Mas há quem prove que, apesar dessa volúpia diabólica provocada pela comida – e talvez com sua própria ajuda, escolhas conscientes são possíveis. Ter consciência sobre o que se come é jogar luz em nosso corpo e em cada coisa que ele está prestes a acolher; é puxar como um novelo de lã o fio de relações que sustentou aquilo que nos alimenta até que chegasse ao nosso prato. Isso parece, à primeira vista, um exercício romântico que nos leva da fatia de pão a bucólicos campos de trigo semeados por agricultores felizes. Mas, nos dias de hoje, essa não é uma tarefa muito fácil.
Quando olhamos por esse ângulo, o ato de comer se complexifica em uma série de implicações nutricionais, ambientais e éticas e na descoberta inevitável de coisas que preferíamos ignorar. Talvez a mais gritante delas seja o sofrimento real de seres vivos, ou seja, a morte de animais não humanos alimentada em última instância por nossos desejos, ignorância, hábitos e tradições – não necessariamente nessa ordem. Quando o novelo de lã de relações se abre, a delícia do nosso encontro sensorial com a comida, a delícia do não planejado, a delícia de se deixar levar, parece, em um piscar de olhos, ser extinta por completo. Parece restar em nós apenas mal-estar.
COSTELLO E OS ANIMAIS
Esse mal-estar é descrito de forma um tanto perturbadora em As vidas dos animais (Cia das Letras), livro do Prêmio Nobel de Literatura J. M. Coetzee. Inspirado pelo convite que recebeu para participar das famosas Tanner Lectures na Universidade de Princeton, Coetzee, que é ativista dos direitos dos animais, escreve este livro no qual uma de suas personagens, a escritora Elizabeth Costello, viaja da Austrália aos Estados Unidos para proferir uma série de palestras na universidade em que, coincidentemente, seu filho é professor.
Costello não falou em suas palestras sobre crítica literária, como era esperado pelo público. Os argumentos trazidos pela escritora, que assim como Coetzee é vegetariana, comparam o abuso de seres humanos contra os animais e a falta de empatia que sentimos por eles com o Holocausto – do qual todos sabiam, mas nada faziam – e geram um mal-estar na comunidade acadêmica bem como na casa de seu filho, onde está hospedada. Costello considera a dieta onívora uma redução dos animais à categoria de coisas e, sobretudo, um reflexo de que somos incapazes de reconhecer a simples “sensação de ser” dos animais, a alegria em estar vivo que todos nós seres vivos compartilharmos, e levar em conta isso antes de tirar-lhes a vida para nosso desnecessário desfrute. Em casa, a nora de Costello não faz questão de esconder que acha seus argumentos “inconsistentes e sentimentais”.
Mas o que aconteceria se, em vez de apenas descrever a brutalidade a que chegamos em nossa relação com os animais, Elizabeth Costello resolvesse, em seu discurso, mostrar que é possível gerarmos empatia, compaixão por eles? Se ela fosse uma agente para que isso acontecesse, não de forma acusatória, mas amorosa? Se ela conseguisse mostrar que, além da cegueira cômoda e do mal-estar, existe uma outra via? Aliás, existe uma outra via?
SENSAÇÃO DE SER
Experiências em culinária vegana por aí afora estão provando que, sim, existe uma via que caminha em direção ao encontro amoroso com as pessoas e com os alimentos, escolhidos com cuidado desde sua origem e preparados com uma criatividade que, muitas vezes, só pode ser classificada como genial. No coração dessas experiências estão cozinheiros e cozinheiras veganos, pessoas que, por questões sociais, ambientais, éticas e/ou por compaixão, decidem não compactuar com a exploração animal e circunscrevem a sua cozinha ao reino vegetal. São quebradores de mito sobre sabor e sobre nutrição e, sobretudo, questionadores corajosos da eficiência do radicalismo.
Talvez, se esses cozinheiros e cozinheiras pudessem dizer alguma coisa a Elizabeth Costello, seria: “Sabe, falar essas coisas todas é importante, mas, mais do que isso, reúne toda a humanidade que tu tens, Elizabeth, e oferece para tua família – teu filho, nora, netos e todos os amigos que eles quiserem trazer – e para teus colegas acadêmicos um belo risoto de limão siciliano com nozes, tomates recheados com creme de castanhas, e uma torta de cacau com um café temperado com cardamomo ou então um belo chá indiano. Apenas oferece. O resto vem por conta própria”.
Essa filosofia da boa comida como porta de entrada para reflexões e escolhas lúcidas sobre o que comemos é o que move o que hoje é considerado por muitos como o melhor restaurante de comida vegana do Recife – que, curiosamente, não é vegano –, o Papaya Verde. A história por trás da transição muito bem-sucedida de um bufê com inspiração árabe e poucas opções vegetarianas para os atuais 70% de pratos veganos no menu diário começa com um encontro casual de João Asfora, um dos sócios do Papaya, com um famoso e impactante documentário pró-veganismo chamado Terráqueos. Depois de um choro compulsivo por se dar conta do que ele descreve, com as mesmas palavras da nossa Elizabeth Costello, como um “holocausto animal”, e tentar deixar o restaurante, João é convencido pelo sócio a permanecer no Papaya. Decide então começar uma militância pró-veganismo ali mesmo, o que resulta na “veganização”, como ele chama, do cardápio.
O resultado é um menu com todo tipo de delícias veganas, que vão muito além da velha proteína de soja e do tofu temperado com shoyo. Um dos favoritos de João é o bolinho de tapioca com pimenta doce, cuja base são ingredientes locais – a tapioca e o coco – preparados de forma nunca antes imaginada e ainda por cima servido com um molho doce de pimenta sriracha. A delícia do encontro com os sentidos parece bem viva aqui.
Cozinhas veganas preparando comida para não veganos, como a do Papaya, parecem ser uma tendência. Alguns restaurantes e chefs preferem falar inclusive em culinária vegetal, e não mais em culinária vegana (já que o veganismo é uma filosofia que transcende a alimentação e inclui todo tipo de restrição à exploração e crueldade animal, como o uso de roupas de couro, produtos desenvolvidos a partir de experimentos em animais etc.). Um rótulo que celebra o próprio reino ao qual essa cozinha pertence: o reino vegetal e sua imensidão, não apenas de legumes, frutas e verduras, mas de sementes, nozes, cerais, grãos, raízes, temperos, flores, algas, fungos e tudo enfim que possa ser considerado colheita. Quando deixamos os animais fora da mesa, um mundo novo e muito, muito mais colorido, se abre para nós.
Compare, por exemplo, a paleta de cores de um café da manhã onívoro com a de um café da manhã vegano. Claro, na mesa da tradicional família brasileira, haverá frutas. Mas, como substituir com cores os habituais e monocromáticos cuscuz, pão, queijo, ovo e talvez um desbotado peito de peru? Se nos permitimos seguir as dicas de café da manhã de Fabrisa Silva, chef de cozinha e dona da Frutteto, empresa de alimentação vegana com base no Recife, a nossa paleta de cores matinal vai aumentar exponencialmente. Aqui, a culinária vegetal faz jus ao nome: em vez de um cuscuz homogeneamente amarelo, adicione à massa úmida as cores do brócolis e espinafre picadinho, da cenoura ralada, de ervilha fresca, de cebola roxa e salsa. Para acompanhar essa maravilha colorida fumegante, tofu mexido na frigideira, temperado com missô, gengibre, suco de limão, curry ou zaatar (tempero árabe), um fio de azeite e cebolinha para finalizar.
PLANTAS
O reino vegetal traz suas cores, mas também uma boa dose de desafio para quem o adentra. “A primeira experiência marcante – e inesquecível – que tive foi a de conseguir fazer bolos maravilhosos, como o Bolo Marielba, sem ovos, substituindo-os por sucos, linhaça ou simplesmente água. Portas da percepção se abriram e a bruxa alquimista em mim ressurgiu.” Essa é a fala de Rafaela Valença sobre suas primeiras alquimias veganas, dentro da cozinha da Avena, o negócio delivery que ela fundou em Olinda em sua própria casa – uma produção artesanal tecida a partir de uma rede de fornecedores de agricultura familiar orgânica e comerciantes locais. “A Avena foi minha carta de amor ao mundo, minha microrrevolução.”
Capitaneando há oito anos, no Bairro da Liberdade, em São Paulo, o seu Broto de Primavera, o chef André Cantú define o que faz com palavras parecidas com as de Rafaela: “Sou um cozinhador de plantas e o que faço é uma cozinha amorosa”. Para ele, “a maneira mais rápida de chegar no coração da pessoa é através da comida. É falar de compaixão através dela”.
André classifica sua culinária – e a vegana em geral – como uma culinária imitativa, e este é um de seus recursos amorosos na cozinha. “A gente ainda vive de imitação, infelizmente. Umas são felizes, outras bem infames.” E pela descrição dada por ele da tradicional feijoada vegana, servida semanalmente, seus pratos imitativos estão mais para felizes, muito felizes. “Na feijoada, a berinjela, crocante por fora e macia por dentro, faz uma alusão anedótica ao toucinho, e a soja, apesar de usarmos bem menos do que antes, bem frita e temperada, oferece a proteína para quem está em período de transição.” Para acompanhar, arroz-cateto integral e uma farofa “rica em legumes bem picadinhos, que, quando você come, chega a arrepiar”, além das tradicionais couve e laranja. Tudo como manda o figurino. Por último, mas não menos importante, uma caipirinha feita com rapadura, limão, pimenta dedo de moça, gengibre e gelo.
Em um bairro residencial de Porto Alegre, funciona o Vê, o primeiro restaurante 100% vegano em sistema de bufê da cidade. Sua fundadora, Maria Julia Rosa, insiste em dizer que o cardápio é simples, que “a culinária vegana é uma culinária simples”. Mas, na cozinha, sabemos, o simples pode se tornar extraordinário, a depender do jeito que se prepara. E, ali, a média de 180 pessoas por dia (tendo chegado ao pico de 300) confirma o primor da preparação. No cardápio, risoto de açafrão com banana e gengibre, hambúrguer de amêndoas com tomate seco, almôndegas de lentilha com menta, lasanha com moranga, omelete de grão-de-bico. Entre as sobremesas, sagu de chia com molho de amêndoas, paçoquita vegana e outras delícias delicadamente montadas em porções individuais.
Informar à sua grande clientela que, na maioria, não é vegana, sobre veganismo e suas razões éticas, ambientais, sociais, não é a intenção de Julia, que adotou a dieta vegana depois de entrar em contato com o conceito de não violência, ou ahimsa, enquanto lia a autobiografia de Mahatma Gandhi. “Eu não me senti acusada de fazer nada errado, quando li o livro do Gandhi e decidi me tornar vegana. Então, não quero que as pessoas se sintam assim. Para muitos dos clientes, simplesmente vir a um lugar no qual não vão encontrar carne já é ofensivo. Percebi que a abordagem mais suave costuma ter um efeito mais positivo. Se eu ficar falando, é possível que espante um público que está se abrindo para uma ideia.”
Em uma das paredes centrais do Vê, uma bela imagem mostra uma criança abraçada a vacas, galinhas, girafas, elefantes e outros animais não humanos. Os braços do menino se estendem até conseguir abarcar todo mundo e ninguém ficar de fora. Poderíamos ler ali a celebração da “sensação de ser”, como diz Costello em sua palestra, da alegria que todos nós, seres vivos, compartilhamos em estar simplesmente vivos.
Mas nada disso precisa ser dito. Aqui, como na mesa de outras cozinhas do reino vegetal, a comida é a palavra. E a palavra é, deliciosamente, comida.