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“Acontece hoje uma revolução silenciosa”

Nesta entrevista, o músico e compositor André Freitas fala sobre as ações realizadas no Paço do Frevo e as principais saídas para os entraves que o gênero vive atualmente

TEXTO Débora Nascimento

01 de Fevereiro de 2017

O músico e produtor André Freitas

O músico e produtor André Freitas

Foto Alcione Ferreira

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 194 | fevereiro 2017]

Responsável por planejar, coordenar, executar e acompanhar as atividades da Escola de Música do Paço do Frevo, que funciona em casarão histórico na Rua da Guia, s/n, no Bairro do Recife, André Freitas é um dos nomes por trás do sucesso da instituição que, neste mês, completa três anos de fundação. Nesta entrevista, o músico e compositor formado em Música pela UFPE, produtor musical e ex-professor do Conservatório Pernambucano de Música, fala sobre as ações realizadas e as principais saídas para os entraves do gênero musical.

CONTINENTE Qual é o entrave do frevo?
ANDRÉ FREITAS O frevo de rua, na rua, está num risco gravíssimo. Ele está sofrendo com questões econômicas, a falta de uma política pública dedicada a isso, que contemple esse universo.

CONTINENTE Quais os problemas do frevo de rua, exatamente?
ANDRÉ FREITAS A grande questão é a falta da sistematização do método e de ter um banco de partituras com repertório. Ninguém libera o material. Os músicos, que são iniciantes, param de estudar muito cedo. Falo do perfil que a gente atende aqui, no Paço do Frevo – aí estou falando exclusivamente de frevo de rua, porque o recorte pra frevo de bloco é outro. O músico de frevo de rua tem entre 19 e 24 anos, Ensino Médio incompleto, recebe até três salários-mínimos de renda. Esse cara, geralmente, não consegue entender de forma artística o seu ofício. Como não acessa os arranjos, tira de ouvido de forma errada o que é feito numa formação de orquestra. Tem um naipe de trompetes às vezes em uníssono, mas em outras estão harmonizando, o primeiro com o terceiro, o segundo com o quarto, assim como o naipe de trombones, os saxofones que deveriam ir do grave até o agudo, do barítono ao tenor; há dois saxes altos e um soprano e a tuba. Eu tinha falado (no debate sobre música, publicada na edição de maio de 2015 da Continente) que a tuba virou o mico-leão-dourado. Não é que o instrumento vá sumir, ele vai continuar nas formações militares, nas bandas civis. Está sumindo da formação em orquestras do frevo de rua. Na rua, dificilmente você encontra um tubista que seja um músico competente, que domine e realmente execute o que está lá na concepção do arranjo original ou numa releitura, quando encontra. E isso já implica uma questão geracional, os que tocam o instrumento são mais de uma certa idade. Então, a orquestração do frevo de rua, na rua, está mudando, pelas escolas, por questões mercadológicas, mas também por esse registro de preço, que existe numa formatação ingrata do mercado via poderes públicos. Hoje, uma orquestra de nível A, top, não recebe mais do que 3 mil reais. A orquestração original demandaria 18 músicos. No carnaval do ano passado, anotei aqui, na frente do Paço, uma orquestra com sete – a tuba você já não encontra, tem um sax alto e um tenor, um trombone e um trompete, todos tocando, em uníssono e desafinados, 10 ou 12 temas que são recorrentes. Quando tocam Fogão,emendam com Vassourinhas e, depois, com Parabéns pra você, e é isso aí.

CONTINENTE E os foliões não notam…
ANDRÉ FREITAS Acho que é mais grave do que isso. Os turistas questionam “Isso é frevo?”. Então, a forma instrumental na rua está num momento grave.

CONTINENTE Você percebe isso desde quando?
ANDRÉ FREITAS Nos três anos da plataforma de observação privilegiadíssima que é o Paço do Frevo. Vou fazer um livro, estou analisando o desenvolvimento (dessa música) a partir do século XX até a nova geração que está apontando, que é onde entra o frevo de rua no palco, que vai muito bem, obrigado, não só pelas duas orquestras de maior projeção, a da Bomba e a de Spok, mas, simbolicamente, a própria presença de Wynton Marsalis (o músico norte-americano se apresentou em palestra no Paço com o Maestro Spok, em 2015) aqui. Foi como se tivessem descoberto que a última mina de ouro está no Recife. Essa repercussão de sua vinda alcança a parte acadêmica, que tem uma lacuna gigantesca. Mas, hoje, a gente começa a acompanhar músicos e pesquisadores de fora de Pernambuco fazendo mestrado e doutorado sobre o frevo. Recebemos japoneses, italianos, portugueses que estão pesquisando o tema a distância. Então, a sistematização muito provavelmente acontecerá por algum gringo.

CONTINENTE Fale um pouco sobre o encontro de Wynton Marsalis no Paço do Frevo.
ANDRÉ FREITAS O que trouxe Wynton Marsalis dos Estados Unidos até aqui foram, sobretudo, as nossas identidades com New Orleans, porque não é parecido, é igual. A única diferença é a articulação, a linguagem, o fraseado, o sotaque, porque o resto é matemática. Eles vão pensar em quatro, a gente vai pensar em dois. Mas é isso que vamos enxergar, “ouvir”, melhor dizendo, acho que em mais dois anos. Pela agenda da (orquestra nova-iorquina) Lincoln Center, em relação à música brasileira, eles chegaram até Hermeto, que tem 80 anos. Já percebemos nitidamente a influência da música cubana, africana, europeia na sonoridade da Lincoln Center, mas, daqui a uns dois anos, vamos notar a influência da música de Pernambuco. Eu vi isso acontecer aqui dentro, troca de material, de bocal, de método, disco. Isso não vai ser só na orquestra, vai ser também nos subgrupos, nos quartetos, nos trios, nos quintetos de metais. Então, está acontecendo hoje uma revolução silenciosa, e só falei do frevo de rua. Porque o frevo de bloco é outro universo, outra questão.

CONTINENTE E em relação à produção e execução da música de frevo desvinculada do curto período do Carnaval?
ANDRÉ FREITAS O que acontece é que o problema teria várias frentes, as escolas de música do estado não reconhecem nenhuma parcela significativa da música popular, quanto mais do frevo. Esse problema tem a ver com formação. Claro que, da minha geração para cá (eu me formei em 1996, já se vão 21 anos), passou a existir um núcleo de música popular na UFPE e, agora, uma Orquestra de Frevo Experimental. O Conservatório (Pernambucano de Música) – através de iniciativas muito valorosas de Marcos FM, que foi do Treminhão e está na Orquestra Quebramar – tem uma cadeira de Análise Estética do Frevo. Nino, filho do (maestro) Duda, fez a Semana do Frevo dentro do Conservatório. Algumas soluções já surgem, mas quando você pensa que um músico vai ter um tempo médio, como um saxofonista, do início dos estudos até estar na performance de 10 anos, então a urgência seria de pensar como desenvolver um mercado anual para o frevo agora. A sazonalidade ainda é o grande problema. E o que é o mercado, hoje? O receptivo do aeroporto? O receptivo de agência de turismo, com sete músicos e dois casais de passistas? A gente está falando de uma música de formação de orquestra que tem tantos elementos musicais, tanto refinamento, que ela pode e deve, sim, ser executada em sala de concerto.

CONTINENTE De que forma o poder público poderia contribuir neste sentido?
ANDRÉ FREITAS Ele tabela por baixo o valor, não existe a saudável disputa do mercado. O músico poderia estudar, formar uma boa orquestra e disputar um mercado, cobrar seu preço. Mas se o cachê máximo é de R$ 3 mil… Aí o músico, que tem uma boa agenda de contatos, chama cinco músicos novos e paga entre R$ 80 e R$ 120 uma tocada de três horas no Carnaval. Geralmente, eles fazem de três a quatro saídas, tocam de 9 a 12 horas por dia, até o lábio sangrar. Passa o Carnaval, não tem mais mercado, o músico guarda o instrumento, não faz manutenção. No ano seguinte, o instrumento não afina.

CONTINENTE Teria como saber quantas orquestras de frevo existem hoje?
ANDRÉ FREITAS Vai ser sempre uma estimativa, porque existe um catálogo já desatualizado.

CONTINENTE Se os músicos fazem migrações em orquestras, é difícil fazer essa conta.
ANDRÉ FREITAS Migração? Eles vão deixar o contratante na mão, se alguém der mais 10 reais para eles tocarem! Isso acontece aqui na frente, durante o Carnaval, o bloco está parado na concentração, e um cara já vem com a camisa de outro grupo na mão: “Quanto é? Oitenta reais? Te dou 90!”. Isso não tem a ver com música, isso não é certo, errado, bom nem ruim, isso é uma parcela do mercado.

CONTINENTE Mas há alguns maestros que conseguem manter uma orquestra fixa.
ANDRÉ FREITAS Pouquíssimos.

CONTINENTE São quantos?
ANDRÉ FREITAS Em Olinda, três: Oséas, Carlos e Lessa. Todos os músicos sempre se referem a esses três como os melhores de Olinda. Estou pesquisando Oséas e Spok, são modelos diferentes. Oséas não vai atrás de edital nenhum. Ele cobra o preço dele, dependendo do quanto você tenha de orçamento, ele vai sair com 20 a 35 músicos. Ele não sai com uma tuba, ele sai com quatro, dois surdos, duas percussões, dois caixas, três pandeiros. Oséas é o que o carnaval de rua foi um dia. Então, a experiência de você sair na Pitombeira, no Eu Acho é Pouco, Siri na Lata, que são geralmente os contratantes dele, vai ser uma experiência única, a verdadeira experiência do que é ou do que foi o carnaval de rua.

CONTINENTE O Paço do Frevo tem registrado o material das experimentações nele realizadas?
ANDRÉ FREITAS A memória do museu está toda registrada, é isso que, dessa plataforma privilegiada, me faz afirmar: não tem crise criativa nenhuma. O frevo sofreu grandes impactos ao longo de sua trajetória. O último foi o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade (concedido pela Unesco). Essa movimentação dos 100 anos do frevo (comemorados em 2007), conjugada com o momento de expansão econômica vivido, refinaria, montadora, Hemobrás, estaleiro, gerou um volume tão gigantesco de recursos em Pernambuco, que “sobrou” para a cultura. E essa conjunção perfeita de tempo possibilitou a criação do Paço do Frevo, porque faltava um espaço de convergência e convivência, como foi a (gravadora) Rozenblit, na qual todo mundo se encontrava.

CONTINENTE E agora está ocupando o espaço que foi ocupado pela Rozenblit.
ANDRÉ FREITAS Sim, porque aqui no Paço recebemos de Claudionor Germano a quem você imaginar. O maestro Clóvis Pereira sai de casa e vem aqui pra tomar café, comer um bolo de chocolate, que ele adora, fora toda uma geração de músicos que está produzindo aqui dentro, que a gente está fomentando. Às vezes, para alimentar a programação artística, o cara tem um grupo de música instrumental, mas ele não tem frevo no repertório, disponibilizamos a infraestrutura, ele ensaia sem custo, desenvolve o repertório e, em troca, dá uma apresentação pra gente. A partir daí, já tem um novo show pra vender, o de frevo.

CONTINENTE Como o público responde às experimentações no frevo realizadas no Paço?
ANDRÉ FREITAS Maravilhosamente bem. A prova é a própria frequência da Hora do Frevo (pocket show, toda sexta, ao meio-dia), que foi pensada na busca de uma alternativa (para a dificuldade de se viabilizar espetáculos desse gênero), já que uma orquestra é caríssima. Não tem como! Isso só aumenta a relevância de Spok e de Forró, que conseguem circular com orquestra, hoje. Se a gente fosse pensar numa figura de linguagem, Marsalis, quando passou aqui, foi o Zeppelin, mas Spok chegando no Lincoln Center – ele já tinha vindo da Berklee (College Music, de Boston) e 16 cidades, fizeram quatro concertos, dois por noite na sala 2 do Lincoln Center, porque na 1 estava a orquestra Lincoln Center, acochou todo mundo na coxia – é, pra mim, quando o homem pisou na Lua.

CONTINENTE Como é a relação do Paço do Frevo com os outros grandes maestros do frevo?
ANDRÉ FREITAS Já no primeiro ano, conseguimos construir esse sentido de pertencimento, porque isso aqui não é nosso, isso aqui é deles. Estou aqui de passagem, estamos, eles vêm pra casa. Então, isso foi muito gratificante, mais do que qualquer outra coisa, foi o respeito, e aí eu amplio para toda a comunidade. No ano passado, exatamente nesse período, estávamos no processo de desmobilização, o contrato não havia sido renovado, então, todo mundo assinou aviso prévio.

CONTINENTE Isso foi parar na imprensa.
ANDRÉ FREITAS Quando isso vazou, foi muito reconfortante ver postagens e todo mundo que vinha aqui à porta dizendo “a gente não vai deixar”, “não pode”, isso ampliado até para os mestres. Clóvis Pereira, por exemplo, foi o primeiro professor de orquestração e arranjo, ainda em 2014, Maestro Duda está sempre aqui, Guedes não, por conta do AVC. Mas todos eles estão aqui, de uma forma ou de outra. Edson Rodrigues, quando vai resolver alguma coisa no centro da cidade, deixa o sax dele com a gente, no centro de documentação. Penso que, para eles, a questão mais difícil disso, pensando em outro impacto, teve a ver com a desarticulação dos carnavais sociais, já que cada clube tinha a sua orquestra, Sport, Internacional. Então, eles acabaram perdendo mercado. Os únicos que ainda circulam no formato do carnaval atual são Duda e Ademir, mesmo assim sazonalmente. Já essa outra geração, por exemplo, Ivan do Espírito Santo, 45, músico da banda da Aeronáutica, é a essência pedagógica da Henrique Dias, com 60 anos de fundação. Spok e Forró já se apresentam com maior frequência. Marcos FM, se for pensar essa geração do meio, de 45 anos, Nilson Lopes, com a Banda Sinfônica do Centro de Criatividade de Olinda, ou como arranjador oficial da Banda Sinfônica da Cidade do Recife, deve ser o próximo professor de orquestração e arranjo do Paço. Entendemos que essas disciplinas devem ser ministradas por um cara desses, cada um é uma escola em si. Ademir e Guedes são os que têm a maior ligação com a origem militar, do dobrado, cadenciado. Duda, na minha leitura, foi o que recebeu mais influência da música norte-americana. A música dele tem tudo do cromatismo, de nota de passagem, antecipação, substituição. Então, ele cria uma linguagem harmônica, mais contemporânea. Clóvis é o mais erudito. Quando você vai estudar, ouve a influência da Berklee, e ainda tem uma parcela do repertório dele, que é esse seu período lá, que ninguém conhece. Curiosamente, a menor parcela da obra de Clóvis é justamente o frevo. Então, está tudo interligado. 

 

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