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Na briga por mais representatividade

Campanhas que pedem maior diversidade de gente e personagens não brancos no cinema ecoa na safra de filmes norte-americanos prevista para 2017

TEXTO Mariane Morisawa

01 de Janeiro de 2017

O filme

O filme "O nascimento de uma nação" traz a história de escravo que liderou uma revolta no sul dos EUA no século 19"

Foto divulgação

[conteúdo da ed. 193 | janeiro 2017] 

Com a chegada da temporada de premiações, Hollywood volta a pensar em #OscarsSoWhite. Nos últimos dois anos, a hashtag criada por April Reign, do site BroadwayBlack.com, foi usada para criticar a falta de não brancos no prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A repercussão foi tanta, que a presidente da Academia resolveu tomar medidas. Cheryl Boone Isaacs, mulher e negra numa organização que, em fevereiro do ano passado, era 91% branca e 76% do sexo masculino, anunciou a decisão de dobrar o número de representantes de minorias até 2020. Em junho, convidou 683 novos membros, um recorde, sendo 46% deles mulheres e 41% não brancos.

Apesar dos esforços da Academia, a verdade é que o problema começa bem antes, na aprovação de projetos e produção de longas-metragens. Segundo o relatório de Diversidade em Hollywood, feito pelo Centro Ralph J. Bunche de Estudos Afro-Americanos da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), das 163 maiores bilheterias de 2014, apenas 12,9% tinham protagonistas de uma das minorias – negros, asiáticos, latinos ou nativo-americanos –, quando elas, somadas, representam 37,9% da população. Outro estudo, promovido pela Universidade do Sul da Califórnia (USC), chegou à conclusão de que, entre as 100 maiores bilheterias de 2015, apenas 14 tinham protagonistas ou coprotagonistas não brancos. Entre os personagens com falas, 73,7% eram brancos.

Mas 2016 terminou sendo um bom ano para as minorias no cinema norte-americano. Gil Robertson, presidente da Associação de Críticos de Cinema Afro-Americanos, fez um comunicado dizendo que foi um ano “excepcional” para negros no cinema. Começou com a aquisição recorde no Sundance Festival de O nascimento de uma nação, de Nate Parker, homônimo do clássico de D.W. Griffith, que revolucionou o cinema e elogiou a Ku Klux Klan. Parker escreveu, dirigiu, produziu e protagonizou o longa-metragem sobre Nat Turner, um escravo que virou pregador e liderou uma revolta nas fazendas do sul dos Estados Unidos no século XIX. Sua ideia foi destacar uma história pouco conhecida sobre a resistência dos escravos, mostrando que O nascimento de uma nação de Griffith tinha também um outro lado, apoiado no sofrimento dos homens e mulheres trazidos da África.

Desde janeiro, quando foi comprado pela Fox Searchlight por uma quantia recorde, US$ 17,5 milhões (cerca de R$ 59 milhões), poucos dias depois do anúncio dos indicados do Oscar de 2016, a produção entrou na lista de possíveis premiados. Mas, em agosto, ressurgiu na imprensa a acusação de estupro contra o diretor e seu amigo Jean Celestin, que divide o crédito pelo argumento. Ambos foram julgados, com Parker sendo inocentado e Celestin, condenado, mas depois libertado. A resposta pouco convincente de Parker em relação ao caso acabou prejudicando a carreira do filme, que fez apenas US$ 15,8 milhões na bilheteria norte-americana.

Outros filmes falam abertamente da experiência dos negros com o racismo nos Estados Unidos. É o caso de Fences (ainda sem estreia definida no Brasil), dirigido e protagonizado por Denzel Washington, baseado na peça de August Wilson, vencedora do Pulitzer e do Tony em 1987. Washington é Troy, um ex-jogador de beisebol que não conseguiu muito sucesso e luta para sustentar a família na Pittsburgh dos anos 1950. Viola Davis interpreta sua mulher, Rose.

Loving, de Jeff Nichols, um dos diretores americanos mais interessantes da atualidade, inspira-se na história real de Richard (Joel Edgerton), branco, e Mildred (Ruth Negga), negra, que se apaixonam na década de 1950 e decidem se casar depois de ela engravidar. Como o casamento inter-racial é proibido no Estado da Virgínia, eles vão até Washington D.C. Ao voltar para sua cidade de origem, onde vivem suas famílias, os dois são presos e depois banidos de morar na Virgínia por 25 anos. Tempos mais tarde, ela escreve para o senador Robert Kennedy e recebe uma indicação à American Civil Liberties Union, que oferece um advogado para levar o caso ao tribunal. Nichols evita todos os clichês desse tipo de filme, mostrando Richard e Mildred como pessoas comuns, que não tinham interesse no ativismo, mas foram obrigadas a procurar seus direitos e, por isso, mudaram a história.

Estrelas além do tempo, de Theodore Melfi, que tem lançamento previsto para este mês no Brasil, também é baseado em fatos. O filme foca em Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três negras que eram “computadores humanos”, responsáveis pelos cálculos do programa espacial americano antes da chegada dos computadores-máquinas, no início da década de 1960. No estado da Virgínia, ainda estavam em vigor as leis Jim Crow de segregação racial, o que fazia com que tivessem de usar banheiros separados, por exemplo. Johnson, a única ainda viva, recebeu uma Medalha Presidencial da Liberdade, entregue por Barack Obama, em 2015. O próprio fato de essa história incomum de triunfo ser praticamente desconhecida é um atestado de racismo e falta de interesse pelas narrativas dos negros.

HISTÓRIAS COMUNS
Por outro lado, uma das grandes sensações da temporada é Moonlight, de Barry Jenkins, que não se baseia em história real nem fala exatamente da luta contra o preconceito. O filme, escolhido o melhor do ano pela Associação de Críticos de Los Angeles, tem elenco totalmente negro, é baseado na peça de um negro e dirigido por um negro. É uma história de crescimento, como tantas já contadas no cinema, ao mesmo tempo universal e específica, sobre Little (Alex R. Hibbert), um menino que sofre bullying e é protegido pelo traficante Juan (Mahershala Ali). Sua mãe (Naomie Harris) é viciada em drogas. Na adolescência, chamado Chiron (Ashton Sanders), descobre sua homossexualidade. Na terceira parte, já adulto, agora apelidado Black (Trevante Rhodes), lida com suas escolhas.

O longa-metragem atende a uma reivindicação expressa por boa parte das associações de minorias: histórias comuns sobre gente comum, estreladas por negros, latinos, asiáticos. “Na maioria das vezes, os filmes negros que concorrem ao Oscar são sobre pessoas como Martin Luther King Jr. ou Malcolm X ou Solomon Northup. Pessoas que, por qualquer medida, são exemplares”, disse Marc Bernardin, em artigo na revista The Hollywood Reporter, referindo-se a produções como Selma – Uma luta pela igualdade, de Ava DuVernay, Malcolm X, de Spike Lee, e 12 Anos de escravidão, de Steve McQueen. Mais adiante, ele complementa: “Por outro lado, há filmes como Joy: o nome do sucesso, sobre uma mulher branca que inventou um negócio e ficou milionária”. Como ele bem apontou, ela não foi a primeira mulher a ficar milionária nos Estados Unidos. “Ou O quarto de Jack, sobre uma mulher branca e seu filho presos num quarto. Ou Nebraska, sobre um homem velho branco que gosta de perambular. Ou Blue Jasmine, sobre uma mulher branca rica que fica sem dinheiro”. Moonlight é um filme sobre as dores do crescimento. Little, ou Chiron, ou Black é negro e homossexual, mas o longa-metragem não é sobre isso, ainda que não ignore essas questões.

Esses filmes todos são boas notícias e provam que ter mais negros em posições decisórias – como produtores, chefes de estúdio, diretores e nas agências de talentos – é fundamental para que suas narrativas cheguem à tela. Mas a verdade é que, apesar da justa reclamação dos últimos anos, a discrepância é menor para os atores negros em comparação com outras minorias. Eles receberam 10% das indicações desde 2000, sendo 13,3% da população americana. É pior no caso dos latinos – 3% de indicações para 17,6% da população – e asiáticos – 1% para 5,6% da população. Entre as 100 maiores bilheterias de 2015, apenas uma tinha protagonista ou coprotagonista latino, e quatro foram protagonizadas por mestiços. Nenhuma por asiáticos. É ainda pior porque as minorias, embora representem 37,9% da população, compraram 46% dos ingressos de cinema nos Estados Unidos em 2014 – só os latinos compram um quarto das entradas. No caso da maior bilheteria daquele ano, Transformers: a era da extinção, as minorias representaram 59% do público doméstico.

Isso fez com que a atriz Gina Rodriguez, estrela da série Jane the Virgin, fizesse uma campanha nas redes sociais, chamada Movement Mondays, por mais papéis para latinos. Os americanos asiáticos também estão lutando por seu espaço. Fizeram uma campanha nas redes sociais contra as piadas com conteúdo preconceituoso em relação aos asiáticos de Chris Rock na cerimônia do Oscar de 2016, que destacou como muitas vezes o preconceito vem de outras minorias também. Depois, protestaram, com a hashtag #Whitesahedout, contra a escolha de Tilda Swinton e Scarlett Johansson em papéis de personagens asiáticos em Doutor Estranho e Ghost in the shell. Também colaram o rosto de John Cho e Constance Wu sobre a face de outros atores, indicando que eles poderiam ter feito filmes como Perdido em Marte ou Jurassic World.

MERCADO GLOBAL
Demorou, mas a constatação de que as minorias são fundamentais para a bilheteria parece começar a fazer diferença nas produções mais comerciais também – oito filmes com elenco composto por 41% a 50% de minorias arrecadaram US$ 122 milhões em 2014, contra US$ 52,6 milhões de 55 longas com menos de 10% do elenco de minorias. Esses filmes precisam, mais do que nunca, conquistar também o mercado global. Entre as maiores bilheterias de 2016, Capitão América: guerra civil, Mogli – O menino lobo, Esquadrão suicida e Doutor Estranho tinham não brancos como protagonistas. Sete homens e um destino era praticamente um filme de cotas, com um negro, brancos, um latino, um asiático e um nativo-americano juntando-se a três brancos.

Rogue one: uma história Star Wars tem um latino (Diego Luna), um inglês descendente de paquistaneses (Riz Ahmed), dois chineses (Donnie Yen e Wen Jiang) e um negro (Forest Whitaker) no elenco principal. Quase nenhum desses fala exatamente da experiência dessas minorias nos Estados Unidos e estão mais voltados para conquistar o mercado internacional, mas, sem dúvida, têm o importante papel de colocar na tela tipos diferentes de pessoas, com a possibilidade de empoderar jovens e crianças. Moana – Um mar de aventuras, a nova animação da Disney, que também estreia neste janeiro, abandonou as princesas loiras para dar lugar à futura líder de um povo da Polinésia, morena, de cabelos cacheados e corpo menos esquálido. A luta por mais representatividade das minorias no cinema, sem dúvida, ganhou força durante o governo de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. O próprio Obama foi objeto de dois filmes, Michelle e Obama e Barry, que está no ar na Netflix. Deu destaque a peças de teatro fundamentais, como Hamilton, de Lin-Manuel Miranda. Na televisão, que tem um modo de produção mais ágil, hoje se veem várias séries com elenco totalmente negro, asiático e latino, ou com protagonistas negros, asiáticos e latinos. Durante seus oito anos no cargo, o tema da identidade tornou-se preponderante, causando uma reação que foi ao menos parcialmente responsável pela eleição de Donald Trump. Não dá ainda para saber como o novo governo vai influenciar as artes e o entretenimento. Será que teremos mais produtos culturais com o norte-americano branco de classe média que se sente excluído? Pode ser. Mas parece difícil ignorar que, em 2016, quase 38% da população é de minorias. E que, daqui a 24 anos, as minorias, somadas, vão se tornar a maioria. 

 

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