CONTINENTE As motivações de Joaquim no seu filme são pessoais.
MARCELO GOMES Nosso personagem, Joaquim, tinha de ser contemporâneo. E o que é a contemporaneidade? É a contradição. A gente é cheio de contradição. Quer ganhar dinheiro, ser feliz e casar com alguém que a gente ama. E era o que ele queria. E por isso ele trai. E por isso ele engana. Porque o ouro também traz isso, a ganância. Às vezes, as pessoas perguntam: “Esse filme é sobre Joaquim?”. É. “Mas como as pessoas no Festival de Berlim vão entender?” Gente, este filme é sobre traição, ganância e um amor impossível, as pessoas vão entender.
CONTINENTE E é sobre a colonização, que os europeus deveriam entender.
MARCELO GOMES Sim, porque todas as colonizações foram cruéis: a espanhola, a portuguesa, a inglesa, a francesa, a alemã. Todas foram cruéis. Nenhuma delas chegou a um país e falou: “Vamos entender a língua dessas pessoas. Vamos entender o jeito delas. E vamos construir uma junção de culturas”. Eles impuseram a cultura, a língua, a religião e exploraram a terra ao máximo.
CONTINENTE O Recife teve outra colonização além da portuguesa – a holandesa –, da qual muita gente tem saudade. O que pensa disso?
MARCELO GOMES Nossa, os holandeses saíram do Brasil e foram colonizar a África do Sul – e olha o que eles fizeram lá. Agora, quando uma pessoa fala: “Ah, os holandeses poderiam ser melhores que os portugueses”, ela está sendo colonizadora. Esse é o problema, a gente ainda não completou esse processo de descolonização. E isso está em Joaquim, quando ele fala: “Eu sou português também”, por ser filho de um. Vai ser um português de segunda classe sempre!
CONTINENTE Um jornalista português veio me dizer que tinha achado o filme interessante, mas que não concordava com a visão de que Portugal era culpada pela corrupção do Brasil, porque corrupção é uma coisa humana. Ele não entendia que a corrupção sistêmica era, sim, culpa de Portugal.
MARCELO GOMES Mas lógico, gente! É só ver a quantidade de escândalos de corrupção que tem em Portugal e na Espanha! É engraçado, porque pensei, em relação aos meus amigos portugueses que trabalham no filme: “Nossa, estou mostrando algo que acho que os cinemas português e brasileiro nunca mostraram, que é a crueldade da colonização”. Muita gente achou que não, que os portugueses não iam ligar. Na coletiva, veio um português dizer que o filme iria causar polêmica em Portugal porque eles acham que os portugueses foram bacanas no Brasil. Ninguém foi bacana, gente. O capitalismo não podia ser bacana. O capitalismo foi lá para explorar a riqueza. Vá às igrejas de Portugal e veja se foi bacana levar aquele ouro todo à custa de trabalho escravo. Então, estou muito feliz de causar uma polêmica grande em Portugal, porque é mais do que necessário. E eu espero causar outra no Brasil, porque acho que a gente tem de acabar com esse Fla x Flu que está se vivendo no Brasil. Está na hora de discutir política de uma forma profunda e consistente. Chega de discussões superficiais. Parece um bando de crianças. Vamos discutir questões primordiais do país, refletir sobre o presente compreendendo o passado e sinalizando o futuro. Senão não vai dar certo.
CONTINENTE E achar pontos em comum, não?
MARCELO GOMES Sim. Mas eu acho que também tem uma questão muito dura: há pessoas no Brasil que não querem dividir seus privilégios. É de um egoísmo – e é um egoísmo que Joaquim tem. Ele planeja tudo para não dividir privilégios. E isso é cruel no Brasil. O brasileiro quer deixar os privilégios na mão de 35 milhões, mantendo 165 milhões desprovidos de privilégios. Isso não pode. Enquanto a gente tiver esse pensamento colonizador…
CONTINENTE Por que você acha que o cinema brasileiro não olha tanto para o passado?
MARCELO GOMES Fico pensando primeiro no orçamento. Segundo, a dificuldade de construir um filme histórico que fuja desse “drama da BBC”, com direção de arte magnífica, um figurino que não deixa a pessoa falar e aquele passado asséptico, limpo. Fizemos um filme na raça, com pouco orçamento. Neste momento de crises política, e também existencial, porque vêm juntas, ou seja, “quem somos nós?”, “que país é este?”, “que nação estamos construindo?”, temos de voltar para a história. O cinema tem uma responsabilidade muito grande de fazer filmes históricos. Fico feliz que Vazante, da Daniela Thomas, que se passa quase na mesma época de Joaquim, está aí, que a Laís Bodansky vai fazer filme sobre D. Pedro 1º. Acho que é muito sintomático, neste momento de crise, a gente voltar para o passado.