Arquivo

Salve farinha

TEXTO José Cláudio

01 de Janeiro de 2017

Casa de farinha: Modesto Brocos y Gomez (Santiago de Compostela, Espanha, 1852 - Rio de Janeiro, 1936, naturalizado brasileiro). 'Engenho de Mandioca', óleo sobre tela, 1892. Museu Nacional de Belas

Casa de farinha: Modesto Brocos y Gomez (Santiago de Compostela, Espanha, 1852 - Rio de Janeiro, 1936, naturalizado brasileiro). 'Engenho de Mandioca', óleo sobre tela, 1892. Museu Nacional de Belas

Imagem reprodução

[conteúdo da ed. 193 | janeiro 2017] 

Uma grande falha da cozinha europeia foi não ter adotado a farinha de mandioca. Já pensou, a vida toda sem comer um pirão? Gosto de todo tipo. Pirão de cozido. De cozidos: de carne, de peixe, de bacalhau. Pirão mexido. Tanto feito com caldo de feijão mulatinho, feijão escaldado, como somente a água, um ovo dentro, boa dose de pimenta-do-reino moída. Ou farofa de bolão, farofa matuta, brim-branco: bota a água fervendo no prato fundo, cobre com farinha, deixa inchar um minutinho para escaldar a farinha, revolver com o garfo formando os bolões. Cai bem umas cebolinhas picadas, da comum ou da branca com talo verde também cortado. Dá bom, em vez da água, ou juntamente com a água se o molho do guisado não houver em quantidade suficiente, o molho puro fervente, caso não muito grosso, e a farinha jogada por cima. Há quem vá comendo a farofa aos poucos, misturando a farinha ao molho à medida que vai comendo com a carne, mantendo o resto coberto com a farinha, para não esfriar, a farinha servindo de abafador. Agora me deu vontade comer um guisado de bode, ou galinha gorda, ou capão, ou perua, ou guiné, porco ou boi, ou os dois juntos como costumam fazer. E farofa matuta com linguiça sertaneja, recusar quem há de? E farinha de paneiro, pra comer com peixe na água grande?

Deve haver mil jeitos de comer farinha, a começar pela farinha seca jogada na boca, com a colher ou a mão, acompanhando por exemplo torresmo ou camarão torrado, de preferência de rio, depois da cheia. Quando o Ipojuca era rio: hein, Breno? hein, Deda e Ilo? Aqui no Recife mesmo chegava muito camarão de cheia, daqueles bem vermelhos. Sem falar de pitu. Uma meninota que passou uns tempos lá em casa em Ipojuca, acho vindo de Camela, uma de cabelo assanhado, minha irmã Nena, a mais velha, deve se lembrar, gostava de comer farinha seca com pimenta malagueta verde, duas ou três a cada punhado de farinha que jogava na boca.

Uma vez peguei um taxi em Peixinhos, motorista uma mulher, a primeira que vi no oficio aqui, faz muitos anos — em Nova York também peguei um táxi, quando fui à exposição de Picasso no Moma, julho de 1980, tomei um susto: a motorista era uma mulher de grande estatura jovem e belíssima, eu até pedi desculpas pensando ter feito algo errado, mas ela confirmou que era táxi e estava livre, eu segui mas ainda sem acreditar — a de Peixinhos bem despachada, assararazada, cabelo pixaim começando a embranquecer, pura simpatia, de vez em quando botava a mão num pacotinho aberto no tabelier e jogava um punhado de farinha seca na boca. Fiquei curioso. Ela notou, me mostrou a mão aberta. Perguntou: “Quer?” Era farinha seca com tanajura torrada. Aceitei. Minha mãe não deixava a gente se misturar com “aquela mundiça” por ruas e becos correndo atrás de tanajura e depois tinha medo de veneno que botavam nos formigueiros justamente dessa formiga saúva que virava tanajura. A da taxista era torrada na manteiga, o que dava à farinha uns toques amarelados.

Na casa de farinha do meu avô paterno Joaquim Pedro da Silva, vulgo Pedro Taveira, por ter morado muitos anos no sítio Taveira, no Cabo, dita casa de farinha no Engenho do Meio, Ipojuca, pegado com o Penderama da família de José Paulo Cavalcanti Filho, Zé Paulinho, na casa de farinha, dizia eu, costumavam comer nas farinhadas farinha mole, quando não está perfeitamente assada, com bacalhau, ou outro peixe assado, bagre seco ou uma sardinha salgada que chamavam “rapariga de cambiteiro”. Não deixavam menino comer farinha mole: diziam que dava dor de barriga. Devia ser ruindade.

Sempre gostei de comer manga com farinha seca, cortando a banda da manga e espremendo o amarelo úmido da polpa na cara da farinha no prato. Uma vez fiz isso na casa de Carybé, na Bahia, ele viu e disse: “Agora só vou fazer assim”. Vovô Pedro, além de comer manga com farinha, ainda comia as cascas. “Pra não fazer mal.” Também é bom banana machucada com farinha. Sertanejo come farinha com rapadura. Farinha com mel de engenho é sem igual. Nem goiabada bate. Depende do mel: tenho visto muito mel por aí que nem vale a pena. No A Guerra do Fim do Mundo de Vargas Llosa ele diz que brasileiro costuma jogar farinha de mandioca por cima de qualquer comida, mais ou menos como fazem os andinos com farinha de milho.

Por falar de peruano, outra lacuna da culinária europeia é a carne de charque, invenção dos incas. Companhia inseparável de feijão e farinha. Meu mestre Abelardo da Hora toda segunda-feira religiosamente comparecia à Travessa do Macedo, Mercado de São José, para escolher a charque que comia no feijão a semana toda. Até 90 anos a rotina era a mesma.

Minha mãe fazia um mingau de massa, meio insosso, ótimo para comer com peixe assado salgado, feito bacalhau, se não me engano comida de Semana Santa, ou era quando nos lembrávamos dele, como bredo ou feijão de coco e quibebe. Minha prima Olga disse até que ia me dar a receita desse mingau de massa de mandioca: se chegou a dar, não sei onde botei.

E ainda não falei de tapioca nem de beijus! Continuo a gostar de tapioca apenas com coco ralado. Tá certo, façam tapioca de tudo que quiserem: pra mim, só com coco ralado.

Beiju é capítulo à parte. De todas as grossuras, de todos os formatos, de todas as texturas, redondos ou quadrados, abertos ou enrolados, o mais fino de todos, chamado “cambraia”, em que minha mãe era exímia.

Faltei falar de uma das obras-primas da culinária brasileira tirada da mandioca: o tucupi. Tudo é genial: desde o tipiti, onde a massa se espreme a si própria sem força de braço, até o tacacá e o divino pato no tucupi. 

  

veja também

Alguns episódios da Revolução de 1817

Malta: joia insular

Caboclinho: agora, patrimônio cultural nacional