Nesta era biográfica, na qual o interesse pela vida de pessoas famosas cresce enormemente, a autobiografia surge como um exercício narrativo pessoal. Para isso, pode ser escrita de próprio punho ou utilizar-se de um ghostwriter (escritor fantasma), que desaparece sob a assinatura de outrem, utilizando diferentes discursos narrativos, tais como diários, memórias e entrevistas.
Um primeiro exercício autobiográfico de Gerald Thomas foi publicado em 2012, organizado pelo ator Edi Botelho, com o qual o dramaturgo trabalhou longo tempo na Companhia Ópera Seca. Com o título Gerald Thomas: cidadão do mundo e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (coleção Aplauso), o livro esteve poucos meses disponível, tendo sido recolhido por um processo judicial aberto por outro ator da mesma companhia, tornando os poucos exemplares que sobraram no mercado artigo de colecionadores e admiradores do biografado.
Diferentemente do livro assinado por Thomas, no de Botelho há o aprofundamento vigoroso nos processos mental e criativo do perfilado, trazendo um relato do seu universo cênico, ressaltando os seus valores e não poupando duras críticas aos seus fracassos.
Também em comparação com o Entre duas fileiras, em Gerald Thomas: cidadão do mundo percebe-se o olhar superficial dedicado à Companhia Ópera Seca, na qual Thomas e Botelho atuaram em espetáculos como Quatro vezes Beckett, Quartett, Carmem com filtro e Eletra ComCreta, e com a qual o diretor demarcou o seu nome no teatro contemporâneo brasileiro.
Apesar de isso não ser explicitado, é possível que essa evasiva esteja ligada ao receio de enfrentamento dos mesmos problemas jurídicos do livro de Botelho. Em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, quando questionado sobre esse assunto, o dramaturgo afirmou: “A Ópera Seca, para quem é brasileiro e me acompanha, pode ser muito importante. Mas será que ela foi importante para mim? Foi um período muito pequeno na minha vida”, desviando do assunto.
Essa ausência, entretanto, não chega a se tornar uma lacuna na compreensão do artista, pela disponibilidade de outras obras que dissecam as questões estéticas e poéticas do diretor, caso de Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas, que reúne artigos de diferentes autores, organizados por Jacob Ginsburg e Silvia Fernandes.
A pesquisadora Silvia Fernandes, inclusive, dedicou mais tempo à obra de Gerald Thomas, na publicação intitulada Memória e invenção: Gerald Thomas em cena, na qual realiza levantamento de suas peças e obras, por meio de críticas, entrevistas e textos de programas, comparando os procedimentos empregados aos de outros importantes criadores como Richard Wagner, Bertolt Brecht e Bob Wilson.
PERSONA PÚBLICA
Em Entre duas fileiras, Gerald Thomas não foge da recorrente polêmica sobre biografias não autorizadas, que teve enorme repercussão nacional no livro Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo, que saiu de circulação por ordem judicial em 2007. Para ele, “o artista é uma persona PÚBLICA, um SER que pertence ao público, e esse pertencimento é uma premissa básica! Assim, a própria noção de manter uma vida ‘privada’ é, em si mesma, absurda”.
Se, por um lado, afirma que Hélio Oiticica, Gilberto Gil e Caetano Veloso são as pessoas que fazem a arte acontecer pela ótica de “pensar a arte”, sendo Caetano o homem mais inteligente que conheceu (com uma “visão maravilhosamente clara do que está in e do que está out”), por outro, tece críticas ao mesmo Caetano que, junto a Chico Buarque (“os guerreiros da liberdade nos últimos 40 anos”), agiu como censor de biografias.
Destila ironia, ao apontar para a grave questão educacional do país: “pouco tempo atrás, o Brasil se encontrava no meio de uma grande discussão sobre biografias – o que, em si, é engraçado, dado que 40% do país é iletrado e os que leem mal conseguem lidar com livros reais. O máximo que fazem é postar fotografias de pizza no Facebook”.
Entretanto, abre parênteses para o episódio público no qual exigiu a Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, que retirasse do mercado a primeira edição do livro Ela é carioca, de Ruy Castro, em que, no primeiro capítulo, sua avó era citada como possível amante de nazistas. Apesar de não ter processado a editora, teria o próprio Gerald caído na armadilha da censura? Replica-se então o questionamento do autor no mesmo capítulo: “Imaginem isso! Censurar o que as pessoas pensam e dirão em um livro que NINGUÉM JAMAIS LERÁ! Por quê?”
“Eu sempre estava lá quando a merda batia no elevador.” Duplicada como título em dois capítulos, essa afirmação bem poderia resumir a vida andarilha de Thomas. Woodstock, 11 de Setembro, Martin Luther King no Tennessse, 7 de julho de 2005 em Londres, renúncia de Nixon, golpe militar de 1964: ele esteve presente.
Motorista de veículo de emergência, trabalhou na Anistia Internacional, como ilustrador do jornal The New York Times, baterista da Mangueira, além de voluntário no 11 de Setembro, que afirma ser a maior tragédia que sua geração vivenciou. Gerald Thomas foi tudo isso e muito mais.
Surgiu para o mundo ao dirigir o lendário ator Julian Beck, magoou muita gente, especialmente mulheres. Trocou cartas com Beckett, conviveu com Oiticica, além de ter sido o primeiro judeu a encenar Richard Wagner na Alemanha Oriental, com skinheads na porta do Teatro Nacional de Weimar ameaçando matá-lo. Gerald fez tudo isso e muito mais.
Estuprado aos 12 anos, garoto de programa aos 15, aderiu à macrobiótica. Amigo de Phillip Glass, inimigo de tantos outros, encontrou no vício uma maneira de lidar com o mundo, por não conseguir “SUPORTAR a imensa dor da vida, a dor de viver”. Entre duas fileiras é forte e prazeroso de ser lido. Parafraseando o autor, é um vasculhar sobre alma, notas e sentimentos de remotos traços esquecidos, falecidos, distantes. Se tudo é verdade? O próprio Thomas responde: “Como artista, não devo NADA À VERDADE. Meu pacto é com minhas próprias fantasias ou minha própria versão dos eventos. Esse é o MEU pacto”.