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Projetos em benefício da coletividade

Arquitetura que volta atenção às necessidades da população em detrimento dos interesses corporativos leva equipe à Bienal de Veneza

TEXTO Marina Moura

01 de Novembro de 2016

Nesta 15° edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, que se encerra neste mês, a curadoria optou por discutir o caráter multidisciplinar da arquitetura

Nesta 15° edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, que se encerra neste mês, a curadoria optou por discutir o caráter multidisciplinar da arquitetura

Foto divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, em meio a desacordos políticos, pouco dinheiro e muito convencimento de autoridades, tomou para si, na década de 1960, a missão de projetar o Museu de Arte de São Paulo (Masp). O edifício seria construído na Avenida Paulista, em substituição ao antigo Trianon, centro político da capital, e Lina propunha uma arquitetura de “simplicidade monumental”. Em artigo publicado na revista Mirante das Artes, ela distinguiu obras monumentais, “no sentido cívico-coletivo”, daquelas que chamou de “elefânticas”. “O monumental não depende das dimensões: o Parthenon é monumental embora sua escala seja mais reduzida. A construção nazifascista é elefântica e não monumental na sua empáfia inchada, na sua não lógica. O que eu quero chamar de monumental não é a questão de tamanho ou de ‘espalhafato’, é apenas um fato de coletividade, de consciência coletiva. O que vai além do particular, o que alcança o coletivo, pode (e talvez deve) ser monumental. É uma ideia que pode ser esnobada por alguns países europeus que baseiam sua vida e seu futuro político numa falsa ideia de individualismo, num individualismo falsamente democrático de civilização dos consumos, mas que pode ser poderosa num país novo cuja futura democracia será construída sobre outras bases”, escreveu em 1967.

No ano de 1998, os amigos Bruno Lima, Chico Rocha e Lula Marcondes eram três jovens arquitetos, recém-formados pela Universidade Federal de Pernambuco, quando resolveram montar, no Derby, área central do Recife, não exatamente um escritório, mas “um centro de produção de arquitetura, design, artes visuais e vídeo”, definição que consta no site de O Norte – Oficina de Criação, há 18 anos comandado pelos três. Adeptos daquela simplicidade monumental definida por Lina, os sócios procuram “não se restringir a construir paredes”, explica Bruno em entrevista à Continente. Hoje professor da mesma universidade na qual estudou, ele faz questão de assinalar não só “o quão ampla pode ser a ação de um arquiteto”, mas a força de projetos coletivos, que “não se limitam a três pessoas, pois estão sempre agregando mais gente”.

Exemplo disso é o espectro variado de projetos – nacionais e internacionais – dos quais a Oficina participa, estimula ou auxilia, que não necessariamente estão de modo direto relacionados à tectônica em si, mas ao espaço social e às diversas possibilidades de reconfigurá-lo. Chico Rocha observa que, na verdade, O Norte retoma um passado no qual os escritórios de arquitetura eram sobretudo oficinas criativas, numa atitude de “entremear processos”. Atualmente, o que se percebe no Brasil é que boa parte do mercado está focada no design de interiores ou em construir edificações. Na contramão da tendência dominante, desde o princípio eles optaram por agregar áreas de conhecimento, “e começamos a receber demandas tidas como incomuns para um escritório de arquitetura”, comenta.

Assim como construiu agências bancárias, residências e trabalhou diretamente com aldeias indígenas e quilombolas, a oficina de criação foi também responsável por decorar, com material de sucata, o Carnaval de Olinda; trouxe para o Recife parte da programação do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), que acontece anualmente em Goiás; produziu livros, como Olinda: Memórias fotográficas e Índios e caboclos: Reencontros, e firmou parcerias com ONGs locais e globais. A sede do coletivo tem uma tendência agregadora e está sempre aberta a grupos tão heterogêneos quanto relevantes para a promoção da cultura – estudantes e profissionais estrangeiros em intercâmbio, lideranças do movimento Ocupe Estelita e rodas de capoeira do Herança de Angola são apenas alguns dos que passaram pelo local.

BIENAL DE VENEZA
Em janeiro deste ano, o prêmio Pritzker – considerado o mais importante da arquitetura mundial – foi concedido a Alejandro Aravena, primeiro chileno e terceiro latino-americano a ganhar ao longo de 41 edições da honraria. Além de ter realizado uma série de obras públicas e privadas em seu país, o feito de Aravena reconhecido pelo Pritzker foi a construção de mais de 2.500 habitações populares, para algumas das quais aplicou o conceito de “casa incremental”. A ideia é que a população a quem se destinam tais moradias tenha participação ativa no processo, de modo que a casa é entregue “incompleta” e depende da intervenção dos indivíduos que vão habitá-la, de acordo com suas prioridades. É emblemático que o prêmio tenha optado por um projeto arquitetônico de viés social e coletivo, em detrimento da exuberância material e da criação em geral hierarquizada, porque sinaliza sua vontade de dialogar com as problemáticas contemporâneas. Em tempos de devastação ambiental, guerras prolongadas, tensões nos fluxos migratórios, precarização das cidades e desigualdades sociais cada vez mais evidentes, cabe ao arquiteto deste século (também) projetar para modificar os espaços e melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Aravena é responsável ainda pela curadoria da 15ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza – em exposição até o dia 27 deste mês –, cujo tema Notícias do front pretende chamar a atenção do espectador para demandas fundamentais e urgentes, que transbordam os limites arquitetônicos e põem em evidência o caráter multidisciplinar da arquitetura e sua capacidade de agenciar processos que tocam a política, a economia e a ecologia. “Nós gostaríamos de aprender com arquiteturas que, apesar da escassez de meios, intensificam o que está disponível em vez de reclamar sobre o que está faltando. Nós gostaríamos de entender quais ferramentas de projeto são necessárias para subverter as forças que privilegiam o ganho individual sobre o benefício coletivo”, afirmou o chileno, por ocasião da abertura do evento.

Com surpresa, Bruno, Chico e Lula receberam a notícia de que o projeto deles da Escola Novo Mangue – localizada na comunidade do Coque, na Ilha de Joana Bezerra, área central do Recife – havia sido selecionado para compor o pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, denominado Juntos. A inclusão de O Norte no evento mundial está repleta de simbolismos, na opinião dos três.

“A obra do Coque foi uma das primeiras que realizamos, em 1999, ou seja, éramos jovens recém-saídos da faculdade, sem muita experiência”, comenta Lula. E continua: “Além do mais, foi marcante porque comemoramos a maioridade da oficina em meio a uma participação no maior evento de arquitetura do mundo”. Ainda é quase inevitável associar a bienal a construções grandiosas e grupos consolidados, e a quebra dessa lógica causa um estranhamento positivo. “A gente pensa que a bienal fala de trabalhos excepcionais, e o nosso projeto parecia pequeno, foi realizado na periferia de uma cidade e de um país periférico. Aquilo que parecia ínfimo tinha e ainda tem algo a acrescentar no debate contemporâneo”, acredita Bruno.

ESCOLA NOVO MANGUE
O contexto de construção da escola foi, para dizer o mínimo, conturbado. Se ainda hoje os moradores do Coque sofrem com o estigma da pobreza e da criminalidade, além de a área apresentar um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da Região Metropolitana do Recife, no final da década de 1990 o cenário era pior. Naquele período, a Unicef fez uma pesquisa e concluiu que a comunidade era a mais violenta da cidade. Diante do resultado, resolveu fazer uma doação em dinheiro, em parceria com a rede de TV e rádio de Luxemburgo, para que fosse construído um equipamento de melhoria social, a ser definido pelos próprios moradores. A mediação foi feita pela ONG Centro de Cidadania Umbu-Ganzá, que já atuava na comunidade, com crianças de 7 a 14 anos em situação de evasão escolar. O terreno no qual o projeto se desenvolveu representava um local estratégico para a desova de corpos de jovens assassinados pela guerra do tráfico. “A escola foi construída justamente entre o Rio Capibaribe e o pontilhão do metrô. A comunidade optou por tornar aquele lugar que representava a morte num símbolo de vida”, aponta Chico Rocha. Houve uma seleção fechada, na qual 10 projetos de diferentes escritórios foram apresentados, entre eles o de O Norte, que acabou escolhido.

Lula Marcondes acredita que o diferencial da proposta deles em relação às demais foi a de “dar protagonismo ao rio”. A partir daí, foram muitas discussões para se chegar a um acordo que agradasse a todos os envolvidos. A população tinha demandas próprias, a ONG apresentava propostas e a prefeitura, por ser detentora do terreno e responsável pela gestão futura do local, também se posicionava. Uma das exigências, por exemplo, era de que o equipamento construído apresentasse o mínimo de portas e janelas, para evitar riscos de vandalismo ou arrombamentos, já que foi identificada no entorno a presença de infratores. Os três arquitetos amenizaram essa ausência de aberturas com “rasgos” no teto para se ver o céu.

A sensação de enclausuramento também foi resolvida com paredes perfuradas, por meio de tijolos vazados, como cobogós, para promover ventilação e iluminação naturais. Elementos simples, como o pátio interno, com jardim e abertura para o rio, estimularam ainda o cuidado constante e o reflorestamento da vegetação que margeia o Capibaribe. Em uma equação equilibrada, envolvendo limitações orçamentárias, espaciais e negociações, a equipe de arquitetos conseguiu realizar uma estrutura edificada que segue até hoje cumprindo sua função inicial: agregar crianças e adolescentes a um local que estimulasse cultura e cidadania e fosse “incorporado ao patrimônio urbanístico do Recife”, sublinha Chico.

ARQUITETURA DA CARÊNCIA
A Escola Novo Mangue, e sobretudo seu resgate pela Bienal de Veneza, funcionou como um lembrete aos três amigos e sócios, de algo que eles já sabiam, mas é sempre necessário repetir: o que deve contar é o olhar diferenciado sobre os processos criativos envolvendo a arquitetura, ou, como afirma Bruno Lima, “pequenas ações reverberam e podem ter uma voz muito ampla”. Ele acredita que o projeto apresentado por O Norte está em consonância com boa parte de ações presentes em muitos pavilhões da mostra italiana, que define como retratos de uma “arquitetura da carência”.

E o que seria isso? “Na América Latina, em geral, construímos na carência diariamente, e esse não deve ser um motivo para pararmos. Será, por exemplo, que é o recurso monetário que limita e qualifica o espaço? É possível agregar a técnica, a criatividade, a persistência e o conhecimento humano para vencer a limitação”, pondera.

Para Chico Rocha, o foco do evento mundial e da visão arquitetônica como um todo estão basicamente centrados na ideia de ativismo, em contraponto a uma “função decorativa, de enfeite”. Como, então, definir a arquitetura? Nos anos 1980, após construir o Sesc Pompeia – centro de cultura e lazer localizado em São Paulo –, Lina Bo Bardi respondeu ao questionamento de alguns alunos que visitavam o local: “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço de nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”. Certamente os criadores de O Norte se irmanam com a simplicidade monumental do entendimento de Lina, uma vez que, mais que projetos e formas, a eles interessa, nas palavras de Chico, “um discurso que enfatize o nosso papel dentro da comunidade”.

 

 

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