da rivalidade entre eles. No entanto, como enfatiza a pesquisadora Erika Zerwes, “apesar dos conflitos, todos eles conviviam e eram, de um modo geral, a favor da revolução”. 

O AUGE
Assim, apesar dos conflitos entre alguns suprematistas e construtivistas, é importante ressaltar que foi logo após a Revolução Russa que a arte de vanguarda mais se desenvolveu. “Desde o primeiro momento depois da revolução, deu-se muita atenção às artes. Nos primeiros 12 meses, Lênin promulgou mais de 200 decretos em relação à arte e escolheu uma pessoa fundamental para ser comissário de arte, o Anatóli Lunatchárski”, explica Erika Zerwes. 

Lunatchárski, que tinha um conhecimento muito amplo sobre arte, transitava pelos artistas e estimulava, através de políticas públicas articuladas, o florescimento da arte moderna na União Soviética. Incentivou a formação de grupos de artistas semi-independentes, como o Proletkult (em português, “cultura proletária”), que incentivava a produção de uma literatura de cunho social e político acessível ao povo, projetando artistas como Mikhail Gerasimov e Vladimir Maiakóvski. A política do Comissariado Popular de Instrução, gerenciado por Lunachárski, era que a arte deveria se basear nos valores do povo e servir ao crescimento espiritual deste.

É assim que surge, então, um poderoso complexo de propagandas. As artes gráficas assumem a nova linguagem política e começam a construir a ideia de um “Novo Homem Soviético”: sendo operário ou campesino, teria uma família feliz, as necessidades básicas atendidas e uma confiança irreparável no destino trazido pela revolução. Um complexo de propaganda lançado pelo Comissariado Popular de Instrução buscava – através da escultura, arquitetura, pintura, artes gráficas, porcelana, móveis, entre outras linguagens – realizar uma extensa propaganda artístico-comunista, recorrendo a temas como símbolos do comunismo, desfiles, fábricas, campesinos trabalhando na lavoura, carroças e danças. 

Os cartazes ornavam a cidade, quando havia festividades políticas, como o aniversário de Revolução de Outubro. Certamente, se a União Soviética ainda existisse como nos seus primeiros anos, o cartaz de 2017 seria cuidadosamente preparado por algum dos artistas mais brilhantes de lá. Quem sabe, um seguidor de Rodchenko. Foi este, aliás, quem criou os cartazes mais impactantes dos primeiros anos da revolução, como o anúncio publicitário para a seção da imprensa estatal de Leningrado, intitulado Livros, ou os cartazes de propaganda sobre a aviação russa. 

O juramento de Rudolf Frents, Levanta a produção! e Aliança entre o campo e a cidade, de Artur Kletenberg, todos de 1924, são cartazes políticos que se destacaram nas produções gráficas da época, pela inventividade estética no uso de cores e formas geométricas e, de alguma maneira, por serem cartazes políticos que, embora defendam uma determinada ideologia, não recaem em um mero panfleto.

DECADÊNCIA
As artes visuais e decorativas das primeiras décadas da União Soviética entram em crepúsculo quando Josef Stálin assume o poder em 1922, após seu afastamento por um problema de saúde. “Em 1930, Stálin fez um decreto proibindo os diferentes grupos de arte, juntando todos em um único movimento, chamado Realismo Socialista”, detalha a pesquisadora Erika Zerwes. Ela também conta que Rodchenko, por exemplo, conhecido por suas fotografias e cartazes vanguardistas, passa a fazer fotojornalismo durante o stalinismo, registrando os grandes empreendimentos lançados pelo então ditador soviético. 

As vanguardas artísticas passaram a ser criticadas, então, como correntes de orientação estética burguesa. O Realismo Socialista, representado de maneira emblemática nas pinturas de Alexander Gerasimov e Isaak Brodski, nas quais Stálin se torna o centro ao redor do qual gira a vida política na União Soviética, encerra a produtividade inventiva das duas primeiras décadas do século passado naquele país. 

Não é impróprio afirmar que a experimentação estética perde importância, então, quando o que interessa é ser evidente e óbvio na abordagem temática – em uma subestimação intelectual e artística de um povo já habituado com as subversões de um Malevich, Tatlin ou Rodchenko. É com Stálin, então, que o declínio político e estético da União Soviética se realiza. 

 

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