Com Hamlet, a companhia recifense novamente mergulha numa dramaturgia consagrada. Há três anos, eles deram uma pausa na investida em textos autorais e adaptaram Viúva, porém honesta, de Nelson Rodrigues, nas comemorações do centenário do anjo pornográfico. Foi um experimento premiado, o qual tensionou a farsa teatral através do jogo cênico construído nos limites do real e do criado, marca da sua linguagem teatral.
Dessa vez, a decisão de tomar o clássico shakespeariano como base para a nova montagem do grupo veio após a leitura de variados textos – muitos deles clássicos. “Durante o processo de montagem de O ano em que sonhamos perigosamente (2015), para chegar ao fragmento que usamos de Tchekhov (o grupo pinçou cenas de O jardim das cerejeiras e as usou na encenação), passamos por outros autores, inclusive Shakespeare”, lembra o ator Giordano Castro. A decisão de escolher Hamlet como uma nova montagem, conta ele, foi do diretor Pedro Wagner.
Não é a primeira vez que a companhia recifense pega nuances do texto do dramaturgo inglês. Em 2010, em Um torto, o Magiluth utilizou Hamlet na dramaturgia. Naquele momento, o grupo se apoderou das questões existenciais do personagem de Shakespeare. “Um torto nos levava a entender o indivíduo. Era uma fase pessoal nossa de querer nos conhecer. Era olhar para nósmesmos. E ali utilizamos um pedaço de Hamlet”, pontua Castro.
Sete anos se passaram daquela experiência e, como observa o ator, os questionamentos do grupo também caminham em outras esferas. Se, antes, o olhar sobre a identidade individual era uma prerrogativa, agora, a reflexão permeia as questões sociais: o indivíduo como parte de um coletivo. “O mundo e a sociedade quebraram muito rápido. Os abusos eram velados; agora, as pessoas não escondem nem os preconceitos. Sabemos quem são nossos inimigos, eles têm nome. O conservadorismo não tem mais medo de se esconder. E Hamlet nos aponta para isso: ele sabe quem é o assassino do pai e pergunta: como lidar com tudo isso? Como agir?”
POLÍTICA
Primeira peça escrita pelo dramaturgo no chamado Período Trágico, o texto tem referência nas canções medievais islandesas. Na obra, o rei foi morto pelo próprio irmão, Claudio, que assume o trono e se casa com a viúva, Gertrude. Hamlet, o príncipe, descobre o crime ao conversar com o fantasma do pai e começa um plano de vingança para desmascarar toda a armação do seu tio, e agora padrasto. Nesse sentido, as problematizações da ética e da vingança fazem com que Hamlet seja comparado ao momento político atual brasileiro. As questões de poder e traição presentes no texto de Shakespeare possibilitam associações plausíveis ao processo de saída da presidente Dilma Rousseff do seu cargo e a tomada de posto pelo seu até então parceiro e vice Michel Temer.
Se montar essa peça nesse contexto é uma decisão panfletária do Magiluth em defesa da sua posição ideológica e política, Giordano Castro se antecipa a dizer que não, mas ainda assim o grupo “não tem medo”, ressalta. “Acho incríveis os trabalhos de grupos que se posicionam veementemente, como a recente montagem da Cia. do Tijolo (SP) sobre Dom Helder (O avesso do claustro, 2016). Os trabalhos do Magiluth têm posicionamento político claro, mas a gente acaba fazendo um trabalho que estimula mais no campo do provocar para a reflexão. Não tomamos partido de nada.”
O fazer político do Magiluth, completa Castro, está mais explícito na forma de se viver o teatro. “A gente entende que os nossos posicionamentos e a nossa forma de fazer teatro já são uma posição política forte. A forma como o Magiluth se propõe a ser um grupo de profissionais que trabalha exclusivamente para o teatro, quando não é fácil nesta cidade, já mostra isso também. Estamos sempre no risco da corda bamba”, conta.
Hamlet – que, na verdade, ainda é um nome provisório, já que a peça também poderá se chamar Play Hamlet ou Brasil – tem sido trabalhado à custa do próprio Magiluth, sem patrocínio. “Não aprovamos o Funcultura. Estamos fazendo por conta própria”, esclarece Giordano Castro, referindo-se ao projeto apresentado ao Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, e reprovado.
“E isso é político também. Porque a gente se coloca a fazer o trabalho da forma que quer fazer, sem deixar que a situação política molde a nossa forma de trabalhar. É assim que acreditamos nos nossos trabalhos. Não é por falta de edital ou porque ele não contempla a visão política do estado, que não vamos fazer.”
MONTAGEM RIZOMÁTICA
A montagem em curso do Magiluth traz um processo de desconstrução, tanto no sentido de abordagem quanto estrutural. Sem querer levar à cena o texto à risca, o coletivo buscou recortes dramatúrgicos para fazer sua adaptação. A versão do grupo para a peça inglesa pretende criar uma sequência de cenas aparentemente isoladas que compõem um todo.
“Estou tentando trabalhar por uma perspectiva com a qual eu possa fazer a figura da direção não ser tão hierárquica. Não sei se a gente está diluindo como uma direção coletiva, mas tentando, dentro da estrutura, fluir menos hierarquizado. O que já existe na dinâmica do grupo, mas não tão refletida”, explica o diretor Pedro Wagner. “Precisamos ter consciência mais coletiva e horizontal. E uma alternativa foi tentar tirar a hierarquização do texto, por exemplo, no sentido dominante. Começamos a mexer na estrutura da dramaturgia, dos seus atos, e dividir em 15 a 18 movimentos. E isso nos faz pensar na ideia de movimento.”
Essa percepção “rizomática” da obra, como Wagner se refere à construção, faz com que as cenas independentes sejam coerentes com o contexto geral da peça. São possibilidades de recortes da dramaturgia que tiram do centro o protagonista e dão novas nuances às questões humanas das outras personagens e do próprio ambiente em que se passa a história, como os lugares assumidos pelas mulheres na trama. Por exemplo, Ofélia, a filha de Polonius, o conselheiro do reino, que é usada por Hamlet psicologicamente e cujos abusos do rei para com ela são ignorados pelas outras pessoas. “Há uma cena na peça em que Ofélia relata a Polonius que Hamlet estava enlouquecido e foi agressivo com ela. E o pai diz a filha ‘precisamos levar para o rei’, mas como situação episódica e não como uma defesa”, exemplifica o diretor, lançando luz para um olhar também pontuado por questões feministas, que deve estar presente na montagem.
A possibilidade de deixar Hamlet no mesmo patamar das outras figuras da história faz parte também do jogo de abertura entre os atores e a plateia, típico da linguagem do Magiluth. “Quando se diz, a princípio, ‘vamos fazer Hamlet’, você pensa no personagem Hamlet, mas acho tendencioso pensar o resto como acessório. Existe um ambiente nesse espaço ficcional, que é a Dinamarca, que pode servir como jogo para esses atores, mais do que desenvolver essa história que todo mundo conhece”, conta Pedro Wagner. Assim, o reino, lugar fictício, pode ter seu sentido ampliado e assumir uma correlação com o Brasil ou até mesmo com a América Latina.
OUTRAS MONTAGENS
Shakespeare não inventou Hamlet, dizia a crítica de teatro Barbara Heliodora, que morreu em 2015 e era a maior sumidade brasileira na obra do inglês. Shakespeare, explicou Barbara, transcendeu Hamlet. Isso porque, completa ela, o que apenas poderia ser uma história de vingança se tornou uma avaliação interna, uma autoanálise do príncipe para fazer-se entender e se justificar da necessidade de matar o seu tio Claudio.
O professor e pesquisador da UFPE Luís Reis ressalta, no entanto, que a universalidade de Hamlet não está na sua leitura política, mas nas percepções psicanalíticas levantadas pelo autor. “Esse raciocínio ligando a peça à política é pertinente, porque a cada momento da história a obra vai ser puxada por essas pernas. Mas ali, na trama, há outras camadas sobre o homem que são universais: a inveja, a inquietação, a depressão”, destaca Reis.
A complexidade e a riqueza dramatúrgica da peça possibilitam inúmeras interpretações, em variados estilos cênicos. Uma das mais aclamadas montagens de Hamlet, no Brasil, estreou em janeiro de 1948, com direção de Hoffmann Harnish, pelo Teatro de Estudantes. A peça foi apresentada no Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, e tinha no papel principal o então jovem ator Sergio Cardoso, celebrado por crítica e público pela sua atuação.
O Teatro Oficina também já experimentou a obra. Foi em 1993, na reabertura da sede do grupo paulista. Na sua adaptação, José Celso Martinez Correia imprimiu críticas à sociedade patriarcal e à desigualdade no país. A montagem foi filmada e está hoje disponível no site Global Shakespeare, página colaborativa que reúne material sobre espetáculos do mundo inteiro com textos de sua autoria.
A mais recente e famosa montagem nacional foi em 2008, com direção de Aderbal Freire-Filho e protagonizada por Wagner Moura, que dividiu a opinião da crítica. Barbara Heliodora, além de não gostar da adaptação, que tirou as rimas do texto, considerou a montagem “mais do mesmo”. O diretor lhe respondeu, em carta aberta, dizendo que, ainda assim, dedicava a ela a criação. Já o crítico Sergio Coelho, da Folha de S.Paulo, chegou a dimensionar Moura como o “Hamlet da sua geração”. “Não busca ser original, mas eficiente, e faz um apelo contagiante pela própria grandeza do teatro”, pontuou Coelho. No Recife, o professor Luís Reis lembra que uma instigante versão da trama shakespeariana foi feita pelo encenador João Denys, em 2009. O trabalho trazia uma releitura do texto, a partir do diálogo entre Hamlet e o Coveiro. Enquanto remexiam o túmulo, fazendo ressurgir os questionamentos sobre a morte e a traição, os personagens criavam uma espécie de nova história a partir do clássico inglês.