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Os 100 anos d’Ella

Neste mês, é lembrado o nascimento da Primeira-Dama da Canção, Ella Fitzgerald, que ajudou a transformar o gênero em sofisticado produto cultural

TEXTO Débora Nascimento

01 de Abril de 2017

A cantora manteve impressionantes seis décadas de carreira ininterrupta, influenciando gerações de intérpretes

A cantora manteve impressionantes seis décadas de carreira ininterrupta, influenciando gerações de intérpretes

Foto Herman Leonard/reprodução

[conteúdo da ed. 196 | abril 2017]

O Festival de Jazz de Montreux consolidou-se como evento, em sua terceira edição, quando a programação foi encerrada com a performance dos dois maiores cantores norte-americanos em atividade, Frank Sinatra, no Auditório Stravinski, e Ella Fitzgerald, no Cassino Kursaal. Numa surpreendente coincidência, ambos inseriram em seus repertórios músicas dos Beatles. Ele, Something, Ella, Hey, Jude. Àquela altura, em 1969, o rock já tinha deixado de ser encarado como um gênero menor ou uma moda passageira, e havia conquistado respeito, principalmente depois do lançamento da obra-prima Sgt. Pepper`s (1967). Enquanto Sinatra fez uma versão pomposa da composição de George Harrisson, Ella – acompanhada de Tommy Flanagan (piano), Frank De La Rosa (baixo) e Ed Thigpen (bateria) – realizou uma vigorosa versão jazzística da canção de Paul McCartney e ainda interpretou um cover explosivo de Sunshine of your love, lançada naquele ano pelo power trio britânico Cream. Da metade para o final da interpretação, a cantora explora gritos rascantes, dois meses antes de Janis Joplin estremecer o Festival de Woodstock.

Quando Ella pôs essas duas músicas dentro do festival que ela contribuiu para solidificar como templo do jazz, isso antes de o evento escalar grupos de rock, a artista já contava mais de 30 anos de profissão. A vitoriosa trajetória musical lhe dava segurança para ousar tantas vezes e manter-se afinada com os novos tempos. Era não somente a mais popular e renomada cantora de jazz, mas tinha se tornado a maior diva da música norte-americana, apontada como a Primeira-Dama da Canção. Aquele 1969, em Montreux, só atestava a brilhante primeira metade da sua carreira de inacreditáveis seis décadas – inacreditáveis, quando se leva em consideração que, nos anos 1950, grandes estrelas do jazz, como Charlie Parker (1920-1955) e Billie Holiday (1915-1959), já tinham abandonado a estrada.

O cenário jazzístico, quando Ella começou, possuía algumas raras cantoras… e Billie Holiday. A interpretação de Lady Day, sua mais forte concorrente no gênero, era mais introspectiva e sofrida, exalava um clima noturno e depressivo. Ella, com seu timbre, que muitas vezes se assemelhava ao de uma garota, esbanjava uma outra vibração, mais positiva e alegre, mesmo quando cantava sobre a infelicidade no amor. “A alegria é uma forma de sabedoria: toda alegria é sábia, mas nem toda sabedoria é alegre, e, se uma já é difícil, imagine-se a outra. Alegria e sabedoria se cruzam, imprevistamente, na voz dessa mulher, capaz de fazer qualquer um feliz, ou, pelo menos, mais feliz, se não mais sábio”, disse Arthur Nestrovski, em sua nota sobre Ella Fitzgerald publicada no livro Notas musicais: do barroco ao jazz (2000).

DESPERTAR PARA MÚSICA
Com sobrenome oriundo dos seus antepassados escravizados, herdado dos senhores escravocratas, Ella Jane Fitzgerald nasceu em Newport News, Virgínia, em 25 de abril de 1917. O pai, nunca conheceu. A mãe, Temperance Williams Fitzgerald, trabalhava numa lavanderia e casou-se com um português que vivia desempregado. Em plena Grande Depressão, Ella, aos 12 anos, conseguia algumas moedas como mensageira de uma casa de jogos. Sua função era avisar aos jogadores quando a polícia estivesse por perto. Chegou a ser detida por isso. Com a morte precoce de sua mãe, em 1932, passou a morar com uma tia no Harlem, em Nova York. Foi lá, cercada por um ambiente de blues e jazz, que despertou para a música.

Ella morou, por um breve período, num reformatório para garotas, onde os oficiais costumavam bater nas jovens. Mesmo com as intempéries, sempre teve o ideal de vencer na vida. “Um dia, eu vou fazer alguma coisa importante de mim”, dizia. Com o sonho de ser dançarina, participou, aos 17 anos, do concurso de talentos Harlem Amateur Hour, no mítico Teatro Apollo. Antes dela, duas irmãs se saíram muito bem numa coreografia. Ela, então, considerou que não conseguiria tantos aplausos. Preferiu cantar. Além de levar o prêmio de 10 dólares, conquistou um maior: foi assistida pelo baterista Chick Webb, que estava na plateia.

Impressionado com o talento e carisma da jovem malvestida e desajeitada, e com a incrível recepção do público, o jazzista quis contratá-la. Reza a lenda, que ele a adotou para que ela, menor de idade e órfã, pudesse se apresentar em casas noturnas e também excursionar. Na orquestra de Webb, Ella passou a ter contato com a nata do jazz, incluindo músicos como Benny Carter, Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, com alguns dos quais trabalharia ao longo de sua carreira.

Entre 1935 e 1955, gravou para Decca Records. Dentre os registros, A-tisket A-tasket, que virou um hit e transformou Ella Fitzgerald, aos 21 anos, em nome nacional. A cantora vivia o auge do swing, das big bands. Em 1939, cinco anos depois de ingressar no grupo de Chick Webb, um choque, seu amigo falecia precocemente, aos 34 anos. Então, o conjunto passou a ser chamado Ella Fitzgerald and Her Famous Orchestra, até que, em 1941, resolveu seguir sozinha sua carreira.

Em 1946, em turnê com a banda de Dizzy Gillespie, apaixonou-se pelo contrabaixista Ray Brown, com quem ficou casada entre 1948 e 1953 – um dos seus três breves casamentos. Foi através de Ray que conheceu Norman Granz, que se transformou em seu fiel empresário. Como agente, ele tinha o objetivo de transformá-la numa estrela internacional.

STATUS DE ARTE
Ao sair da Decca, Ella Fitzgerald foi a primeira contratada da Verve. Pela gravadora, fundada por Granz, lançou sofisticados discos que catapultaram sua fama, valorizaram o papel dos compositores, elevaram o status do jazz e enalteceram o álbum como produto artístico conceitual. A aclamada série Song books, lançada entre 1956 e 1964, teve tributos a Cole Porter, Rodgers and Hart, Duke Ellington, Irving Berlin, Harold Arlen, Jerome Kern e Johnny Mercer, George e Ira Gershwin.

“Foi Fitzgerald quem, praticamente sozinha, elevou a canção popular americana ao status de arte, na tradição do bel canto italiano (técnica vocal originária da ópera) e do lieder alemão (cancioneiro romântico alemão). No processo, ajudou a definir o jazz como ‘a música clássica americana’. Ela foi o foco do orgulho de uma nação sobre sua arte nativa”, analisou Richard Harrington, crítico do Washington Post.

“Nunca soube quão boas eram nossas canções, até que ouvi Ella Fitzgerald cantá-las”, observou Ira Gershwin. O compositor norte-americano estava se referindo a composições que eram clássicos da música norte-americana como The man I love, Embraceable you,Our love is here to stay, que, por si só, já poderiam colaborar para o sucesso das gravações. No entanto, independentemente da qualidade de uma canção, Ella sabia dar relevância, como fez com Flying home, que se transformou num clássico devido ao scat singing. Outro exemplo é o seu primeiro hit, A-tisket A-tasket, que possivelmente com outro intérprete não alcançaria a mesma repercussão.

De sua extensa discografia, além da série Song books, destacam-se os álbuns Ella and Louis (Verve, 1956), Like someone in love (Verve, 1957), Mack the knife: The complete Ella in Berlin (Verve, 1960), The intimate Ella (Verve, 1960), Ella and Basie: on the sunny side of the street (Verve, 1963), Ella Fitzgerald: 75th-Birthday Celebration (Decca Jazz), Pure Ella (Decca Jazz, com gravações da década de 1950).

O sucesso da artista no showbusiness e no mercado fonográfico, onde vendeu 40 milhões de discos, fez surgir uma torrente de diversas cantoras de jazz, fossem brancas ou negras. As gravadoras passaram a investir em intérpretes, como Betty Carter, Lena Horne, Shirley Horn, Abbey Lincoln, Lavern Baker, Helen Forrest, Vera Lynn, Helen Mirrell.

Quando o bebop passou a ocupar o espaço do swing, das big bands, Ella, já experiente, fez uma transição na forma de cantar, mais ritmada e cheia de nuances, transformando-se numa acrobata vocal, com infinitas improvisações melódicas. Com sua extensão vocal de quase três oitavas, podia soar, inclusive, como um sax, um clarinete ou um trompete. Sua imprevisível forma de interpretar passou a inspirar diversos cantores em seu país e ao redor do mundo. No Brasil, Elis Regina foi um bom exemplo – até houve um período em que pedia para ser chamada de Élis.

No entanto, Ella chegou a ser apontada como uma intérprete sem a alma do blues – em outras palavras, sem a emoção provocada pelo sofrimento –, pois, de alguma forma, parecia não mergulhar fundo na tristeza, como se nunca tivesse sofrido na vida, embora uma de suas angústias fosse sua própria aparência. “Sempre tento pensar que eu vou ser feliz. Olho para mim e digo, Ella, ‘você pode se livrar desse peso e ser igual à fulana ou beltrana’, mas há vezes em que fico muito consciente, com muita vergonha e sinto pena de mim mesma. Sei que isso é errado”, revelou, certa vez. Os amigos, mesmo os mais próximos, diziam que ela não costumava reclamar das coisas ruins da vida.

Ella parecia querer trazer sempre uma ponta de esperança a tudo que cantava, mesmo quando era algo como uma de suas interpretações magistrais, Something to live for, a primeira parceria entre Duke Ellington e Billy Strayhorn, cuja letra parecia ter sido escrita para ela. “I want something to live for/ Someone to make my life an adventurous dream/ Oh, what wouldn’t I give for/ Someone who’d take my life/ And make it seem gay as they say it ought to be.” (“Eu quero algo pelo que viver/ Alguém para fazer da minha vida um sonho aventureiro/ Oh, o que eu não daria por/ Alguém que pegasse minha vida/ E a fizesse alegre como dizem que deveria ser”).

Embora o registro dessa música em disco seja sublime, a performance ao vivo, principalmente no show com Duke e sua orquestra, em 1966, em Estocolmo, é absolutamente irretocável e emocionante. Lançado apenas em 1984, esse registro mostra a versatilidade de sua performance, desde Wives and lovers ao balanço de Só danço samba, cantada em irresistível português macarrônico. A propósito, Antônio Carlos Jobim foi um dos compositores que mereceram um álbum inteiro na voz de Ella Fitzgerald. A artista sempre cantava suas músicas em shows e em outros discos, como O amor em paz (Once I loved), no álbum com o violonista Joe Pass, Take love easy, de 1983.

BRASIL
Dois anos antes do show da bossa nova no Carnegie Hall, Ella Fitzgerald veio ao Brasil pela primeira vez, em abril de 1960, e se apresentou com sua banda em São Paulo, no Teatro Record, e no Rio, no Copacabana Palace – na capital carioca ainda cantou em um show beneficente no Maracanãzinho, no dia 30, em prol das vítimas das enchentes do Nordeste. Após sua morte, em 1996, foi descoberta e divulgada sua secreta generosidade, ela fazia doações a orfanatos e financiou o estudo de várias crianças em seu país.

Na segunda turnê no Brasil, em 1971, cantou em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. No repertório, Girl from Ipanema, O nosso amor, Tá chegando a hora, Água de beber e Mas que nada – a estrela ficou fascinada pelas músicas de Jorge Ben e Ivan Lins, e, em entrevista coletiva, elogiou os compositores. De volta aos Estados Unidos, gravou Madalena. Em 1981, lançou o álbum Ella abraça Jobim, com 19 versões em inglês de canções do pianista brasileiro.

Sempre acompanhada pelos melhores músicos norte-americanos, Ella também era considerada um deles. “O melhor ouvido de qualquer cantor”, disse Mel Tormé sobre a vencedora de 13 Grammys de Melhor Performance Vocal entre 1958 e 1990. Numa entrevista a André Previn, Ella mencionou: “Bem, como você sabe, eu não sou instrumentista…”. Sentado em frente a ela, o pianista e compositor a interrompeu, erguendo suavemente a mão direita em sinal de “pare” e disse: “Você quer brigar comigo? Conheço algumas pessoas que trocariam de lugar com você”.

Tanto seu célebre scat singing quanto os duetos com os músicos, em que desafiava repetir com a voz as notas que os instrumentistas de sopro tocavam de improviso, eram amostras de sua habilidade musical. Além, claro, das versões dos standards, como a já citada Wives and lovers, de Burt Bacharach e Hal David, que ela conseguiu transformar praticamente em outra canção.

TIMIDEZ
Quem via Ella Fitzgerald dominar qualquer plateia, não desconfiava que habitava nela um ser absolutamente tímido e avesso a holofotes, que evitava eventos sociais e entrevistas. Sua casa em Beverly Hills era frequentada apenas por familiares e poucos amigos – músicos que a acompanhavam e cantoras como Carmen McRae, Sarah Vaughan e Peggy Lee. “Não é fácil para mim ficar de frente a uma multidão. Isso costumava me incomodar muito, mas entendi que Deus me deu esse talento para usar. Então, simplesmente fico lá e canto”.

Atrelada à timidez, Ella seguiu na contramão do estilo de vida de muitos jazzistas e celebridades, não bebia, não se drogava, não se envolvia em escândalos. Talvez por isso tenha conseguido manter sua carreira por quase 60 anos. Mesmo idosa, perdeu pouco de sua capacidade vocal e, apesar dos problemas decorrentes da diabetes, continuou trabalhando. Em 1985, teve um edema pulmonar, e, no ano seguinte, implantou a primeira de cinco pontes de safena. Em 1991, realizou, sentada, seu último show. Foi, mais uma vez, ovacionada. “Ela ainda pode ser uma trombeta humana exuberante”, escreveu o crítico Jon Pareles, no New York Times. Por causa da doença, perdeu totalmente a visão e, dois anos depois, duas pernas abaixo do joelho. Em 15 de junho 1996, morria, aos 79 anos.

Ella tinha um costume de usar sempre um lenço para enxugar o constante suor do rosto, estalar os dedos da mão esquerda para marcar o ritmo da música, deixar escapar uma risada sapeca no final das interpretações mais animadas e agradecer bastante os aplausos da plateia. “Thank you, ladies and gentlemen”, repetia com delicadeza. Seu senso de gratidão nunca a permitiu que deixasse de mencionar a importância de Chick Webb em sua vida. Uma artista única.

“Ella é o miau do gato, o fino de cantora e mulher. Nos encanta há mais de meio século, com sua voz de garotinha atrevida, sua versatilidade musical, da balada tradicional, do jazz ao bebop. Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Sarah Vaughan fizeram mais pelo bom conceito, a afeição, o talento e a humanidade dos negros do que mil Malcom Xs”, escreveu Paulo Francis, n’O Estado de São Paulo, em 6 de junho de 1993. O cantor Tony Bennett sentenciou: “Nunca houve alguém como Ella, não havia ninguém que chegasse perto dela”. 

 

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