Arquivo

Pachamama: agradecimento e perdão à Mãe-Terra

Cerimônia realizada anualmente com música, dança e comidas típicas no Noroeste da Argentina está de acordo com a lei da reciprocidade que, para os povos andinos, rege o universo

TEXTO Carolina Albuquerque

01 de Março de 2017

Versos do cancioneiro popular são entoados por músicos participantes da festa

Versos do cancioneiro popular são entoados por músicos participantes da festa

Foto Carolina Albuquerque

[conteúdo na íntegra | ed. 195 | março 2017]

Pela intensidade dos raios solares, já era perto de meio-dia. Muitos já estavam impacientes para a festa que se seguiria com dança, música e farta e típica comida da região de Cafayate, distrito de Salta, Noroeste da Argentina. Uma senhora se aproxima da apacheta. Os cabelos muito brancos contrastam com sua pele queimada, de traços indígenas. A apacheta é o nome indígena para o buraco feito na terra, dedicado a alimentar a Pachamama. A apacheta é a boca e o ventre da “Mãe-Terra” (tradução literal para Pachamama). Traduz o ato de alimentar e dar frutos. É o altar dedicado à divindade maior para os povos andinos. Mesmo sob uma postura envergada e com o auxílio de uma bengala, a senhora caminha assertiva em direção ao local. Oferta à terra: empanadas, alfajores, biscoitos etc. Em seguida, o vinho, “sangue divino”, e a água. Termina suas palavras e preces pedindo perdão à Pachamama. “Te peço que mostre o caminho verdadeiro, porque está perdido nosso mundo. Pela desunião. Porque não nos compreendemos. Pachamama, Mãe-Terra, tenha piedade de nós”.

É 1º de agosto no Noroeste da Argentina. Precisamente na comunidade Dieguita Kallchaki, localizada no “El Divisadero”, território ancestral da nação diaguita, arredores da pequena Cafayate. No calendário agroecológico andino, a entidade suprema e divina daPachamama desperta nesse período de um longo descanso. Acredita-se que, nessa fase de transição, é preciso renovar as suas forças dando-lhe de comer e matando-lhe a sede. O ritual de “hacer comer la Pachamama” (“fazer comer a Mãe-Terra”) se inicia ainda nas primeiras horas do dia, quando as casas são defumadas. As cerimônias, comunitárias ou particulares, de agradecimento e perdão à divindade, contudo, mantém-se ao longo de todo o mês.

A apacheta (essa cavidade no solo encoberta por volumosas pedras em formato cônico) é o local central da cerimônia. Sobre uma toalha, posta ao seu lado, os pachamamistas chegam e vão depositando suas oferendas. Não pode faltar a tradicional gastronomia local: folhas de coca (cujo hábito de mascar é ancestral e tem por finalidade aguentar as altas altitudes), empanadas de doce de leite e o vinho Toro, um tinto envasado em tetrapak. “Abre-se a boca da Mãe-Terra nesse lugar escolhido energeticamente pelas pessoas. Não é em qualquer lugar. Todos os anos depositamos as oferendas no mesmo lugar. E, nesse dia, oferta-se a comida que cada um mais gosta. Os frutos mais deliciosos e as batatas mais lindas que te deu a Mãe-Terra, num ato de devolver energeticamente”, explica a pesquisadora argentina Noemí Amália Vargas, professora de Artes Visuais da Universidade Nacional de Arte em Buenos Aires e licenciada em Culturas Tradicionais.

No vocabulário oral, os pachamamistas usam expressões como “fazer comer”, “alimentar e matar a sede” ou “pagar” à Mãe-Terra. “Quando estamos fazendo o pagamento à Mãe-Terra, estamos pagando por tudo que temos. Pela comida, pela energia do sol… A Pachamama tem seu próprio espírito. Tem a ver com esse poder que tem sobre nós. Na concepção andina, o homem tem vários espíritos. Não só um. Até sete, dizia minha mãe. Vivemos em um plano horizontal, porque todos temos espíritos, as plantas, os animais, tudo. Muitas pessoas não sabem isso. Sabem que têm que pedir permissão e agradecer. Mas é por isso que temos que pedir permissão à Mãe-Terra, porque ela tem espírito”, ressalta Amália, que também se reconhece como indígena (nação chicha de Jujuy).

Esse ritual está intrinsecamente conectado ao princípio da reciprocidade andina, fundamento que mantém o caráter coletivo e comunitário que acompanha as sociedades indígenas. Como comportamento, traduz-se na atitude de “devolver por igual o que recebeu” ou “receber de volta o que foi dado”. Amália Vargas ressalta que o ayni, um dos fundamentos associados à instituição da reciprocidade, funciona como uma espécie de guia que motiva essa partilha, seja qual for o ritual comunitário. Numa explicação apressada, ayni quer dizer “ajuda mútua”. Porém, não se trata de algo simplesmente voluntário. O “dar e receber” independe das atitudes humanas, é uma espécie de lei que rege o universo para os povos andinos.

Pachamama(Pacha, “terra”; mama, “mãe”) é um termo quéchua, idioma dos aborígenes incas. No Peru e Bolívia, essa língua ainda se encontra amplamente viva. Enquanto que, na Argentina, cada vez menos frequente no cotidiano dos descendentes dos povos andinos. Interpretar essa entidade como Mãe-Terra, associando-a apenas à fertilidade da terra, recai em reducionismo.Pachamama é terra geológica, mas também todo o seu conjunto. É transcendental e cósmica.

RITUAL
À medida que os olhos iam sendo alimentados pela farta comida e bebida posta sobre a toalha, os cerimonialistas eram “defumados”. Banhado com arruda, um cordão era amarrado ao pulso de cada um dos presentes. E uma xícara de barro com vinho era compartilhada. “Convido todos a abrir a apacheta”, conclama o cacique. Dezenas de mãos começam a mover as pedras. As pesadas, as menores. Nesse momento, em silêncio, ouve-se apenas o barulho delas sendo demovidas do topo do buraco.

Ali dentro, estão depositadas dezenas de garrafas de vinho (Cafayate é reconhecida pela sua extensa produção de vinho), um ano inteiro “maturando” na boca da Pachamama. Casais são chamados a desenterrá-las e as devem trazer à luz do sol com as mãos unidas. “A Pachamama está relacionada com a fertilidade, que simboliza toda a abundância que ela te dá. Por isso fazemos o ritual em agosto, momento do plantio. E outra oferenda em fevereiro, momento da colheita. E não é feita apenas por aqueles que trabalham com o campo. Não é literal. Está relacionado a tudo que envolve o trabalho, em que ela o ajuda”, pontua Amália.

O vinho desenterrado é aberto e celebrado com palmas. À boca da garrafa, bebe-se e se compartilha entre todos. Não sem antes oferecer um gole à homenageada, derramando um pouco ao solo. O clima é de brincadeira, alegria, festa. Os cantores locais vão entoando as coplas (um tipo de verso poético nas canções populares). “Pachamama, santa terra. Não me leve agora. Veja que ainda estou jovem, tenho que deixar mais sementes”, puxa o verso um dos músicos.

AUTOIDENTIFICAÇÃO
De Jujuy à região de La Rioja, passando por Salta, Catamarca e Tucumán, uma Argentina não branca se descortina. Ainda que a maioria da população não se autoidentifique como indígena, Amália Vargas argumenta que nessa região “todos são indígenas”. Carregam os traços no rosto, na cor da pele e, mesmo sem se dar conta, a cultura dos povos andinos. “Somos da linhagem dos incas, do alto Peru, limite com Bolívia. Todos aqui são indígenas, ainda que não queiram reconhecer. Minha mãe dizia: ‘Eu não sou indígena’. E quando comecei a estudar sobre esse universo, falei que, sim, nós éramos. Disse para ela: ‘A senhora sabe quéchua, faz a cerimônia da Pachamama, fala com uma folha de coca, sabe curar com as plantas, faz a chicHa’, que é uma bebida sagrada dos andinos. Eu já tinha me reconhecido. E respondeu: ‘Ah, não sabia’.”

O momento de oferecer a comida e a bebida a Pachamama é bem particular. Por conta do processo de evangelização na época da colonização, as cerimônias dos povos ancestrais carregam elementos de sincretismo. Alguns, ao venerar a divindade, fazem o símbolo da cruz ou preces católicas. No entanto, o Dia da Pachamama (reconhecido pelo calendário oficial) é apenas uma das cerimônias de matriz indígena que se mantém viva nessa região da Argentina. Amália Vargas cita, pelo menos, o Dia dos Mortos – um momento de celebração aos que já se foram –, e a Señalada, ritual em que fazem desenhos nas orelhas das cabras e ovelhas. “É uma cultura viva, mas que luta para se manter. E, no entanto, se encontra à margem das políticas oficiais. Quando é dia de fazer a Pachamama, todas as autoridades estão lá. Porém, passada a eleição ou esses eventos sociais, pouco é feito por esses povos”, pontua.

Com a boca saciada de boa e farta comida e bebida, fecha-se novamente a apacheta e segue-se a festa para a Mãe-Terra. 

 

veja também

Gabriel García Márquez

Laerte: um olhar sobre si mesma

Moçambique: relato de uma mzungu