O Morro da Conceição, como se conhece hoje em dia, foi fruto da própria chegada da imagem de Nossa Senhora ao Recife, inaugurada no dia 8 de dezembro de 1904, em comemoração ao Dogma da Imaculada Conceição de Maria. Na época, o então arcebispo de Olinda, Dom Luiz Raimundo da Silva Brito, quis prestar uma homenagem a esse dogma católico – proclamado como doutrina no ano de 1854 pelo Papa Pio IX – colocando uma imagem em alto pedestal, com base para missas, sobre um dos diversos morros do Recife. Não é coincidência que o dia 8 de dezembro seja, também, o dia da procissão final da Festa do Morro, que ocorre desde a inauguração da enorme estátua da Virgem. Aos poucos, o antigo Oiteiro da Boa Vista (como era conhecido o Morro antes da chegada da imagem), foi adquirindo o nome que tem hoje. E, “com a chegada da Santa, chegaram os pobres”, escreve Severina Santana de Paiva, autora e organizadora do livro Aos pés da santa – A história de um povo, uma coletânea de documentos e depoimentos não só seus, mas de outros moradores da colina.
Falar do Morro da Conceição se mostra indispensável para Dona Sevi, assim conhecida em sua “colina que é o Morro”, como gosta de definir sua casa.De cabelos arrumados, com um cheiro doce e marcante de perfume, trajando uma camisa de Nossa Senhora, a autora não nega sorrisos e simpatia a qualquer um que a aborde em suas idas ao Santuário de Nossa Senhora da Conceição. E foi com simpatia que recebeu a reportagem da Continente em sua casa. Ela conta que a migração de sertanejos, a fim de procurar trabalho na capital pernambucana, foi um dos grandes fatores que desencadearam a ocupação do local. Aos poucos, a vida cotidiana foi se formando ao redor da imagem da Santa. “Tinha apenas algumas casinhas, pequenos mocambos, porque eram moradias pequenas, de barro, as paredes eram só barro e cobertas de capim. Então, não havia escola, não havia posto médico, calçamento, água encanada, potável, nada. Era um povo humilde.”
Dona Sevi lembra com clareza a atuação do Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara, durante o regime militar. Estimulados por sua orientação, os moradores do Morro começaram a encontrar os caminhos da luta através da Palavra de Deus. Dom Helder fundou o Movimento de Evangelização Encontro de Irmãos, cujo objetivo era oferecer ao pobre a confiança no pobre, e também instruí-lo na fé e na luta por direitos humanos. “Através da Palavra, começamos a conscientizar as pessoas de que tínhamos os mesmos direitos de quem mora em bairros abastados”, pontua Dona Sevi. Assim, o mesmo Magnificat cantado na procissão de 2016 serviu de inspiração para as diversas lutas e protestos que aconteceram durante a opressão militar. Segundo conta a autora, o trecho “derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, encheu de bens os famintos” servia como um mantra, repetido nas reuniões e nas celebrações eucarísticas, fonte de inspiração para a resistência.
Eis que o Morro da Conceição atravessou o tempo, venceu a ditadura, conquistou a democracia e vitórias “pela graça de Deus”. Em comunhão com seus irmãos de comunidade, Dona Sevi continua a se fazer crítica à situação do Morro e da sociedade, de um modo geral. Em suas orações, roga à Virgem pelos seus e, sem rédeas, discursa: “O mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor”.
A religiosidade, nesse sentido, promoveu união dos moradores do Morro da Conceição, que vem resistindo aos momentos de dificuldade política e social, encontrando caminhos para se afirmar, seja pela criação do conselho dos moradores ou pelos movimentos culturais. E a imagem da Santa, altiva e pacífica, parece abençoá-los e àqueles que vêm aos seus pés, todos os anos, agradecer, solicitar e saudar a sua força majestosa e inequívoca.