“Esta receita me lembra o final do verão, quando o avô da minha melhor amiga retornava do campo com toda a uva recolhida durante a vendemmia e a família inteira e amigos próximos se reuniam para comemorar a colheita da uva e fazer o vinho, comendo e bendo muito.” Nathália Espíndola viveu 15 dos seus 28 anos na Itália e aprendeu com a senhora Ofelia, avó de sua amiga Francesca, a fazer a talvez mais popular receita com berinjela da Itália – e curiosamente também do Brasil: a berinjela à parmegiana.
Apesar de parecer a mais tradicional das receitas, a parmegiana é uma invenção recente na linha do tempo deste fruto milenar, que provavelmente chegou à Europa na Idade Média, mas que apenas se popularizou muito tempo depois. Na Itália daquele tempo, seu consumo esteve associado à loucura. Seu nome italiano, melanzana, é derivado de mela insana, ou seja, maçã louca. O nome arcaico da berinjela em inglês também é uma tradução direta disto: mad apple. Mesmo nos dias de hoje, alimentos da família das solanáceas, como é o caso da berinjela – e também dos tomates e batatas – são considerados ligeiramente tóxicos, e algumas linhas da medicina, como a medicina antroposófica, desaconselham a inclusão da berinjela em qualquer tipo de dieta. Sônia Hirsch, jornalista autora de inúmeros livros sobre alimentação no Brasil, reforça o conselho dos antroposóficos.
Mas, como todos os ingredientes que sentam conosco à mesa, ela um dia foi apenas uma planta selvagem emaranhada na vegetação de alguma floresta – sem classificação, sem ser nomeada de solanácea, de tóxica, de legume ou mesmo de planta. Existia simplesmente. A localização da floresta onde nasceu a berinjela e onde foi deitado o primeiro olhar humano sobre ela não é um consenso. Apesar de estudos mostrarem que a planta já era cultivada na Índia há 4.000 anos, é na literatura chinesa antiga que se encontram as primeiras menções a ela.
Esses textos, que datam de 500 d.C., fazem parte do vasto registro de experimentos sobre a domesticação de frutos empreendidos por agrônomos chineses. Naquele tempo, o legume imponente que conhecemos era um fruto pequeno, esverdeado e amargo, classificado como tóxico e nem um pouco palatável. Os chineses transformaram, ao longo do tempo, seu tamanho, sabor, cor e textura, fazendo-o maior, menos amargo, mais macio, e criando diferentes variedades em cores que multiplicaram seu verde original em branco, amarelo e nosso conhecido púrpura.
As razões ou, como diz Lévi-Strauss, “a lógica das qualidades sensíveis” que levaram os antigos sábios agrônomos a domesticarem o fruto está associada às suas funções medicinais, mas por que eles insistiram tanto em transformá-la em um ingrediente culinário não parece estar muito claro. Tampouco resta dúvida de que eles sabiam o que estava fazendo: a China é atualmente o maior produtor mundial de berinjela e seu consumo no país é extremamente popular.
AMARGOR TRANSFORMADO
Para An Qi, uma grande amiga chinesa, apenas pensar em berinjela a faz salivar. A receita que mais preparam em sua família é chamada de hongshao qiezi, ou berinjela cozida em molho vermelho. Considerando a interminável lista de ingredientes da receita de hongshao qiezi, não há dúvidas de que os chineses dominavam com primor a capacidade única de absorção da berinjela e o fato de que ela pode resultar em pratos com sabores complexos, como que revelados em camadas. O molho vermelho nesta receita dispensa o sal – o único ingrediente que diminui esta capacidade de absorção – e inclui ingredientes tão diversos como açúcar mascavo, pasta apimentada de feijão chinesa, molho de soja, vinho chinês para cozinha, molho de peixe, óleo de gergelim apimentado, especiarias de todos os tipos e óleo, muito óleo.
A receita familiar de An Qi também indica que o trabalho que seus antepassados tiveram para retirar o sabor amargo da berinjela ainda não foi suficiente. Esse processo tem continuidade agora na cozinha, no famoso pré-preparo da berinjela. Tradições gastronômicas de diferentes culturas lidam com isso das formas mais diversas. A técnica chinesa usada na receita da família de An Qi inclui mergulhar os pedaços de berinjela em água, deixá-los de molho, depois secá-los, fritar em bastante óleo e depois imergir a berinjela já frita em água fervente. Nada muito intuitivo.
Em outras receitas, como na caponata compartilhada pela paulistana Claudia Sangiorgi, pode-se ignorar por completo esta etapa. Sobre a caponata que prepara – uma receita tradicional de família que passou de sua avó paterna, filha de italianos, para sua mãe e depois para ela – Claudia diz que essa história de deixar a berinjela de molho é “uma grande bobagem” e nos oferece, para profundo alívio dos menos habilidosos com cozinha, uma receita extremamente prática e simplesmente deliciosa. Nada de óleo em exagero, nem temperos especiais. Os ingredientes para esta receita encontram-se em qualquer mercado. Simples, para acompanhar basta pão e vinho. Ou caipirinha, gim e cana, como faz a família de Claudia nos verões paulistanos.
SABOR DE FUMAÇA E HISTÓRIA
A berinjela percorreu o longo caminho entre a China e a Europa através das mãos hábeis dos turcos e dos árabes. Com o minimalismo típico de quem vive em regiões desérticas e a genialidade gastronômica que os caracteriza, os árabes criaram a, talvez, mais célebre receita feita com ela: o babaganoush. A complexidade de sabores está lá, mas não há necessidade de dezenas de ingredientes como na hongshao qiezi. Basta um que se sobressaia: sabor de fumaça. A ele, são adicionados a adstringência exótica e oleosa do tahine e a acidez de vinagre ou limão. Nada mais é necessário em uma receita cujo mistério está mais no jeito com que se faz do que nos ingredientes em si.
Os turcos também tinham o hábito de queimar nas chamas e na brasa a berinjela e depois temperá-la para comer com pão. Países que estiveram sob domínio do Império Turco- Otomano até hoje guardam a presença daquele tempo no forte cheiro de berinjela defumada nas cozinhas de suas casas. É o caso da Bulgária, onde a kiopolo, uma pasta de berinjela defumada, é um produto nacional. Dona Liliana Alkalai, imigrante búlgara que veio para o Brasil no pós-guerra, guarda na memória os dias de verão em que fazia piquenique nas montanhas nos arredores de Sófia, comendo pão com kiopolo.
Foi seu neto, Rafael Alkalai, que, aos 15 anos, me ensinou os detalhes da receita que ele sabe fazer com minúcia e que conhecia apenas como “a berinjela”. Deu dicas precisas de como queimar a berinjela no fogão, o ponto de parar, a quantidade de tempero que ele acha ideal. Sobre o que o cheiro e o sabor da berinjela lhe provocam, disse: “Na minha mente vêm a minha avó, meu pai e uma herança de uma guerra feia que fez muita gente sair de casa em busca de uma outra vida. Meus avós são imigrantes e com todo mundo pirando acerca de imigrantes e refugiados hoje, eu acho que comida tem muita história pra contar. Se tem algo que eu descobri é que comer a comida de quem vem de outro lugar é sentir dentro de si e se nutrir da cultura do outro”.
Dona Liliana me ofereceu a receita da Kiopolo no dia de seu aniversário de 88 anos. A única diferença entre a receita dada por ela e a de seu neto é uma pitada de açúcar que ela classificou como “segredo”. A afirmação de Certeau de que “cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias”, pelo menos quando se trata de berinjela, é a mais pura e deliciosa verdade.