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Duas décadas sem o poeta da beat generation

Junto com Jack Kerouak e William S. Bourroughs, Allen Ginsberg formou a “divina trindade da literatura beat”, que contribuiu para a abertura das mentes de jovens de todo o mundo

TEXTO Fabiano Calixto

01 de Abril de 2017

O poeta Allen Ginsberg

O poeta Allen Ginsberg

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 196 | abril 2017]

“Eu vi as melhores
cabeças da minha geração destruídas pela loucura, famintos, histéricos, nus, se arrastando pelas quebradas da cidade na alta madrugada em busca de algum trago brutal.” Estes são os versos iniciais de um dos poemas mais populares do século XX: Uivo, de Allen Ginsberg, poeta norte-americano cuja morte completa duas décadas neste abril.

Ginsberg foi um dos grandes expoentes da beat generation e da contracultura do século que passou. Seu livro Howl and other poems (1956) forma, junto com On the road (1957), de Jack Kerouac, e Naked lunch (1959), de William S. Burroughs, a divina trindade da literatura beat (à qual podemos também adicionar o disco The times they are a-changin’, clássico de Bob Dylan de 1964), obras que influenciariam rebeliões poético-existenciais da juventude por todo o planeta nas décadas de 1950, 1960 e 1970, principalmente. Sendo um dos momentos mais extraordinários da arte no século XX, a beat generation misturou, em seu grande drinque existencial, doses fortes do romantismo, do simbolismo, do surrealismo, de Whitman, de Rimbaud, da filosofia oriental, do jazz. Junto a esse repertório, injetou também na circulação sanguínea a experiência de expansão da mente através da fruição de drogas, a liberdade sexual, abrindo sendas luminosas para que a juventude rebelde e insatisfeita com os rumos do mundo capitalista propusesse novos modos de vida naqueles conturbados tempos de Guerra Fria. A contracultura era a floração bonita de uma arte explosiva e afetuosa, poética e política, momento mágico do horizonte utópico, quando a poesia se torna a vida.

Integrante central do movimento e um dos maiores artistas do seu tempo, Ginsberg – poeta libertário, inquieto, experimental, cuja escrita, de alta voltagem, revolucionária no fundo e na forma, na qual o principal combustível era a vida – abriu lugares respiráveis no meio da imensa ruína que se tornou a civilização moderna. Suas preocupações políticas eram atentas e intensas – chegou a falar, numa entrevista de 1994, sobre os problemas da hipertecnologia que, já àquela época, estava consumindo o planeta e destruindo as possibilidades humanas.

O poeta nasceu em Newark, Nova Jersey, em 3 de junho de 1926, e morreu no dia 5 de abril de 1997, em Manhattan, Nova York. Deixou uma das bibliografias mais poderosas do século XX, além do já citado Howl and other poems (1956), publicou os essenciais Kaddish and other poems (1961), Reality sandwiches (1963), The fall of America – Poems of these states (1973), entre outros. Sob o influxo de Whitman, do jazz e da prosa bop de Kerouac, criou, com seus poemas, um fulcro de resistência, acendendo novas possibilidades de escrita inventiva, através de um ritmo alucinado e caminhos sintáticos enviesados que abriam grandes portais de dizeres diretos, como palavras de fogo em cartazes numa imensa manifestação, demonstrando a sua inabalável ética. Uma poesia de todo antípoda da poesia departamental em que imperava o beletrismo e seu vasto vestuário moral, poemas moralizantes travestidos de “formalmente bem-resolvidos” com suas burocracias ruminantes, flertes baratos e flores de plástico.

A poesia, portanto, era o espelho daquela sociedade de plástico que se construíra sob os pilotis do american way of life. É nesse contexto que a poesia de Ginsberg surge. E surge assumindo-se publicamente homossexual e simpatizante do comunismo – a clássica figura das bruxas que o senador Joseph McCarthy adorava caçar –, gerando, claro, grande escândalo, o que levará, inclusive, a tentativas de censura e processo contra ele. Ainda assim, valente, será uma poesia de resistência e experiência do início ao fim. Uma escrita que estremecerá os alicerces do já apodrecido sonho americano e todo seu infinito arsenal de hipocrisia e mentira.

Causando incômodos tanto à direita quanto à esquerda, sua poética libertária proporá caminhos que não se conciliam com a ideia – já bem velha e falha, aliás – de uma sociedade tutelada por um Estado. Podemos pensar no ideário místico de Ginsberg como propostas de combate político. Através da poesia, cultivar a mentalidade mágica, daí para aquilo que o autor de Uivo chamava de “Suprema Realidade”, através da qual se pode ver todo o Universo sobre os telhados das velhas fábricas abandonadas de subúrbios esquecidos pelo tempo, num imenso e portátil mirante cósmico. É a fusão do poeta e do xamã. Na busca de uma ancestralidade selvagem, orgiástica, libertária, que inaugure uma nova sociedade. Uma busca desesperada pelo ser natural, pela felicidade.

Lido por gente como Bob Dylan, John Lennon, Patti Smith, Kurt Cobain, tornou-se um fenômeno editorial. Isso faria sua figura muito popular, colocando-o como um dos artistas-símbolo das resistências e revoltas da segunda metade do século XX. Jamais, porém, foi devidamente reconhecido pela academia, pois, como diziam, era obsceno. Não ganhou Pulitzer, nem Nobel. Sem problemas. Era da rua que sua mente captava a frequência da moçada e a devolvia, num diálogo enriquecedor e luminoso. A escritura visionária e a ação revolucionária caminharam juntas até o fim. O poema como gesto afetivo-político.

DESTRUIÇÃO DE FRONTEIRAS
Apesar da qualidade de sua obra, sua força e novidade insultaram muita gente. Há um cordão de críticos que insiste em que a escrita beat é espontânea e inculta demais. Que o artesanato verbal falhou e a revolução comportamental não se sustentou no papel, ou seja, não deu em “alta literatura”, como tanto gostam os acadêmicos. Não entenderam nada, pois pensavam a poesia do século XX com o pensamento do século XVII e, claro, ficaram como cachorros dentro d’água no escuro daquela nova poética. Esses críticos jamais conseguiram entender, por conta da vaidade gritante desse tipo de ambiente, que o objetivo era justamente aquilo que tanto criticavam: a destruição das fronteiras entre vida e poesia.

O poema, animal selvagem, não pode ser preso nas jaulas dos departamentos de literatura. A tentativa de domesticar a poesia sempre falha. A poética (forma) e a política (fundo) são inseparáveis. Pelo menos na poesia que vale a pena ser lida. Os mecanismos de pensamento burocrático que estancam e se espalham feito praga pelos departamentos de literatura mundo afora acabou, como era de se esperar, ficando sem saber, ficando por fora. Não eram tempos para escrever sobre folhas de plátano caídas na neve enquanto, por exemplo, acontecia a Guerra do Vietnã e a América Latina estava coalhada de sangrentas ditaduras militares patrocinadas pelos EUA.

Ao traduzir sua época em seus versos, Ginsberg operava uma revolução não só na poesia, mas na vida. Havia uma urgência de mudança de relação com o mundo, redimensionar a existência. Não à toa, a ideia de conexão com a natureza (ligada à ecologia política que ganharia muita força nos anos 1970) vai cruzar seus experimentos de elaboração poética. Essa dimensão corpórea, que faz com que seus versos quase sangrem, estará profundamente ligada à composição do poema. Ginsberg vai operar ritmos mais orgânicos para sua poesia, como dirá em uma entrevista de 1965: “Eu estava criando a partir dos meus próprios impulsos neurais, meus próprios impulsos de escrita. (…) a diferença está entre alguém que senta para escrever um poema de acordo com um padrão métrico predeterminado, e alguém escrevendo a partir de seus movimentos fisiológicos para chegar a um padrão e, talvez, mesmo chegando a esse padrão, que poderia mesmo vir a ter um nome, ou um uso clássico, mas chegando a isso de uma maneira muito mais orgânica que sintética”.

Há várias maneiras de escrever poemas, como há muito tempo sabemos. Seguir regras de composição, como escreveu certa vez Roberto Bolaño, só serve para livros que serão cópias de outros livros. Isso não quer dizer, entretanto, que não se deva conhecer a tradição. Sem conhecer a tradição não se pode criar nada realmente potente. Ginsberg conhecia, e muito bem. Assim pôde fazer múltipla e instigante sua voz.

Da lendária leitura de Uivo na Six Gallery, em São Francisco, na noite de 13 de outubro de 1955 à contracultura e ao movimento punk, chegando aos nossos dias, Ginsberg (e toda trupe beat) continuaria munindo a moçada com um arsenal poderoso, que ajudaria a manter vivos as chamas utópicas e os ventos de mudança. Como escreveu um de seus tradutores no Brasil, Claudio Willer, em texto de apresentação de Uivo e outros poemas, Ginsberg “nunca se tornou um repetidor, um epígono de si mesmo. Não soará estranho, atualmente, afirmar que alguém como ele, um rebelde com um comportamento extravagante e desregrado, foi um exemplo de integridade, de uma elevada ética da poesia”. É justamente nessa ética (uma ética outsider, que rejeita a justiça seletiva do sistema e suas regras de opressão), força fundadora de sua poética, que se configuram a obra e a persona de um dos maiores artistas dos últimos tempos. A cenografia imaginada pela mente alucinada de Ginsberg não está, trazendo à baila Vitor Ramil, à margem de uma história, mas no centro de outra. Outra história que vem sendo arquitetada no submundo, coletivamente.

Quando Allen Ginsberg morreu, perguntaram ao grande poeta e editor da City Lights, Lawrence Ferlinghetti, o que dizer sobre a morte do amigo cujos livros editou por 30 anos, e ele respondeu: “Há um enorme buraco no céu, no mundo da poesia. Allen mudou a consciência da poesia para as gerações que se seguiram e em todas as regiões, na América do Norte, na América Latina, na Europa”. A transformação operada por Ginsberg na poesia foi realmente gigante, sua coragem contagiante, uma força da natureza mesmo. Foi um grande sol a nos iluminar e aquecer. “Como calcular o tamanho da escuridão?”, perguntou a poeta Diane Di Prima no dia em que homenagearam o poeta. A pergunta continua valendo. 

 

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