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“O samba sempre vai ser uma contracultura da modernidade’”

Entrevista com Maurício Barros de Castro

TEXTO Débora Nascimento

01 de Janeiro de 2017

Cartola (ao centro) no bar que criou com a esposa, Zica

Cartola (ao centro) no bar que criou com a esposa, Zica

Foto Arquivo/agência o globo, Rio de Janeiro, 1964

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 193 | janeiro 2017] 

Autor do livro Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica (Azougue Editorial, 2013) e coautor do recém-lançado Nos quintais do samba da Grande Madureira: memória, história e imagens de ontem e hoje (Editora Olhares, 2016), o pesquisador, escritor, doutor em História pela USP e professor do Instituto de Artes da UERJ, Maurício Barros de Castro fala à Continente sobre a relação do centenário gênero musical com os acontecimentos políticos do país e as transformações pelas quais passou o samba.

CONTINENTE Comparando o samba de hoje com o de 100 anos atrás, o gênero melhorou em quais aspectos (musical, social, mercadológico)?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO O samba possui muitas vertentes, como o samba influenciado pelo maxixe do Rio de Janeiro, do início do século XX, que teve como grande marco Pelo telefone, de Donga, motivo das comemorações do centenário do ritmo. Há, também, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o samba rural paulista, o samba de coco de Pernambuco e Alagoas, mas é certo que o samba que se tornou símbolo de uma identidade nacional brasileira foi aquele chamado “samba de sambar” do Estácio, bairro do Rio de Janeiro, formado por um grupo de sambistas importantes, como Ismael Silva, Bide, Heitor dos Prazeres, Baiaco, Rubem Barcelos, Aurélio Gomes, Nilton Bastos, João Mina, Edgar Marcelino, Brancura e Tancredo Silva, fundadores daquela que é considerada a primeira escola de samba: Deixa Falar. Esse samba que trazia novos instrumentos, como o surdo de marcação, inventado por Bide, e a cuíca, trazida por João Mina, privilegiava os instrumentos de percussão e era feito para acompanhar o cortejo dos blocos e escolas de samba que eram criados naquele momento, no final dos anos 1920, em bairros e morros próximos ou margeados pela linha férrea, como Mangueira e Oswaldo Cruz. Então, não se trata de uma linha evolutiva, mas de múltiplas temporalidades relacionadas ao samba. No Rio de Janeiro, por exemplo, nos anos 1960, tivemos fenômenos como o Zicartola – casa de samba de Cartola e Dona Zica, que, entre outras proezas, revelou Paulinho da Viola – e o Fundo de Quintal, outro grupo revolucionário. Nos anos 1990, ainda na cena carioca, tivemos o surgimento do Grupo Semente e a revitalização da Lapa, que revelaram nomes como Teresa Cristina e Pedro Miranda. E, certamente, há outros exemplos contemporâneos interessantes, como o do rapper Emicida cantando Cartola.

CONTINENTE O samba perdeu sua capacidade crítica, seu engajamento político?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não creio. Enquanto herança de matriz africana, o samba se consolidou como ritmo historicamente marginalizado e potencialmente contestador. Por isso o samba sempre vai ser uma “contracultura da modernidade”, como diz o pesquisador britânico Paul Gilroy, mesmo que em muitos momentos se adapte ao discurso oficial dos governos e da mídia.

CONTINENTE Os sambistas foram bastante perseguidos pela polícia no começo da história do gênero. Isso aconteceu novamente na época da ditadura militar? Como podemos situar o Zicartola nesse contexto?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO O samba não foi incluído no Código Penal, como aconteceu com a capoeira, em 1890, mas os sambistas costumavam ser enquadrados na lei de vadiagem, principalmente aqueles que eram considerados “malandros”. No período da ditadura militar, isso ainda acontecia, mas não havia perseguição aos sambistas. O Zicartola foi uma casa de samba criada por Dona Zica e Cartola, que funcionava na Rua da Carioca, 53, no Centro do Rio de Janeiro. Até hoje tem uma placa em sua homenagem nesse endereço. Embora tenha se tornado famoso, o Zicartola durou apenas dois anos, entre 1963 e 1965. Foi um espaço político e cultural que reuniu intelectuais, jornalistas, artistas, sambistas e estudantes universitários, principalmente os que se articulavam em torno da UNE, cuja sede foi incendiada no dia do golpe. O Zicartola foi importante para o ressurgimento de antigos sambistas que estavam esquecidos, como Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e o próprio Cartola, cujas músicas foram gravadas por Nara Leão no seu primeiro disco solo, em 1964. Também revelou nomes como Elton Medeiros, Nelson Sargento e, principalmente, Paulinho da Viola, que recebeu na casa de samba os primeiros cachês de sua carreira. Hermínio Bello de Carvalho, poeta e compositor, redescobriu Clementina de Jesus no Zicartola, o que resultou no musical Rosa de Ouro. No Zicartola, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho e o poeta Ferreira Gullar tiveram a ideia de criar o espetáculo Opinião, que reunia João do Vale, o migrante nordestino, Zé Kéti, o sambista do morro, e Nara Leão, a moça da zona sul carioca, todos frequentadores da casa de samba. O Opinião alcançou enorme sucesso, trazia um forte questionamento político e era inspirado no samba homônimo de Zé Kéti, cujos versos diziam: “Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de Opinião/ Daqui do morro eu não saio não”.

CONTINENTE Por que houve tanto interesse do Governo Getúlio Vargas (1930–1945) pelo samba?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Uma das preocupações de Getúlio Vargas era formular uma identidade nacional para o Brasil com base nas culturas populares. O samba se torna o principal gênero musical das emissoras de rádio, que apenas em 1932 tiveram permissão do governo para transmitir anúncios comerciais, e alcança grande sucesso na voz de nomes como Francisco Alves, Mario Reis e Dalva de Oliveira. No mesmo ano é organizado o primeiro concurso das escolas de samba, criado pelo jornal Mundo Sportivo, do jornalista Mario Filho. A organização dos sambistas em torno das escolas e a contemporaneidade de suas composições foram fundamentais para a popularidade do samba, um fator importante para sua consagração como música nacional.

CONTINENTE O samba é considerado o maior símbolo nacional no que se refere à música. Por que isso ainda acontece, se o sertanejo, por exemplo, é o gênero mais ouvido no país?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Acho que isso acontece porque, como falei, não se trata de algo recente, tem a ver com os processos de tentativa de construção de identidade nacional do Brasil que se desenrolaram entre o final das décadas de 1920 e 1930.

CONTINENTE Quais seriam os maiores entraves do samba hoje?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Eu poderia citar os aspectos mercadológicos, uma vez que poucos sambistas têm acesso à grande mídia, o que certamente prejudica as trajetórias de muitos sambistas jovens. Mas isso também acontece com outros gêneros musicais. Acho importante lembrar que o samba ainda faz parte de tradições familiares e continua sendo importante como um ritual de vida para as populações afrodescendentes moradoras de periferias e favelas. O extermínio e etnocídio que sofrem essas populações certamente é o maior entrave não apenas do samba, como também do funk e do rap, por exemplo.

CONTINENTE Se gêneros, como o frevo ou o forró, tivessem despontado no Rio de Janeiro naquele mesmo contexto, eles teriam chances de ocupar esse lugar simbólico que o samba ocupou?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não sei, mas é curiosa a história de Luiz Gonzaga. Quando o samba já estava consolidado nas rádios, nos anos 1940, ele criou o baião e reinventou o forró a partir das necessidades que surgiram no Rio de Janeiro. Foi com a reivindicação de estudantes de medicina do Ceará, que frequentavam o Mangue, zona de meretrício onde tocava sua sanfona, vizinha ao Morro de São Carlos, no Estácio, seu lar na cidade, que ele redescobriu as canções cantadas por seu pai, Januário. Os estudantes disseram para Gonzaga que não dariam mais dinheiro para suas apresentações, se ele não cantasse músicas do Nordeste. Assim teve início um processo que o transformou no Rei do Baião e numa das vozes mais importantes do Brasil.

CONTINENTE Em que medida o samba vem perdendo, nos morros, espaço para o funk? O estilo tem menos adeptos hoje do que nos anos 1970, por exemplo?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não tenho estatísticas sobre isso, mas não creio que o funk carioca contemporâneo seja um problema para o samba, pelo menos não vejo uma reação de sambistas tradicionais da forma como houve à soul music da Black Rio nos anos 1970, por exemplo. Também não creio que o samba tenha perdido espaço para o soul, é só lembrar do Clube Renascença, que abriga uma tradicional roda de samba e é lugar de memória dos bailes Black do Rio de Janeiro.

CONTINENTE É possível que tenhamos no futuro uma geração tão brilhante quanto à de Noel Rosa, Wilson Batista, Geraldo Pereira, à de Cartola, Nelson Cavaquinho e à de Paulinho da Viola?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO As gerações se renovam, repletas de talentos importantes, sem linhas evolutivas e escalas.

CONTINENTE Qual momento você considera o ápice do samba, em termos de qualidade musical e espaço no mercado?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não sei dizer sobre o ápice do samba, mas é certo que o primeiro sambista negro, que também era compositor e cantor, que se tornou um sucesso de crítica e vendas foi Martinho da Vila, entre meados dos anos 1960 e início dos anos 1970.

CONTINENTE Como você avalia a qualidade do samba-enredo hoje?
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Avalio o samba-enredo ainda fora do alcance da linha evolutiva, marcado por momentos históricos de rupturas com os modelos anteriores, por isso alvo de críticas dos setores tradicionais fundadores das escolas, em constante negociação com os agentes externos e internos às agremiações. Nessa fronteira em que os bons sambas-enredo continuam acontecendo. 

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