À medida que os olhos iam sendo alimentados pela farta comida e bebida posta sobre a toalha, os cerimonialistas eram “defumados”. Banhado com arruda, um cordão era amarrado ao pulso de cada um dos presentes. E uma xícara de barro com vinho era compartilhada. “Convido todos a abrir a apacheta”, conclama o cacique. Dezenas de mãos começam a mover as pedras. As pesadas, as menores. Nesse momento, em silêncio, ouve-se apenas o barulho delas sendo demovidas do topo do buraco.
Ali dentro, estão depositadas dezenas de garrafas de vinho (Cafayate é reconhecida pela sua extensa produção de vinho), um ano inteiro “maturando” na boca da Pachamama. Casais são chamados a desenterrá-las e as devem trazer à luz do sol com as mãos unidas. “A Pachamama está relacionada com a fertilidade, que simboliza toda a abundância que ela te dá. Por isso fazemos o ritual em agosto, momento do plantio. E outra oferenda em fevereiro, momento da colheita. E não é feita apenas por aqueles que trabalham com o campo. Não é literal. Está relacionado a tudo que envolve o trabalho, em que ela o ajuda”, pontua Amália.
O vinho desenterrado é aberto e celebrado com palmas. À boca da garrafa, bebe-se e se compartilha entre todos. Não sem antes oferecer um gole à homenageada, derramando um pouco ao solo. O clima é de brincadeira, alegria, festa. Os cantores locais vão entoando as coplas (um tipo de verso poético nas canções populares). “Pachamama, santa terra. Não me leve agora. Veja que ainda estou jovem, tenho que deixar mais sementes”, puxa o verso um dos músicos.
AUTOIDENTIFICAÇÃO
De Jujuy à região de La Rioja, passando por Salta, Catamarca e Tucumán, uma Argentina não branca se descortina. Ainda que a maioria da população não se autoidentifique como indígena, Amália Vargas argumenta que nessa região “todos são indígenas”. Carregam os traços no rosto, na cor da pele e, mesmo sem se dar conta, a cultura dos povos andinos. “Somos da linhagem dos incas, do alto Peru, limite com Bolívia. Todos aqui são indígenas, ainda que não queiram reconhecer. Minha mãe dizia: ‘Eu não sou indígena’. E quando comecei a estudar sobre esse universo, falei que, sim, nós éramos. Disse para ela: ‘A senhora sabe quéchua, faz a cerimônia da Pachamama, fala com uma folha de coca, sabe curar com as plantas, faz a chicHa’, que é uma bebida sagrada dos andinos. Eu já tinha me reconhecido. E respondeu: ‘Ah, não sabia’.”
O momento de oferecer a comida e a bebida a Pachamama é bem particular. Por conta do processo de evangelização na época da colonização, as cerimônias dos povos ancestrais carregam elementos de sincretismo. Alguns, ao venerar a divindade, fazem o símbolo da cruz ou preces católicas. No entanto, o Dia da Pachamama (reconhecido pelo calendário oficial) é apenas uma das cerimônias de matriz indígena que se mantém viva nessa região da Argentina. Amália Vargas cita, pelo menos, o Dia dos Mortos – um momento de celebração aos que já se foram –, e a Señalada, ritual em que fazem desenhos nas orelhas das cabras e ovelhas. “É uma cultura viva, mas que luta para se manter. E, no entanto, se encontra à margem das políticas oficiais. Quando é dia de fazer a Pachamama, todas as autoridades estão lá. Porém, passada a eleição ou esses eventos sociais, pouco é feito por esses povos”, pontua.
Com a boca saciada de boa e farta comida e bebida, fecha-se novamente a apacheta e segue-se a festa para a Mãe-Terra.