Por dentro do passo
Passistas, grupos e instituições atuam durante todo o ano para dar mais expressão e consolidar as várias formas de pôr o frevo em movimento
TEXTO Valéria Vicente
01 de Fevereiro de 2017
Grupo Guerreiros do Paço estimula a prática da dança frevo ao longo de todo o ano
Foto Eduardo Araújo/divulgação
[conteúdo vinculado ao especial da ed. 194 | fevereiro 2017]
Qualquer pessoa que já brincou carnaval entre Olinda e o Recife, sabe que não é preciso nenhuma técnica para dançar frevo seguindo as orquestras. Mas o passo, denominação que o teatrólogo Valdemar de Oliveira disseminou para a dança do frevo de rua, exige dedicação e força física. Não são poucos os que se aventuram entre tramelas e tesouras, mas, assim como outras áreas da dança, poucos compreendem a dedicação de tempo e estudo que implica ser e manter-se passista. Para os passistas, amadores e profissionais, o frevo faz parte de suas vidas praticamente o ano inteiro, pois eles criam estratégias para isso acontecer. Para além disso, defendem a possibilidade de essa forma de viver o frevo se expandir para mais pessoas e fazer parte de um mercado que retribua financeiramente a dedicação que fazem ao passo.
O Mestre Nascimento do Passo defendia que existem tantos passos quanto pernambucanos, mas hoje, dentro desse universo, também existem estilos, ou escolas estéticas. Entre os que se dedicam à dança, destacamos quatro escolas, cuja forma de dançar foi construída através de diferentes influências desde a segunda metade do século XX. Ressaltando que, dentro dessas escolas, existem ainda outras variedades de dança.
O passista de grupo é aquele que aprende e ensaia para acompanhar troças e clubes carnavalescos. Os mais antigos estão no Sítio Histórico de Olinda, como a Cia Brasil por Dança, ligada ao Clube Vassourinhas, os grupos Acauã e Frevança, ligados à Troça Cariri, o grupo Frevo, Capoeira e Passo e a Associação Frevolinda. Os líderes desses grupos foram formados pelo Mestre Nascimento do Passo, quando atuou em Olinda, na década de 1980. Hoje estão incorporados às tradições da cidade. Suas coreografias são apresentadas em filas que repetem movimentos sincronizados para atravessar a multidão e garantir fôlego nos longos percursos pelas ladeiras. Não à toa, esses grupos são formados, em geral, por jovens e crianças, sua forma de fazer o passo é bastante enérgica, destacando as exigências de força e agilidade, e apresentam a corporalidade com menos influência de danças acadêmicas, como o balé.
O Balé Popular do Recife, com suas criações na década de 1970 e 1980, influenciou a forma de apresentação do frevo, enfatizando coreografias em conjunto e variações coreográficas geométricas no uso do espaço. Os grupos ligados a essa tendência, como a Cia. Perna de Palco, evitam incluir movimentos de outras danças, atendo-se à sistematização inicial.
Nos anos 2000, a Escola Municipal de Frevo criou um grupo de dança, coreografado pelo dançarino e professor Alexandre Macedo, que apresentou uma mistura da potência do frevo dos passistas formados por Nascimento do Passo com a elaboração coreográfica da dança cênica. A escola obteve destaque nacional e internacional e passou a difundir o frevo vigoroso, que desde então é o mais legitimado pelo Concurso de Passistas e nas divulgações oficiais.
Seguindo para outra direção, antigos professores da Escola Municipal de Frevo, que foram desligados após a saída do Mestre Nascimento do Passo, dedicaram-se à transmissão do método daquele passista e defendem um passo voltado para a expressão individual e à relação direta com a orquestração (não apenas com a marcação binária do frevo). Os grupos Guerreiros do Passo e Brincantes das Ladeiras são os principais estimuladores dessa forma de dança e suas aulas acontecem em praça pública. Seus integrantes podem se apresentar profissionalmente e propor criações artísticas, mas seu foco é o passo como expressão do carnaval de rua. No Carnaval, o objetivo é ir para blocos e troças com tradição, procurar as orquestras de maestros que apresentam repertório vasto, como Oséas, Babá e Lessa, e assistir aos melhores shows de frevo.
IMPASSES
Para que todas essas expressões do passo aconteçam no Carnaval, seus integrantes trabalham praticamente o ano todo, mas com pouco apoio ou visibilidade. Para o passista, mesmo o período momesco não é um espaço de grande reconhecimento. Por exemplo, não existe, durante a folia, nenhum espaço oficial pensado para a apresentação dessa arte. Os passistas estão sempre se ajustando à estrutura para os shows de música e seu destaque depende do interesse do artista. “Alguns músicos acham que o passista retira atenção do cantor e da orquestra, alguns chegam a recusar nossa apresentação”, declara Ana Miranda, que dirige a Escola Municipal de Frevo e a Cia Perna de Palco. Para dar visibilidade aos ganhadores do Concurso de Passista, Miranda criou o grupo Passistas Campeões, que se inscreve na programação do Carnaval, pois a premiação de R$ 1.800 (para o primeiro colocado) não é articulada com destaque nem na mídia, nem nos palcos.
Nem sempre pessoas que vão para o carnaval de Olinda reagem com bom humor à ideia de abrir espaço para os foliões desenvolverem o passo. “Uma vez um cidadão quis brigar comigo e eu não tenho ideia do que fiz com ele”, conta o passista Ferreirinha. “Em geral, as pessoas gostam e aplaudem, pedem pra gente continuar. Alguns maestros colocam a gente pra dançar junto do estandarte, mas a relação entre orquestra, público e passista ainda tem que se ajustar”, aponta. Esse é o tipo de trabalho educativo que as ações de salvaguarda poderiam fazer, explicando as especificidades do frevo em campanhas de amplo alcance, pois a multidão que toma as ruas é cada vez maior e diversificada em sua relação com o Carnaval.
Os envolvidos com o passo se ressentem de políticas públicas estruturadoras. “Falta espaço que não seja para turista ver”, reclama Ana Miranda, que defende que a Escola Municipal de Frevo deveria atuar através de extensões em outros bairros da cidade. Eduardo Araújo, diretor do projeto Guerreiros do Passo, reflete que a difusão do frevo como arte folclórica, vinculada apenas ao Carnaval, afasta a juventude. “Nada contra os grupos de swingueira, mas seu crescimento reflete a ausência do Estado no incentivo às artes regionais”. A esse respeito, o funcionário público e passista Victor Ramos acredita que o frevo “tem que se soltar, mas sem deixar o ciclo carnavalesco, como hoje existem eventos com samba e forró ao longo do ano. O frevo precisa se libertar dessa pecha de só ser música do Carnaval”.
Na observação de Daniela Santos, coordenadora de dança do Paço do Frevo, “existe um mercado a ser explorado, descoberto, com relação ao frevo”, e caberia aos passistas e gestores construírem espaços para a vivência do frevo ao longo do ano. Poucos são os passistas, como Renée Cabral, 27 anos, que conseguiram autonomia financeira como dançarinos e coreógrafos. “O frevo dá a oportunidade de você conquistar outros espaços. Viajar, conhecer muitos artistas. Estou muito feliz com o que conquistei com frevo”, comemora o passista, que dirige na Cia de Frevo do Recife e coreografa a quadrilha Dona Matuta.
Retomando as ideias de Nascimento do Passo, o passista Ferreirinha advoga a inclusão do frevo no currículo escolar. Mas, a curto prazo, ele também sugere: “Se nos projetos existentes para a saúde física, como a Academia da Cidade, houvesse aulas de frevo, já seria uma demonstração de valorização”. Espaços semanais para o frevo, como o Dançando na Rua, evento que oferece aulas e apresentações como estímulo para a dança de salão, foram sugeridos por vários dos artistas entrevistados.
CAPITAL HUMANO
Já na década de 1970, Nascimento do Passo percebeu que as mudanças da indústria fonográfica, que afetavam a produção de frevo ao longo do ano, eram uma ameaça para a sobrevivência da dança. A partir disso, decidiu dar aulas em praças e clubes e criar um método de ensino. A escolarização foi o caminho encontrado para transmissão do passo e é onde a maioria dos seus amantes encontram apoio para alimentar sua paixão. “Além da manutenção da técnica do frevo, fazer as aulas permite que você esteja sempre afiado pra dançar frevo. Já que é uma dança que exige muita resistência física, dançar o ano todo evita lesões”, explica o professor de dança Edson Vogue.
De acordo com Eduardo Araújo, o mestre Nascimento do Passo defendia que o frevo fosse vivido o ano todo, como ginástica, terapia e lazer. “A gente sempre achou que o Carnaval era um momento de culminância e não de iniciar o contato com o frevo”, explica. Quando soube da existência do grupo, o eletricista Laércio Olímpio, 45 anos, passou a frequentar as aulas. “Comecei a praticar frevo durante o ano todo quando conheci os Guerreiros, em 2012. Aquele folião de outrora passou a ser um passista folião.”
Um elemento que dificulta a disseminação do passo ao longo do ano é a falta de informação sobre a dança, junto com o conceito de que se trata de uma prática para pessoas jovens e musculosas, como são os personagens das peças publicitárias. Sobre o frevo, é comum ouvir “não tenho joelho pra isso”, “se eu dançar isso me quebro todo”.
Em 2008 realizei pesquisa com o fisioterapeuta Giorrdanni Gorki para identificar demandas físicas e facilitar o ensino do frevo. Constatamos a grande exigência muscular e articular do frevo e oferecemos indicações práticas e atividades complementares que podem facilitar o aprendizado dessa dança. Assim como qualquer atividade física, a escolha de profissionais capacitados permite trabalhar com segurança e ir aumentando aos poucos as exigências físicas. A vantagem do frevo em relação a outras danças sistematizadas é que desde a primeira aula, mesmo sem elaboração técnica, é possível ter acesso aos seus prazeres e suas alegrias.
Foi essa alegria que fez o funcionário público Ferreirinha procurar a escola de frevo aos 49 anos para reequilibrar a saúde (leia entrevista com ele no site da Continente). Oito anos depois (e oito quilos mais magro), exibe-se como exímio passista. “Apesar da exibição, eu danço para meu regozijo. Depois que comecei a tomar consciência do frevo, da riqueza que ele tem e do instrumento que ele é para intensificar meus impulsos vitais, tenho mais disposição, tranquilidade, percepção, equilíbrio”, afirma. Assim como Ferreirinha, outros passistas, como Gere da Sombrinha, 55, Laércio Olímpio,45, e Landinha, 52, desafiam os limites da idade através do frevo. “Eu sempre digo que a gente pratica a felicidade e o frevo é a ferramenta para isso”, diz Wilson Aguiar, 52, professor dos Brincantes das Ladeiras.
Iniciativas institucionais também são fundamentais para o estímulo do frevo ao longo do ano. Inaugurado em 2014, o Paço do Frevo é um Centro de Referência, mantido pela Prefeitura do Recife e Fundação Roberto Marinho. De acordo com a coordenadora de dança da instituição, Daniela Santos, o Paço oferece cursos livres e cursos de aperfeiçoamento profissional, além de apresentações artísticas e espaço para ensaios. Para Daniela, mesmo com as limitações financeiras, a chama do frevo se mantém acesa ao longo de todo o ano. “Nosso educativo é diariamente solicitado pelas escolas. Fora isso, os fazedores (líderes de agremiações, foliões, passistas e músicos) visitam, provocam, impulsionam nossas iniciativas”, defende Daniela.
A Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges é vinculada à Prefeitura do Recife e oferece turmas diariamente, nos níveis iniciante, intermediário e avançado. De acordo com censo realizado em 2015, a escola atende a 648 pessoas, de 5 a 70 anos, de diversas faixas econômicas e provindas de toda Região Metropolitana.
CRIAÇÃO NA TRADIÇÃO
Ao longo do ano, a tradição do frevo também é mantida através de criação e intercâmbio. Foi justamente o trabalho como profissional da dança contemporânea que me reaproximou dessa dança, que aprendo desde a infância. Encontrei no frevo um caminho para reconhecer e questionar os movimentos que me constituem e criar relações poéticas e políticas.
Outros passistas também encontram na participação em espetáculos espaço e estímulo para se manterem na dança. Por exemplo, a dançarina e cantora Flaira Ferro fez a reelaboração de sua atuação como passista construindo o espetáculo solo O frevo é teu?, participando da Antônio Nóbrega Cia de Dança, de São Paulo, e criando comigo, Spok e Lucas dos Prazeres, o trabalho Frevo de casa. Recentemente, os jovens passistas, ex-integrantes da Cia de Frevo do Recife, Júnior Veras e Rebeca Gondim se mantiveram pesquisando e apresentando o trabalho Memórias sensíveis através do frevo. Rebeca, que faz licenciatura em dança na UFPE e participa do Grupo Experimental, está investigando memórias do Carnaval relacionadas ao corpo feminino.
O Guerreiros do Passo, desde 2006, circula e aprimora o experimento O passo, e integrantes dos Brincantes das Ladeiras criaram o grupo Frevoeternoe o espetáculo Imaginário para dar vazão a suas ideias criativas. Essas práticas permitem o aprofundamento das escolhas estéticas, proporcionam contato com diferentes públicos e permitem a inserção do frevo em contextos que não são o Carnaval.
Em outras iniciativas, o frevo enquanto linguagem deixa de ser questionado, mas o corpo do passista é matéria para a dança. É o caso da olindense Iara Sales, que investigou relações entre os carnavais de Recife e Salvador, na performance Peba; e de Otávio Bastos, conhecido pelos 10 anos de atuação junto a Antônio Nóbrega, e que costuma desenvolver trabalhos com colaboradores de outras culturas, a exemplo do espetáculo It’s a woman’s world, em parceria com a artista finlandesa Hanna Vilander. Como espetáculo, vivência ou terapia, passistas vão costurando soluções para manter os traçados e trejeitos do frevo nas ruas e nos palcos e ampliar o conhecimento do frevo como potência para o desenvolvimento humano.