CONTINENTE E o seu retorno de Saturno atuou nessa mudança de perspectiva.
JÚLIA HANSEN Acho que o meu retorno de Saturno me mostrou que eu não podia negligenciar esse lado espiritual da minha vida, porque senão eu ficaria literalmente soterrada pelas coisas. Escrevi o primeiro poema do Seiva veneno ou fruto no dia do meu retorno exato de Saturno, o grau preciso, e eu estava há um ano sem escrever. Desde que tinha terminado o livro Poemas do destino do mar e a minha dissertação do mestrado juntos, sentia que nada era possível de ser escrito. Quando termino um livro, entro num mutismo, numa sensação de encalacrado. Por mais que escreva, não acho que aquilo vai dar em nada. Mas, quando escrevi esse primeiro poema, sabia que tinha começado outra coisa, como se fosse o início de uma raiz para uma proliferação, sabe? E entendo que esse poema vai falar de uma espécie de aprendizado da vida que não passa por um universo racional ou cartesiano. Ele é a semente disso. Vai falar também de uma convivência com a mutualidade de mundos. Hoje, entendo que essa samambaia em cima da minha mesa é um ser ancestral, e esse ser, pra quem de alguma forma consiga simplesmente estar receptivo suficiente para observá-lo, ele diz coisas, ensina coisas, se comunica. Tudo que é vivo, tudo que existe se comunica. E, nesse sentido, acho que esse livro é um rádio, ele é uma espécie de conexão com as coisas que estão se comunicando. Ao mesmo tempo, ele só é sucinto e pequeno, com poucos poemas, porque eu exigi isso.
CONTINENTE Como se deu essa exigência para que ele fosse sucinto?
JÚLIA HANSEN Ele é 5% do que eu escrevi em três anos. Por exemplo, optei por não ter nenhum poema de amor, optei por construir uma semântica que fosse integrativa. Em certo sentido, acho que nele resolvi coisas que eu estava procurando desde os meus 14 anos, quando decidi escrever um livro. Pra mim, ele é um paradigma de fechamento, de um estancamento, da escrita mesmo; não sei o que vou fazer agora e isso me angustia um pouco.
CONTINENTE Como começaram as suas vivências com a ayahuasca e como isso transformou sua escrita?
JÚLIA HANSEN Houve uma transformação automática. Por um lado, a ayahuasca expande a consciência, então você vai ver as coisas de outros modos. Mas entendo que ela age, sobretudo, num processo de integração. A ayahuasca pode mostrar, com um uso bem-cuidado, a própria integridade, sabe? Ela mostra onde é que você é você, onde é que você habita em si mesmo. E isso pode ser por vias muito físicas, pois dizem que ela alinha teus chakras, deixa todos eles com a mesma vibração. De certa forma, pra mim, a escrita sempre foi o cerne, comecei a escrever com nove anos de idade, isso sempre esteve pulsando e sempre vai estar. Então, a ayahuasca me fez coincidir com esse caminho que já estava aí e me tirou um pouco dos restos de pensamento coletivo, porque sinto que uma coisa que me impede de escrever algo claro é quando estou pensando como a pessoa que pensa ao meu redor ou próximo de mim. Entendo que preciso silenciar, como no verso que diz “preciso dissolver um pouco dos vigilantes olhos”, uma necessidade de ouvir mais o interno a partir de um diálogo com o fora, mas sem muito blá-blá-blá semântico, crítico ou teórico.
CONTINENTE De que forma a poesia contamina o ofício da astróloga e a astrologia contamina o ofício da poeta?
JÚLIA HANSEN Comecei a estudar astrologia na mesma época em que comecei a me interessar por poesia, mas sinto que só de uns dois anos pra cá entendo que essas coisas estão muito próximas. Quando li Drummond, aos 13 anos, imediatamente senti que queria fazer aquilo. Com a astrologia, sempre foi uma coisa à conta-gotas, nunca quis transformar a minha descoberta numa disciplina, fui lendo por prazer e não por trabalho. Entendo hoje algumas coisas dessa proximidade. Num primeiro ponto, me sinto cada vez mais uma espécie de intérprete, e não astróloga ou poeta; entendo que um intérprete está no intervalo de meios. Sinto obviamente que a produção da minha escrita é minha, mas também sinto que ela é muito mais uma disponibilidade a sensibilidades das coisas que estão aí do que algo que nasça do meu âmago. Tem a ver com sintonia, sabe? Desde pequena, todas as figuras mais espiritualizadas da minha vida falam: “Ah, você é médium”. Hoje, entendo isso no sentido de “ser um meio”. A astrologia é uma das linguagens mais antigas do mundo, dentre as que estão sendo transmitidas e retransmitidas e atualizadas; ela é contemporânea à poesia, digamos assim. Mas o que sinto da ligação das duas é que, na minha vida, elas são formas de transmutação energética. A prática de astrologia que tenho com as pessoas não é uma decifração. Também tenho uma pira com oráculos, estudo I Ching, tenho estudado búzios, mas cada vez menos me interessa saber ou dizer o futuro. Eu acho que isso é uma responsabilidade que não pode ser minha.
CONTINENTE E o que se esperaria da leitura dos mapas?
JÚLIA HANSEN Quando leio o mapa de alguém, estou muito mais dando uma afinada na tonalidade da pessoa em relação ao seu mapa e transmutando energias que estão solidificadas, presas, densas, frustradas, do que qualquer outra coisa. E penso que o trabalho que faço com a poesia cada vez mais também tem a ver com isso, tem a ver com construir objetos que vão produzir na sensibilidade de quem lê uma forma de transformação de um nível de sensibilidade, de um nível energético. Entendo que o Seiva veneno ou fruto é o livro que faz isso dentre todos os meus livros; tanto que, quando ele simula a dúvida, está sempre simulando uma dúvida que não é angustiada, mas que abre para o amplo, que está sempre indo pro mais aberto, possibilitando liberdade.
CONTINENTE O que significa “estar sempre à espera de ver”?
JÚLIA HANSEN Ver é o verbo do Seiva veneno ou fruto, é o verbo articulador de tudo. Eu acho que esse “estar sempre à espera de ver” se relaciona com o estar disponível para aquilo que vem a se comunicar, entende? Esse ver pode tanto ser um ver visionário, como pode ser um ver só de uma observação, como ele pode ser um ver cinematográfico. Entendo que essa diferença entre as possibilidades do ver estão próximas de questões muito íntimas, no sentido espiritual. Numa das piores visões que tive em cerimônia de ayahuasca, passei umas quatro horas vendo nazistas, campos de concentração, uma coisa horrível. Mas eu sentia, durante essa visão, que não estava sendo uma produção interior, que não era algo que observasse como um sonho, que estivesse vendo dentro. Eu sentia mesmo que via a um centímetro dos meus olhos, pra fora, como um filme que passasse. Isso foi muito intenso pra mim. Lembro que, no dia seguinte, conversei com a xamã responsável pela cerimônia e ela me contou que o rapaz que estava ao meu lado era sobrinho de um SS nazista e que o homem que estava na frente dele era um israelense. Entende? Fiquei vendo o canal entre eles. Conto isso como um exemplo, mas eu teria “n” coisas que já vi na vida e que não são explicáveis por uma racionalidade, por uma cognição, por um encadeamento. É quase como se eu tivesse sido convencida de que essas coisas se realizam de tanto que elas me acontecem. Mas não é uma coisa em cerimônia de ayahuasca que só se dá comigo. Isso ocorre muito, se a experiência está sendo bem-cuidada por guias, xamãs, cozinheiros, que estão nivelando a energia coletiva e trazendo uma espécie de tom comum. Não é nada que me faça visionariamente especial.
CONTINENTE Nesse livro, os elementos da natureza aparecem não como alegorias ou metáforas, mas como lugares de conhecimento e de autoconhecimento. Você tinha ideia da paisagem poética que queria construir?
JÚLIA HANSEN Acho que ele é o mais inconsciente dos meus livros. No Cantos de estima, reforcei semânticas, palavras que eu queria que estivessem lá, como oceano e coração, eram coisas que estava o tempo inteiro a procurar. Passava a maior parte do meu tempo, como escritora, procurando o texto, mas hoje em dia espero que ele apareça. É mais como se fosse um tom do que um exercício; quase como se vibrasse uma nota e mantivesse um canto ali. As vidas que aparecem, o mineral, o animal, a planta, sinceramente, sinto que isso tem a ver com o que eu vivo hoje, mas tem muito a ver com a minha infância também. Desde pequena, não tem nada que me interesse mais na vida do que a vida. As memórias mais fortes que tenho envolvem estar no meio de animais, no meio de plantas, como se o universo do natural me possibilitasse conviver com tranquilidade com todas as sensibilidades que estão em mim. Por isso, ele aparece. Quase como uma espécie de ativismo político, como se dissesse: “Gente, vamos prestar atenção no que interessa?”. É engraçado uma poeta dizer isso, mas acho que a gente tem muita palavra, muito discurso, teoria, e essas coisas todas tiram a gente desse lugar.
CONTINENTE Você acredita que a sua poesia é política? E que o uso que faz das redes sociais destoa do tom afirmativo de outros escritores ou intelectuais?
JÚLIA HANSEN O uso do Facebook que eu faço é cada dia mais consciente de produzir esse deslocamento emocional nas pessoas. Comecei a fazer isso sem perceber, mas ele é cada dia mais combativo no sentido de dizer: “Galera, não vamos entrar em desespero”. Isso tem muito a ver com eu saber que, astrologicamente, a gente está mudando de fase, porque Saturno e Júpiter passam de 250 a 300 anos só fazendo conjunções em um mesmo elemento. A gente está numa fase de transição que começou nos anos 1960 e que termina, acho, em 2020. Desde a Revolução Francesa, Saturno e Júpiter estavam fazendo conjunções em elemento terra, havia uma proliferação da matéria, do capitalismo material. Agora, a gente está vivendo uma transição da terra para o ar, então, todas as questões são ligadas à informação, aos vírus, ao capitalismo financeiro, às coisas que, literalmente, se propagam pelo ar. Acho que, consciente disso, não quero fazer parte do desespero mental coletivo, isso é regra da minha existência e será. É uma espécie de tonalidade do desespero que não ajuda, e como me vejo preocupada em ter mais lugares de saúde na minha vida, construir isso com as pessoas e os seres ao meu redor, faço um uso assim do Facebook. Tento ter um gesto afirmativo no sentido de sugerir: “Abre, galera, tem mais tempo no tempo, tem mais vida na vida, tem outros tons tocando”. O que sinto no Seiva veneno ou fruto é que ele é extremamente político por conta dessa espécie de afirmatividade, sabe? Estudei Letras, fiz mestrado em Letras, nasci em uma casa com 20.000 livros, tenho uma reverberação do que o excesso de pensamento e conhecimento pode causar de fragilidade, e fragilidade no mau sentido. Como uma coisa que está fissurada, fragmentada, desconectada, destruída, e isso, a meu ver, não é um gesto vital. É um gesto de corte, não é um gesto de conexão. Entendo-o político nesse sentido, numa espécie de resistência à fragmentação dos discursos, à desconexão.
CONTINENTE Quais poetas, aos seus olhos, se comunicam com seu trabalho, influenciam e se avizinham de sua poética?
JÚLIA HANSEN Vejo muito diálogo com o Reuben da Cunha Rocha; embora, aparentemente, muita coisa dele seja muito urbana, ele fala bastante num elo mente-vegetal. Vejo a sua produção como algo que parte dessa sensibilidade e o considero um poeta-xamã-cognitivo, ele está cada vez mais a produzir saúde, eu sinto isso. E sinto isso bastante no livro ainda inédito da Bruna Beber, um universo mágico, uma outra fronteira do enigma, muito diferente dos livros anteriores dela, com uma força do axé. Esses seriam os dois casos mais fortes, de pessoas mais próximas de mim, que têm essa ligação. Já o Leonardo Fróes, desde as primeiras leituras que eu fiz dele, eu pensei: “Cacete, taí um daqueles mestres meus que eu não sabia que era um mestre porque eu nunca tinha lido”. E ele já estava me influenciando. O Ezra Pound fala isso, né? Um cara tão pragmático como o Pound, mas ele diz que mesmo aquilo que não for lido pelas gerações futuras estará incluído no trabalho de um poeta futuro. Quando eu li o Fróes pela primeira vez, senti e ainda sinto isso. Conheci o seu trabalho quando já estava muito interessada pela convivência com o vegetal, e a poesia dele dos últimos, sei lá, 30 anos é completamente isso. No sítio dele, você vê que cada uma das árvores que ele plantou parecem reconhecê-lo e tirar o chapéu pra ele, sabe? Ele é uma entidade daquele mato. Tenho muita admiração por ele. Na poesia portuguesa, eu pensaria no Herberto Helder, que foi alguém que li por todos os lados. Muito dos ritmos que os meus poemas têm, embora sejam bem diluídos, são coisas que aprendi com o Helder. E ele é o animal-vegetal-mineral-humano sendo uma coisa só, tudo é voz pra ele, tudo passa pela voz dele. Ele, pra mim, é o poeta.
CONTINENTE Você sempre fala da importância do seu pai (o professor da USP e crítico literário João Adolfo Hansen) na sua formação como algo muito amplo e fundo.
JÚLIA HANSEN A minha ligação com o meu pai é imediata. Ele diz que desde a primeira vez que me pegou no colo teve a sensação de que tinha chegado alguém com quem ele ia dialogar a vida inteira. Meu pai é muito cuidadoso com as coisas, cria orquídeas, tem um jardim que é uma selva, sempre tem animais ao redor. Acho que ele cuidou de mim como cuidaria de qualquer ser vivo que estivesse ao lado dele, com a mesma dedicação e generosidade. A imaginação que tenho me foi dada por ele. Quando eu era criança, uma das memórias mais fortes que tenho é a dele me contando histórias pra dormir, e a de que eu gostava mais era uma versão que ele tinha construído da Ilíada com a Odisseia, que chamava A guerra de Troia. Ele contava de cor, porque meu pai é a memória do mundo. Ele abre parênteses de 50 minutos e fecha, ele é muito geminiano, então tudo está falando, muito político, muito anárquico. É engraçado, tão anárquico quanto sistêmico. E ele me contava essa história que durava mais ou menos 20 dias, né? E, quando ele terminava de contar, perguntava: “e agora, que história você quer que eu te conte?” E eu dizia: A guerra de Troia. Devo ter passado dos três até os meus nove anos ouvindo, todas as noites, a Ilíada e a Odisseia, entende? Ele me deu a ética do mundo no momento em que fez isso, mas uma ética ficcional, uma ética narrativa, uma ética ancestral. Desde que comecei a escrever, ele percebeu que eu tinha um desejo de escrita e foi me dando toques, alguns mais suaves e outros mais duros. E entendo que, sobretudo na minha adolescência, de certa maneira, procurava nele uma espécie de legitimação crítica daquilo que eu estava escrevendo. Ficava o tempo inteiro a não saber muito bem o quanto estava escrevendo e o quanto estava sendo escrita por uma legitimação. Isso eu vejo hoje, não via isso assim na época, claro.
CONTINENTE Por isso você diz que começou a escrever algo que considerasse bom quando deixou de escrever para o seu pai e começou a escrever para sua mãe?
JÚLIA HANSEN Quando eu tinha uns 23 anos, estava fechando a faculdade, em que essa questão da legitimação da crítica tinha quase que minado a minha poesia. Daí percebi que o que eu procurava era uma aceitação da ligação com um possível leitor. Quem dá essa aceitação da ligação na vida é a mãe, né? E minha mãe tem uma sensibilidade contemplativa que meu pai não tem. Meu pai trabalha o tempo inteiro, ele está sempre ativo. Minha mãe tem uma sensibilidade do olhar, do tocar, do comer; uma sensibilidade física. Aí também percebi que, quanto mais me aproximasse desse tipo de sensibilidade, mais generosidade conseguiria ter com a escrita, e ela saía do mental e virava um corpo. A apreciação da minha mãe nunca é analítica, ela é “gostei” ou “não gostei”. Ou “é lindo, me comove”, ou “não entendi”. No meu primeiro livro, eu mostrava os poemas para o meu pai e ele falava “isso não é poesia”. Daí, tive que parar de mostrar pra ele. Quando eu terminei, decidi propor que ele revisasse o texto gramático do livro. Fiz isso com medo, pensando que ele ia achar uma merda, mas, quando terminou ele disse: “Entendi, você estava fazendo um pássaro e não um livro”.