Sabemos que as histórias para crianças estão repletas de tragédias, mortes, abandono, violência, e que nem sempre os autores ou contadores poupam seus pequenos interlocutores do horror de experienciá-las, como acontece no Pinóquio de Collodi. Embora Habib Zahar não se furte a tratar de assuntos espinhosos, ele encontra um caminho leve para colocar o leitor diante dos impasses da vida.
Vejam a tão conflitante questão do preconceito. No primeiro livro de Habib, O burro errante (2012), esse assunto está em discussão todo tempo, a partir das distinções sociais da família do burrinho protagonista, que o instrui a ficar longe de “gentinha” como macacos, coelhos e ratos. Claro que o burrinho desobedece aos pais e descobre que, por baixo dos preconceitos, existem amor e amizade. Preconceito é coisa séria, a gente sabe, que adoece as relações pessoais e sociais. Habib conta que essa historinha reflete, de certa forma, os conflitos que sofreu dentro da própria família e também no Cairo, onde viveu até os 16 anos, quando passou a morar na Califórnia. Na sua adolescência, quem comandava o Egito era Hosni Bubarak, que perseguiu aqueles que não se encaixavam no seu governo ditatorial. Habib era um garoto que gostava de rock, cultura ocidental, gostava de dançar, de escrever poemas, fábulas… definitivamente, um “burrinho” rebelde. Numa viagem de férias, o pai de Habib tratou de arranjar para que ele ficasse com familiares na Califórnia.
Habib viveu e amadureceu na costa oeste norte-americana, graduou-se em Biologia, ficou mais rebelde ainda, porque se politizou, escrevia artigos nos jornais sobre política, pós-colonialismo. Numa de suas viagens, veio para o Brasil, mais especificamente, para Olinda. Foi como uma epifania. Ele conta: foi aqui que descobriu (ou se descobriu n’) a música, a dança, o teatro. Veio também a literatura, iniciada com O burro errante, continuada com O último golpe do Lobo Mau (2014) e chegada até aqui com O dia em que a morte sambou (2016). Mas nada foi abrupto, ao contrário, parte de um processo. Habib Zahra só começou a escrever seus livros para crianças (de todas as idades, é sempre bom lembrar) quando já estava “pensando em português”.
A gente não deve menosprezar nenhum passo dado. Digo isso aqui por conta de Habib, claro, mas vale para qualquer um. Tudo que a gente faz, em algum momento, vai ter serventia. No caso de Habib, os diários de viagem são um bom testemunho. Sempre que bota o pé na estrada, ele vai anotando aquilo que lhe importa. Quando chegou a Pernambuco, a língua em que tomava notas era o inglês, no qual já vinha escrevendo na Califórnia. Com o tempo, o inglês já não dava conta das peculiaridades da paisagem local, e assim o português foi entrando no seu vocabulário, numa assimilação orgânica, natural. Era hora de contar a história daquele menino burrinho que ganhou o mundo para se (re)conhecer. E os diários serviram de fonte.
Além do mais, você sabe, a vida sempre nos dá empurrõezinhos (nem todos suaves, convenhamos) para a gente fazer o que precisa. Mas o empurrãozinho de Habib foi legal. Ele conheceu uma também viajante e artista, a salamanquense Valeria Rey Soto, que estava no Recife estudando Artes Plásticas. Formou-se “a corda e a caneca”, como diz o ditado popular. Basta dizer que todos os livros de Habib são ilustrados por Valeria, que também se tornou sua esposa e mãe do seu filho, o pequenino Miguel Ibrahim. Com essa “mão de fada”, ficava mais fácil tornar luxuriantes, alegres e vibrantes as aventuras e desventuras dos seus personagens. Os livros de Habib e Valeria podem ser classificados como belos e encantadores, sem cometer injustiça.
Na base das narrativas está aquele interesse original do autor por poesia e fábula, de quando ele era um garoto incompreendido no Cairo. O que tem dado tessitura às suas histórias, entretanto, é o contato com as tradições populares do Nordeste, para as quais sempre acorre em suas andanças. “Isso de existirem as brincadeiras – coco, cavalo-marinho, maracatu – nas ruas, das quais toda a comunidade participa, se diverte junta, é forte e importante. Me descobri nisso, conectado, vivo”, comenta Habib.
DANÇA COM A MORTE
E aqui chegamos ao recente conto de Habib, O dia em que a morte sambou (2016), no qual ele aborda o tema assustador e doloroso da morte, mas também situações concernentes à velhice. As primeiras frases são significativas da solidão inerente à idade: “Dos seus amigos de infância, da sua família, das pessoas com quem cresceu, ele guardava apenas lembranças. Até seus filhos não estavam mais por aqui. O ancião morava só, em uma casinha de taipa, do outro lado do Rio Tracunhaém. As únicas companhias, além das crianças que o visitavam de vez em quando, eram as flores, os pássaros, algum gato perdido. Quando nasceu, de que água bebeu, isso ninguém sabia ao certo. Parecia estar aqui há séculos, desde sempre: o velho brincante, Seu Biu”.
Essa introdução que o conto traz, e logo em seguida reconhecer que seu Biu tinha “chegado ao crepúsculo da sua vida” e que ele fenecia como um decurso da própria existência, prepara o leitor para aceitar sua morte. Mas a graça, ou a leveza da história, é que, mesmo sem dentes, com os cabelos branquinhos e cheio de rugas, Seu Biu não parava de sorrir e dançar. Nada a ver, portanto, com o arquétipo da velhice carrancuda e enclausurada, de rigidez e cenho franzido, que vai receber sua parcela de crítica nessa narrativa. O dia em que a morte sambou oferece ao leitor a possibilidade de “dançar a morte”, ou seja, despedir-se da vida despreocupadamente, como se a gente fosse, ali, sambar um maracatu (talvez seja isso mesmo…).
Se o conto de Habib Zahra, por si só, oferece essa leitura tranquila de uma passagem para o desconhecido incontornável, as ilustrações de Valeria Rey Soto chegam junto para arrematar a ideia. A ilustradora trabalha com campos de luz e cor, ornamentos, delicadezas, tudo em desenho aquarelado, que contribui para a singeleza da narrativa visual. O quintal de Seu Biu é cheiinho de flor, sua roupa é listrada e florida, seu olhar é doce e ele ainda anda com um raminho de arruda enfiado no chapéu, afastando as más influências… As crianças, suas amigas, brincam numa praça toda arborizada e florida, as casinhas são caprichosas, com fachadas estilizadas.
Mas você não tenha dúvida de que a figura da Morte é mais encantadora, na sua beleza particular. Ela é uma caveira que carrega uma foice, não tem como duvidar do seu jeito mortiço, mas, ao invés da capa preta, enlutada, a morte de Valeria é herdeira da Catrina mexicana, adornada de flores e cores. É desse jeito que a malvada chega à casa de Seu Biu, com seu alarido de Morte. Mas…“Ao sentir o sopro frio da Morte no seu pescoço, o brincante não estremeceu. Simplesmente olhou para trás e sorriu calorosamente, como se estivesse reconhecendo uma amiga de longa data”, escreve Habib.
Agora acompanhado de Valeria e Miguel, Habib empreende suas jornadas. Além das tradições nordestinas, ele tem investigado manifestações em outros territórios, e encontrado muitas similaridades. Numa segunda viagem ao Egito, desde que deixou o país na adolescência (ele agora tem 37 anos), no ano passado, ele foi em busca de elementos da cultura popular também no seu país de origem. Conta que encontrou coisas interessantíssimas em comunidades de pescadores próximas ao Cairo, música de trabalho, música de ciganos egípcios e algumas ritualísticas, de vertentes heréticas do islam. No Marrocos, seguiu o mesmo caminho, sobretudo encantado que ficou com a gnawa, música tradicional do país norte-africano. Algo semelhante se deu na visita que fizeram ao México. O caderno de viagem continua sendo usado com o mesmo desprendimento das investidas anteriores. Como enfatiza Habib Zahra, não se trata de um interesse científico, instrumental, mas de uma genuína necessidade de se comunicar com as gentes através do coração e registrar essa calorosa experiência.