Arquivo

A palavra-grito de Ernesto Dabo

Depois de ter perdido quase todo seu acervo na guerra civil deflagrada na Guiné-Bissau, poeta decide-se pela autoedição, para aplacar os escombros

TEXTO Erika Muniz

01 de Março de 2017

O poeta Ernesto Dabo

O poeta Ernesto Dabo

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 195 | março 2017]

Faces e dentes/ dizem melhor do acantonamento das almas/ Viagem a pingar última gota/ Da ponta da ponte/ atiram-se abraços cruzados e abertos/ Do mar à terra/ ampla luz de amor e saudades/ Reencontro com a filha bela da mãe natura/ minha Ilha-mãe/ BOLAMA

Ernesto Dabo, no poema Ilha-mãe

No poema que abre Mar misto (2011), primeiro livro publicado do poeta guineense Ernesto Dabo, ele faz referência à sua terra natal, seu lugar de pertença, como sendo uma mãe. No caso dele, mais uma, já que se diz sortudo e agradecido por ter tido cinco mães que lhe deram à luz ,“cada uma a seu tempo e a seu modo”, como escreve na dedicatória do livro. Além da mãe biológica Nna Ndjai, também lhe cederam o afeto maternal, ao longo da vida, outras quatro mulheres que atendem por Nna Garandi (Mamãe Garandi), Nna Cinho (Mamãe Cinho), Mamã Cármen Hernandez e Maria José, essas duas últimas quando viveu em Portugal, entre 1963 e 1974.

Poeta, músico, ativista cultural, mestre em Direito Internacional, Ernesto Dabo é de Guiné-Bissau, mas vive pelo mundo. Ao longo do ano, faz diversas viagens a convite de amigos e admiradores de seu trabalho nos mais diversos países, entre apresentações artísticas e palestras. Em novembro de 2016, esteve no Brasil. Sempre que viaja, retorna à sua terra. Esse trânsito constante faz parte de sua vida desde muito cedo, como relata em entrevista ao programa de TV português Mar de Letras: “No fundo, talvez eu iria ser piloto porque, desde a minha infância, estou em franco movimento. Só para se ter uma ideia do percurso: saí de Bolama, viemos para Có, Bula, Bissau e Lisboa, em 1963. É mais ou menos um périplo desde muito novo. Talvez tudo isso tenha me ajudado a entender que não estamos sozinhos e nem devemos estar sozinhos. Tudo aconteceu num espaço de tempo muito curto”.

Vindo de uma família numerosa, Ernesto reconhece a figura do seu pai como a de um visionário, por ter procurado garantir a alfabetização para todos os seus filhos, apesar do quadro colonial da época. “Em uma colônia que, em 1960, 99,7% da população estavam fora do sistema de ensino, haver alguém que entende que, contra essa corrente, ia formar todos os seus filhos minimamente e conseguiu fazer isso… Em sua casa não havia analfabetismo, e a primeira profissão entre os seus filhos foi a de professor de instrução primária. Para mim, isso foi uma atitude de visionário e um fato que motivou nós todos. Os livros e a leitura entraram assim também”, afirma o artista, de 67 anos, em entrevista à Continente.

Revelam-se em suas memórias e produções artísticas fragmentos importantes da história de seu país. Uma de suas incursões mais marcantes foi a participação, ao lado de músicos como José Carlos Schwarz, Aliu Bari e Duko Castro Fernandes, no Cobiana Djazz.O grupo foi precursor em fazer música de expressão moderna na Guiné-Bissau do final dos anos 1960. Essa movimentação artística teve forte relevância do ponto de vista político, com relação ao fortalecimento da resistência guineense durante o processo de luta pela independência. Segundo o instrumentista Juca Delgado, o Cobiana teve o papel de mostrar nas rádios, pela primeira vez, a música feita no país naqueles anos de luta armada e, por isso mesmo, um veículo muito importante para espalhar aos jovens, nos grandes centros urbanos, as mensagens do PAIGC (Partido Africano para Independência de Guiné e Cabo Verde). “Musicalmente, também foi muito importante, porque foi a primeira banda em que as músicas eram cantadas em crioulo; antes, entendia-se que não era uma língua musical”, relata Delgado.

O PAIGC a que o músico se refere é um grupo fundado em 1956 pelo líder político Amílcar Cabral, responsável por iniciar a luta armada que culminou no fim do regime colonial implantado em Guiné-Bissau e Cabo Verde. “O meu país foi colônia por mais de quatro séculos. Na década de 1950 para 1960, organizou-se uma luta de libertação, a qual, infelizmente, fomos forçados a fazê-la de forma armada. Quando entendi que essa luta era para a minha liberdade, pela independência do meu país, me engajei nesse processo e acredito que está intrínseco à minha vida. Entendi que devo ter como fim criar, para que a minha sociedade melhore e avance. Isso implica que eu tenha que refletir em meus trabalhos e criações as minhas preocupações relativas à sociedade”, afirma o artista.

Ademais, o Cobiana Djazz musicou poemas escritos em língua crioula, como Mindjeris di pano preto (Mulheres de pano preto), do poeta conterrâneo de Ernesto Dabo, Armando Salvaterra, tido até hoje “quase como um segundo hino”. Os versos originais dizem: “Mindjeris di panu pretu/ ka bo tchora pena/ Si kontra bo pudi/ ora ki un son di nos fidi/ bo ba ta rasa/ pa tisinu no kasa/ Pabia li ki no tchon/ no ta bai nan te/ bolta di mundu/ i rabu di pumba” (“Mulheres de pano preto/ não chorem mais/ Se puderem/ quando um de nós ficar ferido/ rezem/ para trazer-nos à nossa casa/ Porque aqui é nossa terra/ não importa aonde formos/ a volta do mundo/ é um rabo de pomba”). Através da representação simbólica, proveniente da linguagem literária, o poema trata da persistência, do sentimento de pertença e da busca pela libertação do povo guineense. Em 1973, Ernesto foi novamente pioneiro na história da música, quando, com o Djorson,lançou o primeiro single da história da música do país.

LITERATURA
Como escritor, durante muito tempo Ernesto Dabo publicou seus textos em revistas, periódicos e, mais recentemente, em blogues. A primeira edição do livro Mar misto deu-se somente em 2011. “Eu sempre escrevi, mas no meu país não havia tantas editoras e, quando surgiram, não havia grandes apoios para os escritores editarem livros. Então, eu ia escrevendo e guardando, de vez em quando colaborava ou participava em antologias, mas sempre com esperança de um dia publicar os meus poemas, da maneira que quisesse. Em 1998, houve uma maldita guerra civil no meu país. Saquearam as casas, destruíram tudo. Depois da guerra, quando voltei para casa, revistando os papéis, encontrei algumas folhas com poemas. Se a memória não me falha, são poemas desde 1979”, conta.

Foi a triste guerra civil que incitou a urgência para a publicação de uma versão impressa do seu livro. Mas, além disso, serviu de inquietação para que os destroços e dificuldades dos conflitos fossem retratados e transformados em linguagem poética, como nos versos impregnados de angústia de Cidade: “Flocos de chama letal/ partiam de canos aos céus/ Um par de olhos que não via o engodo de pão para se calar/ girava na face nascente/ faiscando temor/ envolto em pó e questão”.

A linguagem literária, como uma das possíveis fontes de registro de uma sociedade, é feita a partir de interpretações e é fundamental para que os indivíduos (re)conheçam suas raízes. Perceber a obra como documento pode ser um caminho, sem negar seus valores estético-literários. De maneira complexa, política, história, sociologia, literatura e outros tantos campos coexistem e se amalgamam na criação.

Os meses da guerra civil de 1998 também lhe tiraram grande parte de seus textos e documentos de pesquisa sobre a cultura do país. “Perdi todo o meu arquivo, coisas que eu tinha feito da cultura popular, entrevistas, um acervo de dezenas de anos. Com isso, pensei que, haja guerra ou não, tenho que publicar e não esperar mais. Peguei meus papéis todos e comecei a organizar, quando cheguei a um volume razoável de poemas, decidi que ia editar.”

Das particularidades de Mar misto (2011), a que revela muito do pensamento de seu autor a respeito das questões linguísticas e, portanto, culturais, é a escolha por um livro bilíngue (em crioulo e português). Como faz questão de pontuar, não há razões para criar conflitos entre idiomas, porque isso já seria uma maneira de hierarquização. “São poemas em português e em crioulo porque eu uso as duas línguas. Não vou pô-las em competição. As duas me fazem falta, cada uma com preponderâncias em um aspecto. A minha língua, o crioulo, é o veículo principal, ‘o DNA da minha cultura’, parafraseando meu amigo Gilles Vigneault, pensador canadense”, explica o artista. Mesmo com a divisão, há versos em português na seção de poemas em crioulo e vice-versa, talvez pelo traço da oralidade em que essas fronteiras são enfraquecidas.

“Assim como Dabo, Odete Semedo (poetisa, ex-ministra da Cultura da Guiné-Bissau e autora de No fundo do canto)e Tony Tcheka fizeram questão de escrever em suas línguas. A primeira língua é sua pátria, como disse Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa). Por outro lado, é preciso que a mensagem chegue também em outros idiomas, que, no caso dele, é o português. A mensagem é para ir pro mundo, porque a África fala para o mundo, duas línguas ampliam”, afirma Zuleide Duarte, professora de Literaturas Africanas da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em entrevista à Continente.

A quantidade de poemas também foi definida pela preocupação do autor de que seus versos fossem realmente lidos pela população de seu país. “Não pus muitos poemas, porque tenho que ser realista, o hábito da leitura no meu país está a começar agora. Se você vai publicar livros com 200 ou 300 poemas, pouca gente vai ler. Um caderno de 30, 40 poemas deu resultado, porque as pessoas com menos tempo leram os meus poemas e o fato de ser um livro bilíngue também caiu muito bem”, explica Dabo.

A obra do poeta, assim como a de Abdulai Sila, Odete Semedo, Felix Siga e Huco Monteiro, entre tantos outros escritores e artistas da Guiné-Bissau, é substancial para se conhecer a riqueza dessa diversidade étnica e linguística que há no país. Muito dos nossos saberes e heranças culturais vêm desse e de outros países africanos – inclusive dos que não falam língua portuguesa –, e a literatura é um dos alicerces para reconhecermos os outros e, assim, refletirmos sobre nós mesmos. “A África está cada vez mais senhora de si, como sociedade multiétnica e plural. Está se construindo uma base econômica mais fortalecida”, afirma Ernesto Dabo. Seu livro Mar misto é dessas leituras que despertam o leitor para o questionamento da perspectiva hegemônica na qual a história costuma ser contada e para as relações linguísticas. Conhecer as literaturas de cada um dos países africanos – além dos latino-americanos – é, sobretudo, nos familiarizar com as diferenças, pois como dizem estes versos de Dabo: “À tua porta há rosas./ Colhe uma e com ela muda o mundo”. 

 

Publicidade

veja também

Gabriel García Márquez

Laerte: um olhar sobre si mesma

Moçambique: relato de uma mzungu