Como escritor, durante muito tempo Ernesto Dabo publicou seus textos em revistas, periódicos e, mais recentemente, em blogues. A primeira edição do livro Mar misto deu-se somente em 2011. “Eu sempre escrevi, mas no meu país não havia tantas editoras e, quando surgiram, não havia grandes apoios para os escritores editarem livros. Então, eu ia escrevendo e guardando, de vez em quando colaborava ou participava em antologias, mas sempre com esperança de um dia publicar os meus poemas, da maneira que quisesse. Em 1998, houve uma maldita guerra civil no meu país. Saquearam as casas, destruíram tudo. Depois da guerra, quando voltei para casa, revistando os papéis, encontrei algumas folhas com poemas. Se a memória não me falha, são poemas desde 1979”, conta.
Foi a triste guerra civil que incitou a urgência para a publicação de uma versão impressa do seu livro. Mas, além disso, serviu de inquietação para que os destroços e dificuldades dos conflitos fossem retratados e transformados em linguagem poética, como nos versos impregnados de angústia de Cidade: “Flocos de chama letal/ partiam de canos aos céus/ Um par de olhos que não via o engodo de pão para se calar/ girava na face nascente/ faiscando temor/ envolto em pó e questão”.
A linguagem literária, como uma das possíveis fontes de registro de uma sociedade, é feita a partir de interpretações e é fundamental para que os indivíduos (re)conheçam suas raízes. Perceber a obra como documento pode ser um caminho, sem negar seus valores estético-literários. De maneira complexa, política, história, sociologia, literatura e outros tantos campos coexistem e se amalgamam na criação.
Os meses da guerra civil de 1998 também lhe tiraram grande parte de seus textos e documentos de pesquisa sobre a cultura do país. “Perdi todo o meu arquivo, coisas que eu tinha feito da cultura popular, entrevistas, um acervo de dezenas de anos. Com isso, pensei que, haja guerra ou não, tenho que publicar e não esperar mais. Peguei meus papéis todos e comecei a organizar, quando cheguei a um volume razoável de poemas, decidi que ia editar.”
Das particularidades de Mar misto (2011), a que revela muito do pensamento de seu autor a respeito das questões linguísticas e, portanto, culturais, é a escolha por um livro bilíngue (em crioulo e português). Como faz questão de pontuar, não há razões para criar conflitos entre idiomas, porque isso já seria uma maneira de hierarquização. “São poemas em português e em crioulo porque eu uso as duas línguas. Não vou pô-las em competição. As duas me fazem falta, cada uma com preponderâncias em um aspecto. A minha língua, o crioulo, é o veículo principal, ‘o DNA da minha cultura’, parafraseando meu amigo Gilles Vigneault, pensador canadense”, explica o artista. Mesmo com a divisão, há versos em português na seção de poemas em crioulo e vice-versa, talvez pelo traço da oralidade em que essas fronteiras são enfraquecidas.
“Assim como Dabo, Odete Semedo (poetisa, ex-ministra da Cultura da Guiné-Bissau e autora de No fundo do canto)e Tony Tcheka fizeram questão de escrever em suas línguas. A primeira língua é sua pátria, como disse Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa). Por outro lado, é preciso que a mensagem chegue também em outros idiomas, que, no caso dele, é o português. A mensagem é para ir pro mundo, porque a África fala para o mundo, duas línguas ampliam”, afirma Zuleide Duarte, professora de Literaturas Africanas da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em entrevista à Continente.
A quantidade de poemas também foi definida pela preocupação do autor de que seus versos fossem realmente lidos pela população de seu país. “Não pus muitos poemas, porque tenho que ser realista, o hábito da leitura no meu país está a começar agora. Se você vai publicar livros com 200 ou 300 poemas, pouca gente vai ler. Um caderno de 30, 40 poemas deu resultado, porque as pessoas com menos tempo leram os meus poemas e o fato de ser um livro bilíngue também caiu muito bem”, explica Dabo.
A obra do poeta, assim como a de Abdulai Sila, Odete Semedo, Felix Siga e Huco Monteiro, entre tantos outros escritores e artistas da Guiné-Bissau, é substancial para se conhecer a riqueza dessa diversidade étnica e linguística que há no país. Muito dos nossos saberes e heranças culturais vêm desse e de outros países africanos – inclusive dos que não falam língua portuguesa –, e a literatura é um dos alicerces para reconhecermos os outros e, assim, refletirmos sobre nós mesmos. “A África está cada vez mais senhora de si, como sociedade multiétnica e plural. Está se construindo uma base econômica mais fortalecida”, afirma Ernesto Dabo. Seu livro Mar misto é dessas leituras que despertam o leitor para o questionamento da perspectiva hegemônica na qual a história costuma ser contada e para as relações linguísticas. Conhecer as literaturas de cada um dos países africanos – além dos latino-americanos – é, sobretudo, nos familiarizar com as diferenças, pois como dizem estes versos de Dabo: “À tua porta há rosas./ Colhe uma e com ela muda o mundo”.