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Ingredientes e suas origens

Interesse em trabalhar com produtos de procedência conhecida estreita laços entre chefs de cozinha e pequenos produtores

TEXTO Eduardo Sena

01 de Fevereiro de 2017

Arte sobre fotos de divulgação

Arte sobre fotos de divulgação

[conteúdo da ed. 194 | fevereiro 2017]

“Arroz de pato com uvas do São Francisco ao perfume de laranja, linguiça portuguesa defumada grelhada, agrião temperado com limão galego e farofa do Corredor”. É exatamente dessa forma que vem descrita no cardápio uma das opções de prato principal de um restaurante na zona norte do Recife. Para além de descrever a receita de forma detalhada, o trecho do menu evoca um movimento em ebulição no país, alicerçado em tornar pública a origem dos ingredientes. A busca é agenciar, entre clientela e refeição, valores contemporâneos da gastronomia, como politização, procedência, pequenas cadeias produtivas e cuidado com saúde e bem-estar.

O “Corredor” do prato citado, por exemplo, faz menção ao projeto Corredor da Farinha, do município de Glória do Goitá, na Zona da Mata Norte pernambucana, cuja farinha é de manejo orgânico e sinalizada na peça gráfica como “quebradinha”. Essa preocupação em biografar o insumo, aliás, é um dos tópicos elencados pela consultoria francesa Food Service Vision, que desenvolve anualmente uma pesquisa sobre as tendências do mercado de gastronomia.

Encomendado para ser apresentado em 2017, no Sirha de Lyon (um dos maiores congressos do setor no mundo), o estudo teve a sua divulgação antecipada para o Sirha Rio, no último mês de outubro na capital fluminense. Nele, o segmento do bem-estar demonstra que essa febre está apenas começando: os produtos que trazem a etiqueta de linhagem deixaram de ser um nicho para se tornarem obrigatórios no mercado.

“São tendências de longo tempo, dentro das quais podemos identificar evoluções e sinais de fraqueza”, sintetiza François Blouin, presidente da Food Service Vision, sobre o método do levantamento que cruza informações obtidas em entrevistas com milhares de profissionais ao redor do mundo com uma base de dados sobre os produtos fornecidos à indústria alimentícia. Para o chef Pedro Siqueira, à frente das panelas dos novos Puro e Massa, no Rio de Janeiro (RJ), a gastronomia passa por um processo de se desvincular de uma prática elitista e se tornar um movimento com ares mais democráticos. E é aí que entra a figura-símbolo desse deslocamento: o pequeno produtor.

Segundo o profissional, há uma predisposição natural para que o cozinheiro passe a adotar uma postura mais política no seu ambiente de trabalho, tornando-se a grande mola propulsora para essa figura. “Temos o papel de mostrar que eles existem, que possuem um produto diferenciado, feito com alma, carinho. Acredito que o principal do pequeno produtor é que ele gosta do que está fazendo, tem paixão em plantar, em produzir, e saber como esse ingrediente vai chegar às mãos de quem cozinha”, explica.

Par de profissão, o pernambucano Joca Pontes dá outro tom à discussão. “A função do pequeno produtor vai além desse processo de politização. A questão é que ele pode oferecer muito mais produtos exclusivos, qualidade superior, além de representar nossa região, nosso terroir, valorizando a cultura e desenvolvendo o nosso entorno”, pontua o chef do Ponte Nova. Na casa, a propósito, são 11 os fornecedores especiais com quem Joca desenvolve parcerias, agregando uma série de benefícios à sua cozinha alinhada com identidades locais elevadas à dita alta gastronomia. Pontes sabe que o seu gesto, e os daqueles cujas falas são dotadas de alguma influência, podem criar um dinamismo econômico a partir de uma lógica que encurta as distâncias da produção do ingrediente para a mesa (farm to table). “Particularmente, quando encontro algum produtor legal, que tem um insumo diferenciado, procuro divulgá-lo para que cada vez mais pessoas, cozinheiros e restaurantes tenham acesso, e possam viabilizar a continuidade do mesmo”, conta.

Nos restaurantes de Pedro Siqueira, essa relação faz parte do DNA das casas. A interdependência, de tão próxima, permite uma espécie de consultoria econômica. “Um dos grandes problemas que os produtores enfrentam, por exemplo, é a logística. Não conseguem fazer isso com a demanda que, às vezes, o restaurante tem. Tomam muito prejuízo nesse vaivém com a mercadoria. Por essa razão, aparecem os atravessadores para fazer a ponte. Com isso, o produto chega bem mais caro do que deveria. Tentamos sempre levar essa noção de negócios para que eles não só melhorem o custo, mas também não desistam de oferecer um produto com o qual tanto gostamos de trabalhar e apresentar ao cliente”, explica o cozinheiro, que utiliza pupunha, brotos, queijos e cortes de carnes oriundos de pequenos produtores.

SEM ATRAVESSADORES
É justamente no encurtamento dessas relações que o chef Julio Prouvot enxerga mais um ganho advindo desse movimento. Sempre que termina o expediente no Prouvot Bistrô, no Parnamirim, na madrugada da sexta para o sábado, o jovem cozinheiro segue para a feira de orgânicos do Bairro das Graças, também na Zona Norte da cidade, para fazer as compras semanais de alguns insumos. “É uma outra relação. Antes, fazíamos o pedido por e-mail ou telefone, chegava um carro ao restaurante e alguém deixava o pedido com a nota fiscal. Conhecer quem planta, onde planta, e como planta, conversar com o produtor, amplia nossa visão sobre o sistema gastronômico. Pode até dar mais trabalho, claro, mas é muito mais prazeroso e enriquecedor”, conta Julio.

Em João Pessoa, Onildo Rocha reitera o discurso na prática no seu Roccia Bar, em Tambaú. Há cerca de três anos, deu início a um trabalho com Seu Dedé, agricultor que, impulsionado pelo cozinheiro, participou de um curso do Sebrae para aperfeiçoar sua técnica e fornecer as folhagens e os tubérculos para a cozinha que Rocha comanda. “Em um primeiro momento, passei tudo o que precisava e foi preparado um escalonamento de produção. A ideia é de que o produtor saiba a data em que vai colher, de forma que não falte nenhum insumo na cozinha”, explica. Para quem acha que se trata de um nível de envolvimento muito avançado, aparentemente está enganado. “Encontrando o produtor certo, que assuma o compromisso de entregar o produto, fica fácil”, desmistifica.

Pelas mãos do cozinheiro, o arroz vermelho de seu Dedé se tornou um marco de sucesso dessa parceria. Nacionalmente, o grão é conhecido como “arroz da Paraíba” ou simplesmente “arroz de Onildo”. Mais recentemente, lambretas de tamanho incomum, produzidas em pequenas fazendas paraibanas, são as novas vedetes do cardápio do bar. “A ideia é que produtores e atores da cadeia do alimento possam sobreviver do que produzem. Os ingredientes regionais, brasileiros, precisam estar acessíveis. Assim, tanto os produtos quanto o nosso saber culinário serão reconhecidos como parte de nossa cultura”, destaca Rocha.

Atento a esse movimento, o Sebrae–PE desenvolveu o projeto Alimentos e Bebidas – Do Campo à Mesa, trabalhando os elos da cadeia produtiva, visando aproximar o produtor dos restaurantes, encurtando distâncias e otimizando preços com uma dinâmica de venda direta e criteriosa, na qual os chefes podem escolher os produtos diretamente com o produtor. “Em Pernambuco, já temos um mercado consolidado para vinhos, frutas, doces, tubérculos, cachaças e uma infinidade de outros itens. Desde o ano passado, estamos trabalhando fortemente na agricultura orgânica e na produção de sorvetes e também das cervejas artesanais”, lista Valéria Rocha, gestora do projeto. Para o Sebrae, no segmento gastronômico, essa é mesmo a bola da vez. No Brasil, das 15 mil propriedades certificadas para produção de orgânicos, 75% pertencem a agricultores familiares, consolidando o país não só como um grande produtor, mas também exportador.

ALAVANCA ECONÔMICA
Em crescimento, o ofício de produtor foi apontado como uma das profissões de um futuro próximo, segundo estudo recente da consultoria Ernst & Young. Para a entidade, essa profissão se chamará “fazendeiro urbano” e, até 2025, embalada pelo aumento da produção autônoma de alimentos orgânicos, deve se multiplicar em alta escala no Brasil. O país, a propósito, movimentou, em 2016, mais de US$ 30 bilhões em alimentos orgânicos, fazendo-se o 5º maior mercado de alimentos e bebidas saudáveis do mundo. Enquanto, por aqui, esse mercado cresce 20% ao ano, no mundo, o índice é de 8%.

Em entrevista à Continente, ainda em 2015, a apresentadora e chef de cozinha Bela Gil “cantou a bola”. Na oportunidade, reiterou que comer comida com procedência, menos processada e industrializada possível, valorizando os produtos locais e da estação, é o caminho natural da alimentação no mundo. “Quando a sociedade enxergar a alimentação saudável como um investimento e garantia de qualidade de vida, quando cozinharmos pensando e respeitando a saúde do corpo, da terra e dos produtores, aí, sim, conseguiremos construir um futuro melhor”, defendeu.

“O que vejo de mudança no cenário é que, antes, a cozinha mais sustentável era tratada como se não fosse integrante da gastronomia, e, sim, algo à parte. Agora, podemos ver gente voltada para os legumes sem aquele perfil natureba, mas com um comprometimento com a cozinha”, pontua a chef carioca Nathalie Passos, nome dos mais festejados da nova safra dos cozinheiros brasileiros, cuja escola é a cozinha sustentável.

Nathalie oferece um contorno crítico a esse movimento, preferindo tratar a sustentabilidade da gastronomia de forma holística. A cozinheira do Naturalie Bistrô, em Botafogo, acredita que seja um gesto importante valorizar a origem do produto, a relação com o pequeno produtor, mas provoca: “Do que adianta, se não nos importamos com o que fazemos com o lixo e a água depois?”. 

 

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