Arquivo

A voz do morro, o rei do terreiro

Do enfrentamento da violência e do preconceito ao status de símbolo nacional, a transformação musical e social do gênero que, ao longo do seu centenário, ajudou a construir uma ideia de Brasil

TEXTO Débora Nascimento

01 de Janeiro de 2017

Mestre-sala e porta-bandeira em ensaio da Mangueira de 1977

Mestre-sala e porta-bandeira em ensaio da Mangueira de 1977

Foto Amicucci Gallo/reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 193 janeiro 2017] 

Donga: Ué, samba é isso, há muito tempo (cantando): O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou me avisar/ Que na Carioca/ tem uma roleta/ para se jogar.

Ismael Silva: Isso é maxixe.

Donga: Então, o que é samba?

Ismael Silva (cantando): Se você jurar/ que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar.

Donga: Isso não é samba, é marcha.

A discussão acima transcrita, ocorrida numa sala da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM), no final da década de 1960, no Rio de Janeiro, foi protagonizada por dois personagens importantíssimos na história do samba: Donga, autor oficial de Pelo telefone, lançado há exatos 100 anos, e Ismael Silva, cristalizador, junto à “turma do Estácio”, do gênero musical brasileiro como o conhecemos hoje.

Pelo telefone, na realidade, uma música de versos desordenados que em nada se parece com o samba atual, exibia, com a irônica denúncia da corrupção policial, a capacidade que o gênero musical teria para criticar e, embora sem pretensão, documentar os fatos políticos, sociais, econômicos e culturais do país.

Lançada em janeiro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial e há menos de 30 anos da promulgação da Lei Áurea, a composição, ao se tornar o maior sucesso do Carnaval daquele ano, marca o início do samba como gênero musical, o começo da tradição das composições carnavalescas e da batalha dos negros por uma nova posição na sociedade.

“Sem condições de emprego condigno após a conquista do rudimento de ensino representado por três ou quatro anos de escola primária, esses filhos de famílias humildes defrontavam: o trabalho braçal (ainda estigmatizado pelo não há muito extinto regime de escravidão), o aprendizado de alguma atividade artesanal ou especializada (marceneiro, ilustrador etc.) ou a livre disponibilidade para algum trabalho eventual englobado na categoria dos ‘pequenos expedientes’”, contextualiza o historiador José Ramos Tinhorão, em História social da música popular brasileira (1990).

A partir de Pelo telefone, o samba refletiria a trajetória social do país. Registrada como “samba” em novembro de 1916, por Donga e Mauro de Almeida, a composição, na realidade, era fruto de uma criação coletiva elaborada a partir de muito improviso na festiva casa da cozinheira e mãe de santo Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata (moradora do número 117 da Rua Visconde de Itaúna, próxima à Praça Onze de Junho), uma das míticas tias baianas, que, junto aos ex-escravos, vieram ao Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor e ficaram eternizadas na história do samba. O próprio Donga (Ernesto dos Santos) era filho de uma delas, Tia Amélia.

“Esse tratamento de tias para as mulheres que se salientavam aos olhos da comunidade pela maior experiência resultante da idade, ou pelo sucesso financeiro pessoal (o que as credenciava a proteger recém-chegados, órfãos da vizinhança, e a promover festas em suas amplas casas), constituía uma sobrevivência cultural africana, em que na ordem familiar matrilinear o papel dos irmãos é tão importante, que os sobrinhos aparecem quase como filhos. Essa mesma estrutura familiar muito comum por toda a África, embora matizada conforme a região, entrega a casa da família ao controle total da mulher, o que viria a explicar a predominância dessas negras senhoras da comunidade baiana no Rio de Janeiro”, destrincha Tinhorão.

ONDAS MIGRATÓRIAS
Com a abolição da escravidão, em 1888, começam as ondas migratórias no país. A maioria dos trabalhadores negros saem do campo para a cidade e tentam encontrar no Rio de Janeiro, capital da República (a partir de 1889), um lugar para estabelecer moradia. Os migrados passam a ocupar a chamada “pequena África”, situada entre a Pedra do Sal e a Cidade Nova, que, comprimida pela especulação imobiliária, espalha-se por diversos morros, habitados em ajuntamentos de casebres, erguendo o que seria chamado de favela.

Esse movimento migratório dobrou, em menos de 30 anos, a população da capital do país, de 522.651 habitantes, em 1890, para 1.077.000, em 1917 – ano de lançamento de Pelo telefone. Em 2016, são 6,5 milhões. De acordo com o levantamento do IBGE, em 2010, o Rio era a segunda cidade brasileira com maior número de negros e pardos, cerca de 3 milhões – em primeiro lugar, está São Paulo, com 4,2 milhões, e, em terceiro, Salvador, com 2,7 milhões.

Naquele início do século XX, como reverberação do recente período pós-escravidão, os sambistas passam a enfrentar muito preconceito, principalmente porque os locais onde aconteciam os sambas costumavam ser também terreiros. A polícia os invadia e prendia sambistas, pais e mães de santo. “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isso que estou contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas de xadrez”, contou Donga ao pesquisador Hermínio Bello de Carvalho. Dentre as punições, amarravam os detidos com uma corda, para, pendurados pela barriga, na altura da água, raspar a ferrugem do casco de um navio.

“A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento. Houve uma festa no Morro da Graça, no palacete do (senador) Pinheiro Machado e eu não fui. Pinheiro Machado perguntou então pelo rapaz do pandeiro. Ele se dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, Marechal Hermes, coronel Costa, todos viviam nas casas das baianas. Pinheiro Machado achou um absurdo e mandou um recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E eu fui. Ele então perguntou por que eu não fora à casa dele e respondi que não tinha aparecido porque a polícia havia apreendido o meu pandeiro na festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se poderia mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do seu Oscar, o Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um pedaço de papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro com a seguinte dedicatória: ‘A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro Machado’”, relatou ao jornalista Sérgio Cabral o compositor João da Baiana, que por diversas vezes foi preso.

A partir da constatação do talento de músicos como Sinhô, Pixinguinha, Donga, os brancos das classes média e alta começaram a se interessar pelos temas relativos aos negros. No artigo Acerca da valorização do preto, publicado no Diario de Pernambuco, em 19 de setembro de 1926, Gilberto Freyre escreve, sete anos antes de lançar Casa-grande & senzala, sobre um evento musical que presenciou no Rio, convidado por Heitor Villa-Lobos: “Ontem, com alguns amigos – Prudente (de Morais Neto), Sérgio (Buarque de Holanda) –, passei uma noite que quase ficou de manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e o preto bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira. Ouvindo os três, sentimos o grande Brasil que cresce meio tapado pelo Brasil oficial e postiço e ridículo de mulatos a quererem ser helenos (…) e de caboclos interessados (…) em parecer europeus e norte-americanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (…) através do pince-nez de bacharéis afrancesados”.

O sociólogo pernambucano possivelmente se referiu ao período do pós-Primeira Guerra Mundial, em que o samba começou a sofrer a concorrência da música norte-americana, como charleston, fox-trot, black-bottom, shimmy. Nessa época, as empresas fonográficas instaladas no Brasil passaram a gravar jazz bands, que, por sua vez, atendendo a esse interesse, multiplicavam-se, concedendo ao entretenimento no país uma ilusão de glamour. Iniciava-se a tradicional peleja da música brasileira, em seu próprio mercado, contra as vantagens da qual desfrutava a estrangeira, principalmente no quesito marketing.

“O interessante a observar é que, enquanto o público da nova classe média emergente da fase de transição da economia pré-industrial, manufatureira, para a da moderna indústria, se deixava arrear com as novidades importadas, as camadas populares urbanas mais baixas viviam, no mesmo período histórico, um dinâmico processo de grande riqueza criativa. Levados pela natureza excludente da economia a viver por si, os componentes das camadas mais pobres (trabalhadores não qualificados, biscateiros e subempregados em geral) passaram a organizar-se culturalmente para si”, comparou José Ramos Tinhorão.

ASSIMILAÇÃO A diminuição do preconceito enfrentado pelo samba começou a partir do sucesso de Pelo telefone no Carnaval de 1917 e de outras composições do gênero lançadas na década de 1920 e início da década de 1930, despertando a atenção dos artistas brancos das classes média e alta para o novo gênero. O cantor Mário Reis, filho de comerciante, estudante de Direito e marco divisor na forma de se cantar no país, ao conhecer José Barbosa da Silva, o Sinhô (1888-1930), no centro do Rio, o convidou para ser seu professor de violão.

Mário gravou a composição de maior sucesso de Sinhô, Jura, que catapultou sua carreira. “O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda”, escreveu Manuel Bandeira, em 1937, sobre o Rei do Samba. O poeta pernambucano anotou, ainda, a divisão entre as classes sociais que existia no Rio de Janeiro da época. “Sinhô para toda a gente era uma criatura fabulosa vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão – é no Estácio, mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é de que ali o pessoal vive de brisa, cura tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem”.

No final de 1929, mais artistas brancos estreantes engrossavam o caldo do gênero. Naquele ano, o recém-formado Bando de Tangarás lançou Na Pavuna, a primeira gravação a usar “a batucada própria de escola de samba”, como afirmou seu líder, Almirante. O quinteto, surgido a partir da inspiração dos conjuntos regionais, como Os Turunas Pernambucanos e Os Turunas da Mauriceia, acabou se rendendo ao estilo musical. “No final dos anos 1930, um grupo de jovens de classe média (da baixa à alta classe média) branca começou a ter uma participação decisiva na história do samba: foi a turma de Vila Isabel, que incluía nomes como Noel Rosa (filho de gerente comercial e professora), Almirante (órfão aos 15 anos, trabalhou como caixeiro e serviu na Marinha – daí seu apelido) e Braguinha (filho de industrial)”, relata Hermano Vianna, em O mistério do samba (1995). “Essas expedições acompanhavam a transformação da cidade, tanto em seu crescimento para os subúrbios quanto no surgimento de favelas em vários morros. A população pobre começava a viver realmente separada da população rica. Antes de 1930, as classes sociais se misturavam mais desordenadamente no espaço geográfico do Rio de Janeiro.”

Em Noel Rosa – Uma biografia (1990), os autores João Máximo e Carlos Didier apontam a participação do Poeta da Vila na formação do “samba carioca”: “Sempre querendo conhecer o que produzem esses sambistas de morro, trocar informações com eles, somar experiências, Noel segue peregrinando. Salgueiro, Mangueira, outros morros. Faz expedições aos subúrbios, ouvidos atentos”.

Nessas peregrinações, conheceu Ismael Silva, futuro parceiro em 18 composições, integrante da Turma do Estácio (Bide, Marçal, Bucy Moreira, Newton Bastos, Baiaco, Brancura, Mano Rubem, Mano Edgar), responsável pela fundação da primeira escola de samba, a Deixa Falar, em 1928, no Morro de São Carlos, e por consolidar o “samba carioca”, mais ritmado, que se diferenciava daquele amaxixado, levado ao Rio pelas tias baianas e ainda presente na gravação de Pelo telefone.

O sambista e estudioso Nei Lopes resume essa história em um trecho de O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (1992): “Traçando a linha evolutiva que vem do batuque de Angola e do Congo até o partido-alto, vamos encontrar: a) primeiro, o lundu bailado, dando origem ao lundu puramente canção dos salões imperiais, aos sambas rurais da Bahia e de São Paulo, a um lundu campestre ainda dançado, e a outras manifestações; b) depois, todas essas expressões (com a chula do samba baiano ganhando status de manifestação autônoma) confluindo para o que chamaremos de samba da ‘Pequena África da Praça Onze’, onde o núcleo irradiador foi a casa de Tia Ciata; c) depois ainda, o samba amaxixado da ‘Pequena África’, dando origem ao samba de morro; d) finalmente, esse samba de morro se dicotomizando em samba urbano (a partir do Estácio), próprio para ser dançado e cantado em cortejo, e em partido-alto, próprio para ser cantado em roda”.

Ismael Silva, líder da Turma do Estácio e autor desse “samba urbano”, explicou, no programa MPB Especial, exibido em 16 de abril de 1973 na TV Cultura, a origem de um famoso termo que criou: “E esse nome escola de samba é porque nesse bairro existia a Escola Normal, de onde saíam os professores. Portanto, o Bairro de Estácio de Sá passou a responder para os outros lugares, para os outros agrupamentos, que ‘escola de samba era lá no Estácio’, ‘a escola de samba era lá’. Aquelas bobagens, aquelas pretensões, né? Cada lugar queria ser o maior, né?, o tal”.

ESCOLAS DE SAMBA
Em 1932, quatro anos após o desfile da Deixa Falar, acontece o primeiro concurso das escolas de samba a partir de uma ideia do pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues. Proprietário do jornal Mundo Sportivo, o jornalista inventou a disputa carnavalesca como forma de suprir a falta de notícia nas entressafras dos campeonatos futebolísticos. Na estreia, desfilaram Vai Como Pode (Portela), Para o Ano Sai Melhor (Estácio de Sá), Unidos da Tijuca e a vencedora, Estação Primeira (hoje, Mangueira), criada por Cartola.

“A Mangueira foi fundada em 1927/1928. A gente fazia muita bagunça, né? (No Bloco dos Arengueiros.) E a gente era malquisto no morro por causa daquilo. Aí nós resolvemos: ‘Bom, vamos fazer uma escola de samba’. Já tinha o Estácio. Aí, nós fizemos nossa escolazinha. Só tinha barbado. Aí, no outro ano, já foi aparecendo umas meninazinhas, daquelas que gostam de bagunça. Mas a gente foi fazendo sério, sério, sério, confirmando a coisa e acabou os outros (seis) blocos (do bairro) todos cedendo. Fizemos Estação Primeira, no ano seguinte já saímos com umas 40 pessoas. Depois foi crescendo, crescendo, crescendo, e hoje é isso que você vê”, recordou Cartola, no MPB Especial, de 23 de março de 1973.

Na sequência, o evento carnavalesco passaria a contar com apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro e do jornal O Globo, que elaborou um regulamento, proibindo a presença de instrumentos de sopro e instituindo a obrigatoriedade da ala das baianas. E, em 1937, o Estado Novo, com sua política nacionalista, determinou que os enredos tivessem “caráter histórico, didático e patriótico”.

Durante a Era Vargas, de 1930 a 1945, a música popular brasileira, representada pelo samba principalmente, ocuparia posição de destaque no mercado nacional. Para essa divulgação, havia, ainda, a contribuição do fundamental suporte da época, o rádio, em sua fase de popularização.

O uso da música como arma política de propaganda encontrava-se em vários exemplos: o presidente levava artistas em suas viagens internacionais, incentivava a execução de canções em rádios estrangeiras, recomendou pessoalmente a Carmen Miranda que não aceitasse o convite da Broadway sem a inclusão dos músicos brasileiros que a acompanhavam. Mas também chegava a interferir nas letras.

O bonde de São Januário (1941), de Wilson Batista, em plena época de culto à malandragem dentre os sambistas, foi censurada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e teve que ser modificada. A letra, com o verso original “O bonde de São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu não vou trabalhar”, acabou ficando: “Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde de São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”.

Em 1939, como uma confluência a esse apoio de Vargas, é lançada Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, canção que enaltecia as belezas brasileiras e estreava o subgênero samba-exaltação. A composição, que se tornou uma espécie de segundo hino nacional, foi incluída no filme Alô Amigos (Saludos amigos, 1942), de Walt Disney. O cineasta veio ao Brasil em 1941 como a missão cultural da política de boa vizinhança dos Estados Unidos, que mais visava intenções políticas e econômicas na América Latina, em plena época da Segunda Guerra Mundial. Em 1942, seria a vez de Orson Welles aterrissar no país e registrar imagens, como as do carnaval carioca em que Donga aparece sorridente.

O samba-exaltação, requintado e, ao mesmo tempo, potencialmente kitsch, teria poucos exemplares, como Onde o céu é mais azul, Canta Brasil, Brasil moreno, Brasil pandeiro (composição de Assis Valente feita exclusivamente para Carmen Miranda, mas recusada por ela, gravada pelos Anjos do Inferno, em 1940, e regravada pelos Novos Baianos, em 1972, no clássico Acabou chorare) – e, por que não? – País tropical, de Jorge Ben.

Naquele mesmo 1939, como uma coincidência, surge, da Bahia, Dorival Caymmi, com O que é que a baiana tem?, lançada em disco por Carmen Miranda e no filme Banana-da-terra (1940) – a cantora foi responsável por exportar uma imagem exótica do Brasil, tendo o samba como invólucro sonoro.

SAMBA-CANÇÃO E BOSSA NOVA
Após a Segunda Guerra Mundial, chegou a vez do samba-canção estourar no país, encontrando o ambiente perfeito não nos morros, mas nas boates de estilo norte-americano que se alastravam em Copacabana, nos meados dos anos 1940, sendo frequentadas pela elite carioca. “Ary Barroso foi fundamental para a consolidação desse gênero ao compor No rancho fundo (com Lamartine Babo, 1931)”, defende Ruy Castro em A noite do meu bem– A história e as histórias do samba-canção (2015). “Todos os compositores e letristas do primeiro time começaram a produzi-lo e, com a implantação das boates no Rio, ele ganhara um habitat perfeito. Um passeio ao passado remoto mostraria, no entanto, que o samba-canção era a continuação natural de uma tradição romântica da música brasileira que começara no século XIX — filho ou sobrinho das canções, modinhas, valsas, serestas, dos foxes e marchas-rancho”, escreve.

Em 1940, ainda dentro da política de boa vizinhança, foi gravado um álbum que se tornou uma lenda na história da música brasileira: Native Brazilian Music. O Tio Sam, querendo conhecer a nossa batucada, aportou no Brasil representado pelo maestro Leopold Stokowski (regente do clássico da Disney Fantasia, lançado em novembro daquele ano), que, durante dois dias (7 e 8 de agosto) no navio SS Uruguay, comandou gravações com artistas que despontavam no país. Mais de 30 músicos foram arregimentados por Villa-Lobos. Dentre eles, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Jararaca e Ratinho, Zé Espinguela, Luiz Americano, Zé da Zilda e Cartola, que fazia, ali, a sua primeira gravação. Na sessão, gravaram 40 músicas, mas apenas 17 foram lançadas pela Columbia nos Estados Unidos. Cartola disse ter ouvido esse seu registro apenas 20 anos depois e o cachê recebido deu pra comprar “três maços de cigarros baratos”.

No final da década de 1950, naquela mesma Copacabana do samba-canção, dominada por nomes como o pernambucano Antonio Maria e a estrela carioca Maysa, despontaria outro subgênero ao redor do samba, a bossa nova. “A nova tendência há tempos vinha sendo preparada com a proliferação das boates no Bairro de Copacabana, cuja clientela de turistas estrangeiros e de representantes do então chamado café society brasileiro pedia um tipo de música de dança mais próxima do gosto internacional, e que desde o pós-guerra era oferecida às classes médias e alta pelos conjuntos de piano, violão elétrico, contrabaixo, saxofone, bateria e pistão, logo especializados num tipo de ritmo que misturava conciliadoramente o jazz e o samba”, descreve José Ramos Tinhorão.

Ao contrário daquela primeira leva de compositores, que subiam o morro e trocavam experiências, como Noel Rosa, essa nova leva estaria afastada das raízes do gênero e enterraria o abolerado samba-canção. Para Tinhorão, esse grupo de jovens da zona sul, quase todos entre 17 e 22 anos, rompeu com a herança do samba popular e modificou o que tinha de original, o próprio ritmo. Tal acontecimento se deu como “resultante da incapacidade dos moços, desligados dos segredos da percussão popular, de sentirem ‘na pele’ os impulsos dos ritmos dos negros”. Daí, substituíram a intuição rítmica, de caráter improvisado, por um esquema cerebral: “o da multiplicação das síncopas, acompanhada da descontinuidade do acento rítmico da melodia e do acompanhamento. A essa espécie de birritmia, originada pelo desencontro dos acentos, se daria o expressivo nome de violão gago”, continua o pesquisador.

SAMBA-ENREDO ACELERADO
Em seu centenário, o samba passou por várias transformações, inclusive a aceleração do andamento do samba-enredo imposta pela transmissão do desfile na TV, que homogenizou as diferentes baterias das escolas, crítica que Paulinho da Viola transformou na canção Argumento (“Mas não me altere o samba tanto assim”). Em 26 de julho de 1990, no programa Ensaio (TV Cultura), o compositor, ícone da Portela, reclamou da forma como o desfile foi desvirtuado: “A nossa grande tristeza é que a mudança que se processou nas escolas de samba realmente é uma coisa que só atendeu a interesses comerciais mesmo, só interesses imediatos de grupos que realmente se dão muito bem, ganham muito dinheiro. Hoje em dia, uma escola de samba é uma grande empresa, em que corre muito dinheiro mesmo. E isso, infelizmente, não é uma evolução, não é mesmo. É uma mudança, mas pra pior. Isso é lamentável”.

Cem anos após o marco Pelo telefone, a luta dos negros por uma melhor posição na sociedade permanece. “O que há de interessante é que o samba, originado nas comunidades negras, e, portanto, alvo de fortes preconceitos, depreciação e perseguições de outros segmentos sociais e da elite durante muito tempo, passou a ser consagrado como grande referência da musicalidade brasileira, reconhecido até internacionalmente. Por sua vez, pelo lado perverso, esse reconhecimento e incorporação do samba e vários outros ritmos musicais das comunidades negras – como o jongo, o ijexá, o maracatu e tantos mais – como importante traço da identidade nacional brasileira, não obteve a correspondente inserção dos negros na sociedade brasileira, que continuam alijados das melhores condições de acesso aos bens sociais básicos, como moradia, saúde, educação, trabalho e demais aspectos, e, até, em muitos casos, impossibilitados, por exemplo, de participarem dos próprios desfiles das grandes escolas de samba, nos dias principais, por não terem condições de pagar os preços das luxuosas e caras fantasias”, analisa o etnomusicólogo e professor da Unesp Alberto Ikeda.

O samba já foi alçado à categoria de símbolo nacional, gênero que mais se disseminou no país, porém, hoje é o terceiro mais ouvido, segundo pesquisa do Ibope, realizada em 2015. “Não sei exatamente se o samba foi o estilo musical predileto dos brasileiros ou se isso se confunde com um projeto do Estado Nacional, que viu no samba um elemento propício ao discurso da mestiçagem cordial como elemento de construção de certa ideia de identidade nacional. Da mesma maneira, acho que essas ‘pesquisas de gosto’ são muito marcadas pelo recorte da indústria fonográfica e da grande mídia. O Brasil do agronegócio está na crista da onda e, com ele, por exemplo, o fenômeno do sertanejo”, avalia o estudioso Luiz Antonio Simas, coautor, com Alberto Mussa, do ensaio Samba de enredo, história e arte (2010) e, com Nei Lopes, do Dicionário da história social do samba (2015).

“A tendência é que o samba continue fazendo sentido, como um complexo cultural que vai muito além da música ou da coreografia, para aqueles que buscam nele maneiras de criar modos de vida, o que vai muito além de circunstâncias da indústria do entretenimento no Brasil. O problema do samba não é ser o gênero mais ouvido no Brasil. É continuar fazendo sentido como um elemento cultural potente e capaz de engendrar maneiras inventivas de interação com o mundo”, aponta Simas. 

 

 

veja também

Alguns episódios da Revolução de 1817

Malta: joia insular

Caboclinho: agora, patrimônio cultural nacional