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“A sexualidade sempre vai ter um traço transgressor”

A psicóloga Marina Pinheiro, com doutorado em cognição, partilhou com a Continente sua percepção sobre as convergências entre sexo, relacionamento e conectividade extrema

TEXTO Marina Pinheiro

01 de Janeiro de 2017

A psicóloga e pesquisadora Marina Pinheiro

A psicóloga e pesquisadora Marina Pinheiro

Foto Daniela Nader

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 193 | janeiro 2017] 

Professora do Departamento de Psicologia da UFPE, com doutorado em cognição, pesquisa em linguagem e subjetividade na contemporaneidade e uma investigação atual sobre processos criativos, a psicóloga Marina Pinheiro partilhou com a Continente sua percepção sobre as convergências entre sexo, relacionamentos e conectividade extrema. “Há a ideia da virtualidade como uma grande novidade, mas ela participa da construção humana desde quando nos consideramos sujeitos com hábito de fala, e principalmente quando pensamos na comunicação e interação como um eixo que, ao longo da história da humanidade, sempre foi o lugar de embate e da instrumentalização do discurso”, sustenta.

CONTINENTE Como refletir sobre sexo nesse contexto de hiperconectividade e de uma subjetividade editável, se o sexo é uma linguagem que, desde sempre, se atrela à intimidade da alcova e agora aparece em evidência e em maior exposição nas fraturas da contemporaneidade?
MARINA PINHEIRO Lembro-me do psicanalista Jurandir Freire Costa e do seu livro Sem fraude nem favor – Estudos sobre o amor romântico. Um dos pontos que ele coloca é que hoje somos formados numa cultura da autorrealização e da individuação, mas do ponto de vista afetivo os nossos mitos ainda são quase shakesperianos – a renúncia, a entrega, o grande amor e ainda aquela noção de pensar no amor como uma espécie de rendição absoluta, de passividade. Claro que não estou igualando a questão da sexualidade ao amor, mas essas contradições são próprias ao nosso tempo, se pensarmos nessas plataformas pela transicionalidade de que fala (o pediatra e psicanalista inglês Donald Woods) Winnicott e na divisão que marca a sexualidade. A sexualidade é o enigma fundamental de todo ser vivente. Nessas plataformas, encontramos um campo de expansão. O próprio Freud, aliás, dizia com relação às tecnologias que elas são como a realização de um desejo; quase como os contos de fadas, amplificadoras, e nesse sentido estão aí também para potencializar essas formações. Há os riscos: o lado obscuro da impulsividade, do anonimato, da objetificação, da instrumentalidade. Vejo essas plataformas como um campo privilegiado para exploração dessas outras formas de viver o erotismo e a sexualidade, talvez até permitindo uma outra via de acesso… Uma facilitadora desses acontecimentos, dessas atuações. Não temos mais como dizer “não, porque antes era assim”, pois esse antes já não existe. É uma comparação incomensurável.

CONTINENTE Ao entrar num aplicativo, a pessoa faz a exposição da figura; ao mandar nudes, também se expõe. Você acredita que o fator da hiperexposição traz implicações?
MARINA PINHEIRO Em A câmara clara, Roland Barthes já falava do que acontece com o nude ou a superexposição. Ele escreve sobre seu desconforto ao ser fotografado: “caio numa imitação infinita de mim, sou capturado por um sentimento de inautenticidade e o outro pode fazer de mim o que quiser”. O que está jogado no nude é justamente que essa imagem não tem como ser desfeita. É uma materialidade que no momento não é mais minha, mas, sim, do outro. E esse outro faz o uso dela que bem entender. Vêm daí as histórias que vemos de bullying ou violência quando essa exposição ganha um destino que não é previsto pelo autor. As relações de confiança são outro problema da contemporaneidade, para além da questão da sexualidade.

CONTINENTE É quase como se estivéssemos em um episódio do seriado Black mirror: imersos em tanta tecnologia para nos libertar, mas também ficar reféns das consequências.
MARINA PINHEIRO A tecnologia favorece a expressão de tudo aquilo que não se pode colocar na rua. Mas tem também a exploração e o acesso a todos os tipos de vivência. A sexualidade sempre vai ter um traço transgressor, independentemente da tecnologia. Mas podemos pensar que a ferramenta em si não é boa nem ruim; vai depender do uso. Sou pragmática em relação às mediações. Coloca-se uma autonomia para os dispositivos que eles não têm. Existe outra coisa que faz parte dos juízos, dos valores de um tempo, e, aí sim, temos uma seara bem mais complexa, que tem os efeitos performativos nesse uso. Agora, os dispositivos talvez ampliem o acesso a possibilidades de você experimentar a sexualidade. A contemporaneidade é bastante incitativa. Há um forte apelo, tanto para o “viva o hoje” como para o “seja você mesma, se singularize, deixe a sua marca, marque o seu corpo”. Do ponto de vista da psicanálise, o superego não é só, como se imagina no social, a proibição e interdição; é superincitativo, é tirânico. Ele quer que você vá lá e faça. Muito da impulsividade vem do superego; a mídia e a produção tecnológica nos fornecem mais acesso, porém, o superego faz parte da nossa constituição, é inerente à dimensão do fantasma e nos incita.

CONTINENTE Esse jogo de incitação/excitação não poderia levar a pessoa a se ensimesmar, a fazer sexo consigo mesma ou apenas pela mediação virtual 
MARINA PINHEIRO Talvez, se não existisse esse gadget, nem isso fosse ser possível para esses sujeitos. Percebe? São imensas as possibilidades que o uso dos dispositivos dá. Com a sexualidade, muitas vezes nos vemos diante de uma máquina nova na feira de prazeres e experimentações. Mas sempre tendemos a achar que estamos vivendo menos e que o outro, quem quer que seja, está vivendo mais. Por outro lado, esse corpo, se é visto, é disciplinarizado – desde as dietas, ao movimento fitness, às plásticas. Há o ritual da exploração e potencialidade desse corpo como uma arena mesmo, que vai se emprestar às diferentes vozes sociais que dele vão tentar se apropriar. Vem o empenho para ser um poeta forte, para conseguir se apoderar desse corpo, para que, de um corpo hipersensível se torne um corpo próprio, um atravessamento de tantas vozes, invasões e sequestros afetivos que vivemos no interior.

CONTINENTE Sequestros afetivos interiores?
MARINA PINHEIRO Penso numa cultura em que você tem a sensação de que tudo está ali, num grande mercado de prazeres, numa lógica de consumo mesmo. Vai depender da minha escolha e eu estarei submetida aos sentidos da efemeridade e das sensações. Em um tempo de muita coerção social, como o que estamos vivendo agora, quais são os apetites, que pulsão vamos alimentar? Precisamos pensar que a esfera da sexualidade acaba se tornando essa espécie de amortecedor dos prazeres, dos excessos e das angústias que o corpo permite. Nesse momento, os excessos podem surgir das mais diversas formas – do erótico, dos apetites, da sexualidade – e estar sujeitos às sensações que surgem quando os sentidos comuns e coletivos se tornam muito opressivos, ou profundamente dissonantes. É como se ficássemos à deriva do corpo. Christopher Lasch falava do corpo como refúgio de um mundo sem coração, de muito embate, hostil e sem garantias.

CONTINENTE Como exercer a sexualidade na sua definição mais ampla e poder ser quem é e quem quiser ser em tempos de recrudescimento de um pensamento conservador?
MARINA PINHEIRO É quando a sua vida afetiva se torna um ato transgressor, que transgride e recria, a dupla face de tudo. E você pode reconstruir naquele universo ali um campo de autoria e de resistência, um território seu. Penso cada vez mais que tudo volta para o corpo como uma plataforma a partir da qual se pode reescrever a sua história. Uma plataforma política. Você já viu o documentário Bichas? Na história daqueles meninos, que falam sobre suas saídas do armário, o que se presentifica muito forte são as alienações – ora feitas pela Igreja, ora pela família – e as interdições da palavra. Então, quando eles falam, não é só por cada um, mas também pelos outros. Para mim, são polaridades dialógicas: em tempos de recrudescimento, as formas de resistência e recriação vêm com força no campo das artes e da sexualidade. Elas surgem como uma plataforma possível para ser quem pode e se quer ser. Para viver as liberdades possíveis. É como se ali você encontrasse o fortalecimento do ideal de ser um poeta forte. E, ainda que de forma marginal, construísse uma linguagem que seja própria sua. O que marca a nossa linguagem é a ambiguidade, é a possibilidade de ser outra coisa. E essa é uma luta para a vida toda.  

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